quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Reflexões provocadas por "Não há nada a acrescentar"

"O Mestre Uchiyama Kosho dizia frequentemente: 'Porque o Caminho que existe é perfeito, não há necessidade de mais nada. Ele é completo e se basta tranquilamente a si mesmo. Apenas os seres humanos, infelizmente dotados da faculdade de pensar, querem acrescentar alguma coisa.'"
Saber que o Mestre Uchiyama Kosho dizia que "não há necessidade de mais nada" me faz lembrar algo dito por outro mestre. Indagado sobre como fazia uma escultura, Michelangelo respondeu assim: "Simplesmente retiro do bloco de mármore tudo o que não é necessário". Ou seja, para se realizar uma obra prima a ação é a de retirar, não a de acrescentar.
Fazer da vida uma obra prima! Ou seja, retirar do modo de viver tudo o que não seja necessário, eis uma das condições para se alcançar algo tão almejado pela dita espécie inteligente do universo: a felicidade. Então, por que são tão poucos os que se dispõem a viver assim? Porque, como diz a mestra Shundo Aoyama, "Nossa civilização é totalmente insensata, buscando apenas acumular mais e mais".
Acumular mais e mais, pois em uma civilização onde vale mais quem tem mais, toda e qualquer novidade, por mais desnecessária que seja, rapidamente torna-se artigo de primeira necessidade. Até porque, na insensatez citada na frase final do parágrafo anterior, está incluído o desejo de não ser visto como alguém que não consegue acompanhar o estonteante desenvolvimento tecnológico que lhe é oferecido. E tontas com a possibilidade que a tecnologia lhes oferece de satisfazer todo e qualquer desejo que possuam, por mais disparatado que seja, as pessoas seguem pela vida querendo tudo imediatamente, como nos diz a mestra Shundo Aoyama em seu belíssimo conto.
"Não temos paciência de esperar que a natureza nos dê tudo em seu devido tempo. Queremos contemplar nossas flores preferidas em qualquer época do ano, comer sempre as verduras e frutas que desejamos. A isso se junta a ganância daqueles que se prestam a atender tais desejos, sempre em busca de lucros, e daí surge a corrida do ouro. A ciência é utilizada sem nenhum controle para satisfazer esta avidez e, assim, a corrida se torna cada vez mais louca e acirrada. Terminamos por construir um mundo sem coração, em que existem apenas o materialismo e um pragmático espírito comercial."
"No entanto, não podemos esquecer que também nosso coração, ao viver em um mundo tão artificial, acaba por se transformar em algo endurecido, sem emoções, como plástico."
"Terminamos por construir um mundo sem coração, em que existem apenas o materialismo e um pragmático espírito comercial. (...) Um mundo tão artificial que chega ao ponto de transformar em algo endurecido o coração daqueles que nele vivem." Endurecimento que começa a ser feito ainda em tenra idade, como explica a mestra Shundo Aoyama.
"As crianças que crescem em ambientes onde não há nenhum contato com a natureza não conseguem decifrar e sentir a promessa das flores primaveris que desabrocham no início da primavera, resistindo ao frio cortante, nem das flores que só abrem suas pétalas quando convidadas pelas brisas outonais. (...) As crianças que crescem em um ambiente em que a terra não pode ensinar esses sentimentos, e onde tudo se compra com o dinheiro, não podem desenvolver sensibilidade e delicadeza."
Vocês concordam que não poder desenvolver sensibilidade e delicadeza implica na transformação do coração em algo endurecido? Será que não poder desenvolver sensibilidade e delicadeza tem alguma relação com a construção da sociedade hostil e árida (expressão usada no conto) em que sobrevivemos? No meu entender, sim. E no de vocês?
"Nas lojas – onde o ano inteiro encontramos toda a variedade de flores, verduras e frutas de qualquer estação, mesmo fora de época – basta pagar para conseguir qualquer coisa. Podemos adquirir qualquer coisa; precisamos apenas pagar. Mas, dessa maneira, não conseguimos mais experimentar a emoção do primeiro desabrochar, nem as saudades e o carinho de nos despedir das flores que já estão caindo."
O parágrafo acima é mais uma passagem do conto da mestra Shundo Aoyama que me faz lembrar algo que li, e jamais esqueci. São de um livro de autoria do Professor José Hermógenes, cujo título não anotei, as seguintes palavras:
"O milionário paga ao jardineiro para aparar a grama e cuidar das flores. Mas, coitado vive tão apressado. Não lhe sobra tempo para gozar a beleza de SEU jardim, que ele financia. Paga para dizer que o jardim é SEU."
"Podemos adquirir qualquer coisa, precisamos apenas pagar", diz a mestra zen. "O milionário paga ao jardineiro para cuidar do jardim. Paga para dizer que o jardim é SEU." Ou seja, paga para iludir-se, pois interpretada à luz da questão sobre ser de fato e ser de direito, a conclusão quanto a quem seja o dono do jardim será a seguinte: de direito é o milionário; de fato é o jardineiro.
"Mas, dessa maneira, não conseguimos mais experimentar a emoção do primeiro desabrochar, nem as saudades e o carinho de nos despedir das flores que já estão caindo.", diz a mestra zen em seu conto. Não poucas vezes, já me surpreendi despedindo-me das flores que já estão caindo e agradecendo-lhes pela beleza que trouxeram a este mundo, digo eu nesta postagem. E ao dizê-lo sei que provoco na maioria dos que lerem-na dúvidas quanto à sanidade mental deste blogueiro. Dúvidas que considerando algo que ouvi ontem, durante um almoço com ex-colegas de trabalho que tornaram-se meus amigos, justamente no dia em que eu pretendia publicar esta postagem, parece-me já terem sido eliminadas por uma ex-colega de trabalho.
O que foi que ouvi? Algo mais ou menos assim: a fulana dizia que o Guedes é maluco. Lamentavelmente, devido ao fato de o elogio não ter sido feito diretamente ao maluco, fico impossibilitado de agradecer à ex-colega normal. Afinal, considerando que a insana civilização na qual sobrevivemos tem tudo a ver com as ações e as omissões de um estupendo (ou seria estúpido?) contingente formado por pessoas normais (aquelas que seguem as normas, independentemente de quais sejam elas), ser classificado como maluco, de certa forma, significa ter uma menor parcela de culpa na construção de tal civilização (sic), não é mesmo? Será que algum dia ainda terei uma oportunidade para agradecer à minha ex-colega normal? Tomara que sim.
Nossa! Acho que falei demais. A quem quiser ler algo sobre sanidade mental recomendo a leitura da postagem Saúde mental, publicada neste blog em 7 de maio de 2013. Sobre falar demais, recomendo a leitura da postagem A arte de se calar cuja publicação está prevista para o próximo dia 4 de outubro, neste blog.

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