quarta-feira, 20 de abril de 2016

Cidade-demônio e aptidão para destruir

De lembrança em lembrança, o método das recordações sucessivas, usado na elaboração da postagem anterior, me levou a encerrá-la citando a carta de um jovem delinquente que, à sombra da penitenciária, escreve uma espécie de exame de consciência para os "homens honestos" do mundo. Por sua vez, a lembrança de tal carta me fez lembrar do livro que me possibilitou conhecê-la. Publicado em 1960, Novos Rumos para a Educação, de autoria de Huberto Rohden (1893 – 1981), filósofo, educador e teólogo catarinense, é o livro de onde extraí também os dois parágrafos abaixo. Os grifos são meus.
Tenho diante de mim o livro "Daemon-Stadt" (Cidade-demônio) do Dr. Kurt Gauger, médico, psiquiatra e filósofo germânico. Obra em que o autor, à luz de abundantes fatos recentes, estuda o alarmante problema da criminalidade juvenil, e até infantil, na Alemanha e em outros países, no período que seguiu às duas guerras mundiais, e chega à conclusão de que a presente geração, (produto de gerações anteriores e herdeira de ideologias funestas), perdeu a noção da responsabilidade ética, porque perdeu a noção de ser parte integrante do grande TODO, seja o TODO imediato da humanidade, seja o TODO longínquo do Universo como tal.
Uma criança de 12 anos mata seu pai com um tiro de revólver; interrogada pelo motivo do crime, responde cinicamente: "Matei porque quis". Não tem o menor remorso do seu ato, diz, porque toda pessoa tem o direito de fazer aquilo que acha interessante.
"Matei porque quis, porque toda pessoa tem o direito de fazer aquilo que acha interessante.". Eis a frase do livro Cidade-demônio que me veio à mente no momento em que transcrevia para a postagem anterior a seguinte frase de Apto para destruir: "Eu sabia que era certo, porque me senti bem quando estava fazendo aquilo". Ou seja, eis as duas frases que me fizeram elaborar uma postagem associando Cidade-demônio e aptidão para destruir.
A primeira delas é uma resposta cínica de uma criança de 12 anos quando interrogada sobre o motivo de ter matado seu pai com um tiro de revólver; a segunda é uma justificativa (sic) dada por uma garota de 21 anos que participara de um horrível assassinato de sete pessoas. A primeira refere-se a um crime citado em um livro intitulado Cidade-demônio; a segunda refere-se a um crime praticado em uma cidade denominada Los Angeles. As duas, no meu entender, servem para validar a conclusão a que chega o autor de Cidade-demônio.
"(...) produto de gerações anteriores e herdeira de ideologias funestas, a presente geração perdeu a noção da responsabilidade ética, porque perdeu a noção de ser parte integrante do grande TODO, (...) Em última análise, quem perde a visão de um TODO maior do qual faz parte e que tem de respeitar, perde necessariamente a noção da ética, da obrigação, do dever moral, porque a noção de ética se baseia na consciência de que eu sou parte de um TODO, e que esta parte tem certas obrigações naturais e indeclináveis para com o TODO, (...).
"Produto de gerações anteriores e herdeira de ideologias funestas a presente geração perdeu a noção de ser parte integrante do grande TODO" é uma afirmação que me leva a alguns questionamentos.
Será que já houve alguma geração que não tenha sido produto de gerações anteriores? Será que as causas da criminalidade apontadas no estudo feito pelo Dr. Kurt Gauger cessaram com a chegada de gerações posteriores à publicação de seu livro? O que vocês acham? Para ajudá-los a refletir sobre tais questionamentos, seguem quatro parágrafos apresentando algumas informações.
Sem saber a data em que foi praticado o crime citado em Cidade-demônio, mas considerando que o livro foi publicado em 1957, que ele focaliza um estudo do período após as duas guerras mundiais, que a segunda delas terminou em 1945 e que tal estudo é feito à luz de fatos recentes, deduzo que seja razoável situá-la na década de 1950. O crime praticado na cidade Los Angeles, ocorreu em 9 de agosto de 1969, ou seja, entre uma e duas décadas após o citado em Cidade-demônio.
