Conforme prometido na
anterior, esta postagem espalha a íntegra do artigo de Márcia Tiburi publicado
na edição de abril de 2015 da revista Cult.
Intitulado Sem tempo para nada, ele aguardou
quase um ano para ser espalhado por este blog onde as postagens costumam ser publicadas
em função de afinidade com a anterior. Sendo assim, após A mentira que vivemos considerei bastante oportuno espalhar Sem tempo para nada. Agora é com vocês.
Encontrem tempo para ler Sem tempo para
nada, procurem refletir sobre o
que leram e verifiquem se faz sentido a afinidade que enxerguei entre esta
postagem e as três anteriores, ok?
Sem tempo para nada
Distração e imperativo
do entretenimento na era da hiperprodutividade
O diagnóstico de que não temos tempo para nada
se tornou comum em nossa sociedade hiperprodutiva. Somos privados do tempo pelo
sistema econômico que mede o trabalho em horas e dias, meses e anos. Sabemos
que o tempo é usado no capitalismo para fins que o eliminam. A sensação de que
o tempo precisa ser útil, de que não podemos perder tempo, é espargida pelo
discurso teológico-capitalista como água benta sobre os que encarnam o ideal da
produção como se ele fosse sua mais autêntica expressão. O fiel não fala em
fazer, ele fala em produzir. Ninguém se diz trabalhador, diz-se "produtivo".
Enfeitiçados pela lógica da produção em que estar em ação é a regra, cria-se
nas empresas e universidades a meta numérica como uma espécie de indulgência
religiosa que é, ao mesmo tempo, instrumento de tortura.
Os trabalhadores das periferias, que vão aos
centros das grandes cidades para trabalhar, gastam a maior parte do seu dia
devotados a qualquer coisa que não se refere a eles mesmos. A jornada de
trabalho não leva em conta o tempo do transporte. O tempo que seria um direito
de qualquer pessoa é tratado como se não existisse. Cada um deve se
responsabilizar pelo tempo que perde.
Do outro lado da cena, há o discurso da falta
de tempo. Enquanto queixa, ele não age contra a falta que lhe dá origem. Ele
exprime a paradoxal dessubjetivação do indivíduo em escala social. Cada um que
se queixa da falta de tempo, cada um que se refere a si mesmo como estando na "correria",
apenas se expressa por meio da inexpressão típica da época. Cada um sente que é
alguém enquanto ainda é capaz de se queixar.
Fantasia da Ação
Agir é o imperativo a que obedecemos hoje. Mas
é também a fantasia com a qual todos sonham no desejo comum de fazer parte.
Essa fantasia da ação é produtora da angústia. Nas sociedades contemporâneas,
enfraquecidas em todos os níveis de sua experiência intelectual e afetiva, ela
acaba se tornando um tipo de desespero impossível de controlar. A impotência
para agir, quando a ação foi rebaixada à operação produtora de mercadorias,
torna-se a frustração subjetiva compartilhada por todos que, culpabilizados,
endividados, se entregam de corpo e alma à engrenagem capitalista que, da
fábrica ao mercado, não nos deixa quietos. É preciso estar distraído para agir
conforme as regras do jogo e não em outra direção.
Também em nossas casas o tempo é proibido
enquanto é devorado pelos meios de comunicação. Nelas, a distração precisa
estar garantida. O imperativo do entretenimento que mata o tempo deveria ser
contestado, mas ele é um dos elementos mais importantes do ritual religioso do
capitalismo. Não ter, ou não gostar de televisões, computadores e outros
instrumentos do entretenimento tais como redes sociais que garantem distração é
uma espécie de heresia. Ninguém percebe que o jogo do "ter que fazer"
é o mesmo do "ter que se distrair" e que ambos compõem um imperativo
no quadro de um autoritarismo velado. O que chamamos de entretenimento existe
para provocar a sensação de que se conquistou a si mesmo conquistando um tempo.
O entretenimento é a ação criadora de tempo em uma sociedade que o devorou e,
ao mesmo tempo, precisa fingir que o preserva.
Na moral religiosa e capitalista da
produtividade não há tempo para o tempo e nos ressentimos disso. Pois o tempo
constitui uma das dimensões fundamentais da vida, a ponto de que podemos dizer
que se confunde com ela. O tempo é também o que nos faz pensar. Pensar é um ato
que depende do tempo que concedemos para a sua realização. Ao mesmo tempo,
parar para pensar é criar tempo. O tempo, portanto, tem a dimensão do inútil
que a todo momento queremos confrontar com nossa servidão à ação. Quanto menos
tempo, menos chance de pensar que perdemos tempo na hiperprodutividade,
autoritarismo em escala micrológica experimentada por todos em nossa época,
seja como vítimas, seja como algozes.
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Que belo texto! Que texto fértil para reflexões!
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