De lembrança em
lembrança, o método das recordações sucessivas, usado na elaboração da postagem anterior, me levou a encerrá-la citando a carta de um jovem delinquente que, à sombra da penitenciária, escreve uma espécie de exame de consciência para os "homens honestos" do mundo. Por sua
vez, a lembrança de tal carta me fez lembrar do livro que me possibilitou conhecê-la.
Publicado em 1960, Novos Rumos para a
Educação, de autoria de Huberto Rohden (1893 – 1981), filósofo, educador e
teólogo catarinense, é o livro de onde extraí também os dois parágrafos abaixo. Os
grifos são meus.
Tenho diante de mim o livro "Daemon-Stadt" (Cidade-demônio) do Dr. Kurt Gauger, médico, psiquiatra e filósofo germânico. Obra em que o autor, à luz de abundantes fatos recentes, estuda o alarmante problema da criminalidade juvenil, e até infantil, na Alemanha e em outros países, no período que seguiu às duas guerras mundiais, e chega à conclusão de que a presente geração, (produto de gerações anteriores e herdeira de ideologias funestas), perdeu a noção da responsabilidade ética, porque perdeu a noção de ser parte integrante do grande TODO, seja o TODO imediato da humanidade, seja o TODO longínquo do Universo como tal.Uma criança de 12 anos mata seu pai com um tiro de revólver; interrogada pelo motivo do crime, responde cinicamente: "Matei porque quis". Não tem o menor remorso do seu ato, diz, porque toda pessoa tem o direito de fazer aquilo que acha interessante.
"Matei porque quis, porque toda pessoa
tem o direito de fazer aquilo que acha interessante.". Eis a frase do
livro Cidade-demônio que me veio à
mente no momento em que transcrevia para a postagem anterior a seguinte frase
de Apto para destruir: "Eu sabia
que era certo, porque me senti bem quando estava fazendo aquilo". Ou seja,
eis as duas frases que me fizeram elaborar uma postagem associando Cidade-demônio e aptidão para destruir.
A primeira delas é uma resposta cínica de uma
criança de 12 anos quando interrogada sobre o motivo de ter matado seu pai com
um tiro de revólver; a segunda é uma justificativa (sic) dada por uma garota de
21 anos que participara de um horrível assassinato de sete pessoas. A primeira
refere-se a um crime citado em um livro intitulado Cidade-demônio; a segunda refere-se a um crime praticado em uma
cidade denominada Los Angeles. As duas, no meu entender, servem
para validar a conclusão a que chega o autor de Cidade-demônio.
"(...) produto de gerações anteriores e herdeira de ideologias funestas, a presente geração perdeu a noção da responsabilidade ética, porque perdeu a noção de ser parte integrante do grande TODO, (...) Em última análise, quem perde a visão de um TODO maior do qual faz parte e que tem de respeitar, perde necessariamente a noção da ética, da obrigação, do dever moral, porque a noção de ética se baseia na consciência de que eu sou parte de um TODO, e que esta parte tem certas obrigações naturais e indeclináveis para com o TODO, (...).
"Produto de gerações anteriores e
herdeira de ideologias funestas a presente geração perdeu a noção de ser parte
integrante do grande TODO" é uma afirmação que me leva a alguns questionamentos.
Será que já houve alguma geração que não tenha
sido produto de gerações anteriores? Será que as causas da criminalidade
apontadas no estudo feito pelo Dr. Kurt Gauger cessaram com a chegada de gerações
posteriores à publicação de seu livro? O que vocês acham? Para ajudá-los a refletir
sobre tais questionamentos, seguem quatro parágrafos apresentando algumas
informações.
Sem saber a data em que foi praticado o crime
citado em Cidade-demônio, mas considerando
que o livro foi publicado em 1957, que ele focaliza um estudo do período após
as duas guerras mundiais, que a segunda delas terminou em 1945 e que tal estudo
é feito à luz de fatos recentes, deduzo que seja razoável situá-la na década de
1950. O crime praticado na cidade Los
Angeles, ocorreu em 9 de agosto de 1969, ou seja, entre uma e duas décadas após
o citado em Cidade-demônio.
