sexta-feira, 13 de maio de 2016

A tênue divisão entre anjo e macaco (I)

"E nessa ideia de algo ainda não consumado eu incluo coisas como civilização, sociedade, democracia e cidadania.", disse eu três postagens atrás. Na seguinte, usando um texto de Rosely Sayão, procuro evidenciar a não consumação da cidadania. Com a chegada do Dia do Silêncio (7 de maio), publiquei uma postagem alusiva a esse dia. Nesta, lançando mão de um texto de Timothy Garton Ash, procuro evidenciar a não consumação da civilização. Timothy é britânico, historiador, escritor e diretor do Centro de Estudos Europeus. Seu texto foi publicado na edição de 11 de novembro de 2005 do jornal O Estado de S. Paulo, em uma coluna intitulada Opinião. Para não desanimar leitores de pouco fôlego, mais uma vez recorro ao método Jack: vamos por partes. Sendo assim, eis a primeira de duas postagens. Os grifos são meus.
A tênue divisão entre anjo e macaco
Antes que nossa atenção se desvie para outra manchete, vamos aprender a grande lição do Katrina. Não se trata da incompetência do governo Bush, da escandalosa negligência com os negros pobres dos EUA ou do nosso despreparo para enfrentar grandes desastres naturais, embora tudo isso também se aplique. A grande lição é que a superfície de civilização sobre a qual nos equilibramos é sempre muito fina. Um tremor e você cai, tentando se agarrar e implorando por sua vida como um cão selvagem.
Você acha que os saques, os estupros e o terror armado que emergiram em poucas horas em New Orleans nunca teriam acontecido na bela e civilizada Europa? Pense outra vez. Aconteceu em todo o continente europeu apenas 60 anos atrás. Leia as memórias dos sobreviventes do Holocausto e do Gulag, o relato de Norman Lewis sobre Nápoles em 1944 ou o diário anônimo de uma alemã em Berlim, em 1945, republicado recentemente. Aconteceu de novo na Bósnia apenas dez anos atrás. E isso não foi nem a "força maior" de um desastre natural. Os furacões da Europa foram fabricados pelo homem.
O ponto básico é o mesmo. Remova os sustentáculos elementares da vida civilizada e organizada – comida, abrigo, água potável, segurança pessoal mínima – e em pouco tempo voltamos a um estado natural hobbesiano, uma guerra de todos contra todos. Algumas pessoas, durante uma parte do tempo, se comportam com solidariedade heróica. A maior parte das pessoas, na maior parte do tempo, se envolve em uma briga feroz por sobrevivência individual e genética. Algumas se tornam anjos temporários, a maior parte volta a ser macaco.
Sem comida, abrigo ou segurança mínima, voltamos ao estado de guerra
A palavra civilização, num de seus sentidos iniciais, se referia ao processo de animais humanos sendo civilizados – com o que queremos dizer, suponho, atingir um reconhecimento mútuo de dignidade humana, ou pelo menos aceitar em princípio o desejo desse reconhecimento. (Como o dono de escravos Thomas Jefferson fez, mesmo se fracassou em praticar o que pregava.). Lendo Jack London outro dia, passei por uma palavra incomum: "descivilização". O processo oposto, ou seja, aquele pelo qual as pessoas param de ser civilizadas e se tornam bárbaras. O Katrina nos fala sobre a possibilidade sempre presente de descivilização.
Há pistas disso até na vida normal e cotidiana. A raiva de dirigir é um bom exemplo. Ou pense no que significa esperar por um voo noturno que atrasa ou é cancelado. De início, aqueles casulos de espaço pessoal cuidadosamente guardados que levamos de um lado para outro conosco em salas de espera de aeroportos se desintegram em partículas de solidariedade. Olhares de simpatia mútua sobre o jornal ou a tela do laptop. Algumas palavras de frustração ou ironia compartilhada. Muitas vezes, isso se transforma numa forte manifestação de solidariedade em grupo, talvez dirigida contra as incorrigíveis equipes da British Airways, Air France ou American Airlines. (Encontrar um inimigo comum é o único caminho garantido para a solidariedade humana.).
Mas então correm boatos de que há alguns lugares vagos em outro voo no portão 37. Colapso instantâneo da solidariedade. Os anjos se tornam macacos. As velhas e enfermas senhoras e as crianças são deixadas para trás com o estouro. Homens de terno preto, com diplomas de Harvard e Oxford e modos impecáveis à mesa, se transformam em gorilas selvagens no meio da floresta. Quando, depois de eliminar a concorrência, eles conseguem seus cartões de embarque, se recolhem a um canto, evitando o olhar dos outros. O gorila que consegue a banana. (Acredite, sei do que estou falando; eu já fui esse macaco.). Tudo isso para evitar uma noite no Holliday Inn, em Des Moines.
Continua na próxima quarta-feira

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