terça-feira, 4 de outubro de 2016

A arte de se calar

Em uma civilização onde os indivíduos são estimulados a falar cada vez mais, felizmente ainda existem pessoas que, trafegando na contramão, defendem a prática de se falar menos. Uma delas é Mirian Goldenberg, antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Esta postagem apresenta o artigo intitulado A arte de se calar publicado em sua coluna no jornal Folha de S.Paulo em 9 de agosto de 2016.
A arte de se calar
A arte de calar, um tratado escrito em 1771, afirma que o primeiro grau de sabedoria é saber se calar, o segundo é moderar-se no discurso e o terceiro é não falar demais. No tratado estão os seguintes princípios:
1. Só se deve deixar de se calar quando há algo a falar que valha mais do que o silêncio.
2. Há um tempo de se calar, assim como há um tempo de falar.
3. O tempo de se calar deve sempre vir em primeiro lugar e nunca se pode falar bem quando não se aprendeu antes a calar.
4. Não há menos franqueza ou imprudência em se calar quando se é obrigado a falar do que leviandade e indiscrição em falar quando se deve calar.
5. É certo que há menos risco em se calar do que em falar.
6. O homem nunca é tão dono de si mesmo quanto no silêncio.
7. Quando se tem uma coisa importante para falar, é necessário dizê-la primeiro a si mesmo para evitar que haja arrependimento quando já não se tiver o poder de voltar atrás no que se declarou.
8. Quando se trata de guardar um segredo, calar-se nunca é demais.
9. O silêncio do sábio vale mais do que o arrazoado do filósofo.
10. O silêncio muitas vezes passa por sabedoria em um homem limitado e capacidade em um ignorante.
11. Mais vale passar por não ser um gênio de primeira grandeza, permanecendo em silêncio, do que por louco, abandonando-se à comichão de falar demais.
12. A característica de um homem corajoso é falar pouco e executar grandes ações. A característica de um home de bom senso é falar pouco e dizer sempre coisas razoáveis.
13. Se houver muita paixão em falar uma coisa, este será um motivo suficiente para se calar.
14. O silêncio é necessário em muitas ocasiões, mas é preciso sempre ser sincero; podem-se reter alguns pensamentos, mas não se deve camuflar nenhum.
A arte de se calar provoca uma reflexão mais do que necessária em um momento em que muitos brasileiros parecem ter opinião sobre tudo, falam compulsivamente e são contra os que têm ideias diferentes. Não é à toa que muitas pessoas reclamam que os outros não sabem escutar com atenção e respeito as suas opiniões.
Em tempos de muito ruído, tagarelice e blá-blá-blá, com tantas queixas sobre a falta de escuta e de diálogo, você sabe quando é o momento certo de se calar?
Ficar em silêncio provoca uma reflexão no momento em que muitos parecem ter uma opinião sobre tudo
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Dos 14 princípios que compõem o tratado citado por Mirian Goldenberg há três deles sobre os quais creio ter algo interessante para falar.
O primeiro princípio - Só se deve deixar de se calar quando há algo a falar que valha mais do que o silêncio – faz-me lembrar a seguinte passagem do livro Tópicos Especiais em Física das Calamidades:
"Às vezes as pessoas dizem coisas só para encher o silêncio. Ou para chocar e provocar. Ou como exercício. Aeróbica verbal. Musculação loquaz. Há inúmeras razões. Só muito raramente as palavras são usadas estritamente por seus significados denotativos."
Vocês concordam que "Dizer coisas só para encher o silêncio" é simplesmente o contrário de "Só deixar de se calar quando há algo a falar que valha mais do que o silêncio"?
O segundo princípio - Há um tempo de se calar, assim como há um tempo de falar  – faz-me lembrar o seguinte aforismo atribuído a Confúcio:
"Se encontrais uma pessoa a quem vale a pena falar e não lhe falais, perdeis a pessoa; se encontrais uma pessoa a quem não vale a pena falar, e lhe falais, perdeis, isto é, desperdiçais as vossas palavras. Sábio é o que não perde pessoas, nem palavras."
Vocês concordam que além de "haver um tempo de se calar e um tempo de falar", há também "alguém com quem se deve falar e alguém com quem se deve calar"?
O terceiro princípio - O tempo de se calar deve sempre vir em primeiro lugar e nunca se pode falar bem quando não se aprendeu antes a calar –, no meu entender, explica porque a imensa maioria das pessoas não fala bem: a humanidade se cala cada vez menos. Por quê? Porque de toda a infinidade de coisas que até hoje lhe foi oferecida pela tecnologia, uma das que mais fascina a tal da espécie inteligente do universo é a possibilidade de falar cada vez mais, e eu explico.
Limitadas pela imprescindibilidade de ter perto de si a pessoa com quem desejavam falar ou de ter alguém por quem enviar uma comunicação escrita, uma carta, por exemplo, com o surgimento do telefone, as pessoas passaram a ter a possibilidade de falar também com quem delas estivesse geograficamente distante, o que as levou a falarem mais. Porém, nessa nova possibilidade ainda havia uma limitação: para que se pudesse falar, o interlocutor precisava estar, ao mesmo tempo, em algum lugar onde houvesse um aparelho telefônico instalado.
Limitação que foi eliminada a partir do momento em que, além da telefonia fixa, o estupendo desenvolvimento tecnológico atingido por esta civilização (sic) passou a oferecer também a telefonia móvel. Ou seja, com o surgimento de um aparelho telefônico que pode ser levado de um lugar para outro, a humanidade passava a ter a possibilidade de falar durante o tempo todo. Possibilidade que ela agarrou não com unhas e dentes, e sim com orelhas e dedos, inicialmente, e com olhos e dedos, posteriormente, e eu explico.
Com orelhas e dedos nos tempos em que os aparelhos telefônicos possibilitavam apenas a comunicação por voz; com olhos e dedos a partir do momento em que os smartphones (telefones inteligentes) passaram a possibilitar o envio de mensagens escritas. E foi assim que, presenteada com a invenção do telefone inteligente, a autodenominada espécie inteligente do universo não parou mais de falar e hoje fala durante o tempo todo, o que torna cada vez mais difícil aprender a se calar.
Na esperança de que, na elaboração desta postagem, eu tenha encontrado o momento certo de me calar, termino-a com a mesma indagação com a qual Mirian Goldenberg encerra seu artigo: "Em tempos de muito ruído, tagarelice e blá-blá-blá, com tantas queixas sobre a falta de escuta e de diálogo, você sabe quando é o momento certo de se calar?"

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