quarta-feira, 18 de maio de 2016

A tênue divisão entre anjo e macaco (final)

Continuação de sexta-feira
Obviamente, a "descivilização" em New Orleans foi mil vezes pior. Não posso evitar a sensação de que vai haver mais disso, muito mais, à medida que nos aprofundarmos no século 21. Há muitos problemas no ar que podem levar a humanidade ao retrocesso. A ameaça mais óbvia são mais desastres naturais como resultado de mudanças climáticas. Se este cataclismo for interpretado por políticos americanos como John McCain – para usar a frase que eles sem dúvida usarão – como um "chamado" para alertar os americanos sobre as consequências de os EUA continuarem a bombear dióxido de carbono como se não houvesse amanhã, então o Katrina terá um sentido.
Mas já poderá ser tarde demais. Se estiverem corretas as recentes indicações de que não só as calotas polares, mas também o permafrost na Sibéria estão degelando (degelo que, por si só, agravaria o efeito estufa), então seremos lançados numa espiral descendente que não poderá ser detida. Se isso ocorrer, se grandes partes do mundo forem atormentadas por tempestades, enchentes e mudanças de temperatura imprevisíveis, o que houve em New Orleans parecerá brincadeira de criança.
Em certo sentido, esses também seriam furacões feitos pelo homem. Mas há ainda as ameaças mais diretas dos humanos em relação a outros humanos. Até agora, os ataques terroristas causaram ultraje, medo, algumas restrições de liberdades civis e os abusos de Guantánamo e Abu Ghraib, mas não resultaram em histeria em massa ou bodes expiatórios.
Muito menos em Londres, a capital mundial do fleuma. Mas suponhamos que isso seja apenas o começo. Suponhamos que ocorra a detonação, por um grupo terrorista, de uma bomba suja ou até de uma pequena bomba nuclear em uma grande cidade. O que fazer? Algo que tem quase tanta força quanto uma enchente é a pressão da migração em massa do sul pobre e superpovoado do planeta para o norte rico. (Não acidentalmente, os populistas que são contra a imigração normalmente usam a metáfora da inundação.). Se desastres naturais ou políticos deslocassem ainda mais milhões de pessoas, nossos controles de imigração poderiam um dia se mostrar como os diques de New Orleans.
Mesmo com os atuais níveis de imigração, os encontros resultantes – especialmente aqueles entre imigrantes muçulmanos e os atuais residentes europeus – estão se revelando explosivos. Como os civilizados vão ficar? Da forma como alguns europeus e alguns imigrantes muçulmanos estão falando uns sobre os outros, eu vejo avançar a sombra de um novo barbarismo europeu.
E então há o desafio de acomodar as potências emergentes, especialmente a Índia e a China, no sistema internacional. Principalmente no caso da China, onde os líderes comunistas usam o nacionalismo diversionista para se manter no poder, há um perigo de guerra. Nada "desciviliza" mais rapidamente e de forma garantida do que a guerra.
Então, nem se preocupe com o "choque de civilizações" de Samuel Huntington. Isso, como diz o ditado russo, foi muito tempo atrás e, de qualquer forma, não era verdade. O que está sob ameaça aqui é simplesmente a civilização, a fina crosta que colocamos sobre o magma da natureza, incluindo a humana. New Orleans abriu um pequeno buraco pelo qual vemos o que sempre esteve por trás. A cidade, conhecida como Big Easy (algo como "grande moleza"), nos mostra a grande dificuldade que é preservar essa crosta.
No estilo de pregação política, podemos considerar o Katrina um apelo para enfrentar esses desafios seriamente, o que significa que os grandes blocos e potências do mundo – Europa, EUA, China, Índia, Rússia, Japão, América Latina, ONU – precisam atingir um novo nível de cooperação internacional. Mas, numa análise sóbria, podemos arriscar uma conclusão mais pessimista: que por volta do ano 2000 o mundo atingiu um alto ponto na difusão de civilização, para o qual as futuras gerações podem olhar com nostalgia e inveja.
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"Acredite, sei do que estou falando; eu já fui esse macaco.", afirma Timothy Garton Ash, na penúltima frase da postagem anterior. Que macaco é esse? Em conformidade com o pensamento de Timothy e entremeando palavras dele com algumas minhas, respondo que esse macaco é aquele que diante de situações em que poucos conseguirão ser bem-sucedidos, depois de eliminar a concorrência (recorrendo inclusive a ações desprovidas de todo e qualquer escrúpulo), ao conseguir a banana, se recolhe a um canto, evitando o olhar dos outros. E nós? Será que também já fomos esse macaco?
"A maior parte das pessoas, na maior parte do tempo, se envolve em uma briga feroz por sobrevivência individual e genética. Algumas se tornam anjos temporários, a maior parte volta a ser macaco.", eis mais duas perturbadoras afirmações de Timothy. Será que pertencemos a essa maior parte? Será que vale a pena refletirmos sobre o que é dito em A tênue divisão entre anjo e macaco? O que vocês acham?

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