O tempo - como não poderia deixar de ser - continuou passando, e as pessoas continuaram matando. E como mais uma informação para ajudá-los a refletir sobre os questionamentos propostos, cito mais um crime. Em outubro de 2009, na cidade de Jefferson City, no estado do Missouri, nos Estados Unidos, a adolescente norte-americana Alyssa Bustamente, de 15 anos, confessou que "estrangulou, cortou a garganta e esfaqueou a vizinha de 9 anos, porque queria saber como se sentiria matando alguém", segundo notícia veiculada pelos meios de comunicação.
Decorridos quarenta anos após o famoso crime praticado em Los Angeles, mais um crime praticado por um jovem devil virava notícia. Ou seja, novas gerações chegam, mas a criminalidade continua. Por quê? Porque sai geração, entra geração e a maioria de seus integrantes parece "vir de fábrica" sem um "aplicativo" que lhe dê a noção de que a ética se baseia na consciência de que somos parte de um TODO.
No período compreendido entre o segundo e o terceiro crimes citados, segundo conta Eduardo Galeano em seu extraordinário livro De Pernas Pro Ar – A Escola do Mundo ao Avesso, publicado em 1999, "uma executiva do ramo, Diane McClure, tranquilizou os acionistas, em outubro de 1997, com uma boa notícia: 'Nossas análises do mercado mostram que o crime juvenil continuará crescendo'". Espantaram-se com a afirmação de que o crescimento do crime juvenil é uma boa notícia? Por que com aquela boa notícia a executiva tranquilizou os acionistas? Porque como diz Nils Christie, um criminologista citado por Galeano, na mesma página em que cita a executiva, "Afinal, presídio quer dizer dinheiro". E por dinheiro há quem esteja disposto a tudo, até a lucrar com a criminalidade, não é mesmo?
Lidas as informações acima, retornemos ao método dos questionamentos sucessivos. Será que faz algum sentido acreditar que quem se beneficie da existência da criminalidade juvenil tenha algum interesse em acabar com ela? Será que é difícil acreditar que a extinção de todo e qualquer mal só é possível a partir de iniciativas, "continuativas" e "terminativas" tomadas por aqueles a quem o mal aflige? Será que faz sentido a seguinte afirmação do Padre Zezinho scj: "Em cada ladrãozinho prepotente que inferniza nossas vidas está um pouco de nossa indiferença, que nada fez pelas crianças que eles um dia foram...".
E ao falar em indiferença eu lembro uma frase por alguns atribuída a Elie Wiesel por outros a Érico Veríssimo, "O oposto do amor não é o ódio, é a indiferença.", e retorno aos questionamentos sucessivos. Será que faz sentido enxergar na indiferença a capacidade de produzir ódio em indivíduos incapazes de aceitar resignadamente a indiferença com que sejam tratados? Será que alguém que tenha a noção de que a ética se baseia na consciência de que somos parte de um TODO é capaz de praticar a indiferença? Será que faz sentido considerar a indiferença um dos fatores capazes de contribuir para a geração e a manutenção de cidades-demônio?
Será que a cidade em que sobrevivemos pode ser classificada como uma cidade-demônio? Será que, de alguma forma, nosso modo de viver contribui para a produção de indivíduos aptos para destruir? Será que nosso modo de viver torna-nos aptos para participar da construção de certas coisas sobre as quais muito se fala, mas pelas quais pouco se faz. Que coisas são essas? Civilização, sociedade e cidadania. Coisas que me fazem lembrar o slogan de uma antiga loja de tecidos. Qual era o slogan? "Casas Huddersfield: difícil de pronunciar, mas fácil de encontrar!". Slogan que, mutatis mutandis, resulta na seguinte frase: "Civilização, sociedade e cidadania: fáceis de pronunciar, mas difíceis de encontrar!".
Coisas que só começarão a ser encontradas a partir do momento em que cada um de nós, independentemente do que tenha herdado de gerações anteriores, consiga, finalmente, aceitar, e colocar em prática, algo repetido algumas vezes nesta postagem: "a noção de que a ética se baseia na consciência de que somos parte de um TODO." Coisas cujo encontro é algo simplesmente imprescindível para a extinção do que compõe o título desta postagem: as cidades-demônio e a aptidão para destruir.

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