O tempo - como não
poderia deixar de ser - continuou passando, e as pessoas continuaram matando. E
como mais uma informação para ajudá-los a refletir sobre os questionamentos
propostos, cito mais um crime. Em outubro de 2009, na cidade de Jefferson City,
no estado do Missouri, nos Estados Unidos, a adolescente norte-americana Alyssa
Bustamente, de 15 anos, confessou que "estrangulou, cortou a garganta e
esfaqueou a vizinha de 9 anos, porque queria saber como se sentiria matando
alguém", segundo notícia veiculada pelos meios de comunicação.
Decorridos quarenta
anos após o famoso crime praticado em
Los Angeles, mais um crime praticado
por um jovem devil virava notícia. Ou
seja, novas gerações chegam, mas a criminalidade continua. Por quê? Porque sai
geração, entra geração e a maioria de seus integrantes parece "vir de
fábrica" sem um "aplicativo" que lhe dê a noção de que a ética
se baseia na consciência de que somos parte de um TODO.
No período
compreendido entre o segundo e o terceiro crimes citados, segundo conta Eduardo
Galeano em seu extraordinário livro De
Pernas Pro Ar – A Escola do Mundo ao Avesso, publicado em 1999, "uma
executiva do ramo, Diane McClure, tranquilizou os acionistas, em outubro de
1997, com uma boa notícia: 'Nossas análises do mercado mostram que o crime juvenil continuará crescendo'". Espantaram-se
com a afirmação de que o crescimento do crime juvenil é uma boa notícia? Por que com aquela boa notícia a
executiva tranquilizou os acionistas? Porque como diz Nils Christie, um
criminologista citado por Galeano, na mesma página em que cita a executiva, "Afinal,
presídio quer dizer dinheiro". E por dinheiro há quem esteja disposto a
tudo, até a lucrar com a criminalidade, não é mesmo?
Lidas as informações
acima, retornemos ao método dos questionamentos sucessivos. Será que faz algum
sentido acreditar que quem se beneficie da existência da criminalidade juvenil tenha algum interesse em acabar
com ela? Será que é difícil acreditar que a extinção de todo e qualquer mal só
é possível a partir de iniciativas, "continuativas" e "terminativas"
tomadas por aqueles a quem o mal aflige? Será que faz sentido a seguinte
afirmação do Padre Zezinho scj: "Em cada ladrãozinho prepotente que
inferniza nossas vidas está um pouco de nossa indiferença, que nada fez pelas
crianças que eles um dia foram...".
E ao falar em indiferença eu lembro uma frase
por alguns atribuída a Elie Wiesel por outros a Érico Veríssimo, "O oposto
do amor não é o ódio, é a indiferença.", e retorno aos questionamentos
sucessivos. Será que faz sentido enxergar na indiferença a capacidade de
produzir ódio em indivíduos incapazes de aceitar resignadamente a indiferença com
que sejam tratados? Será que alguém que tenha a noção de que a ética se baseia
na consciência de que somos parte de um TODO é capaz de praticar a indiferença? Será que faz
sentido considerar a indiferença um dos fatores capazes de contribuir para a
geração e a manutenção de cidades-demônio?
Será que a cidade em que sobrevivemos pode ser
classificada como uma cidade-demônio? Será que, de alguma forma, nosso modo de
viver contribui para a produção de indivíduos aptos para destruir? Será que nosso
modo de viver torna-nos aptos para participar da construção de certas coisas
sobre as quais muito se fala, mas pelas quais pouco se faz. Que coisas são essas?
Civilização, sociedade e cidadania. Coisas que me fazem lembrar o slogan de uma
antiga loja de tecidos. Qual era o slogan? "Casas Huddersfield: difícil de pronunciar, mas
fácil de encontrar!". Slogan que, mutatis mutandis, resulta na seguinte frase: "Civilização, sociedade e cidadania: fáceis
de pronunciar, mas difíceis de encontrar!".
Coisas que só começarão a ser encontradas a
partir do momento em que cada um de nós, independentemente do que tenha herdado
de gerações anteriores, consiga, finalmente, aceitar, e colocar em prática,
algo repetido algumas vezes nesta postagem: "a noção de que a ética se
baseia na consciência de que somos parte de um TODO." Coisas cujo encontro é algo
simplesmente imprescindível para a extinção do que compõe o título desta postagem:
as cidades-demônio e a aptidão para destruir.
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