quarta-feira, 30 de março de 2016

Anfetamina espiritual

Conforme prometido em Reflexões provocadas por 'Sem tempo para nada' (14 de março de 2016), segue um artigo de Sérgio Augusto, intitulado Anfetamina espiritual, publicado na edição de 22 de dezembro de 2013 do jornal O Estado de S. Paulo. Para quem não lembra (e também para quem lembra), eis o significado de anfetamina: estimulante do sistema nervoso central.
Anfetamina espiritual
Trabalhar demais nos incute a ilusão de que não somos tão insignificantes assim
Em sua última postagem no Twitter, no dia 14, Mita Diran cantou vitória: "30 horas de trabalho e continuo fooorte". Horas depois, já nada forte, Diran morreu. Redatora de publicidade da Young & Rubican da Indonésia, Diran foi a mais recente vítima do que os japoneses batizaram de karoshi (overdose letal de trabalho) a ganhar destaque no noticiário internacional. No mesmo dia, a revista britânica New Statesman publicou um vigoroso ensaio de Steve Poole, Por que o Culto ao Trabalho Intenso é Contraproducente, que Diran não teve tempo de ler.
Se a jovem publicitária sucumbiu a um autoimposto desafio ou a uma disputa subliminarmente estimulada por seus patrões é detalhe secundário. O fato concreto é que ela, com ou sem o aditivo de uma bebida energética, morreu por trabalhar demais e repousar de menos. Ou seja, por incidir no mesmo erro que milhões de pessoas cometem diariamente no mundo inteiro.
A impressão que se tem é que a humanidade nunca esteve tão "ocupada", tão "sem tempo pra nada", "trabalhando alucinadamente", "morta de cansaço". O desemprego grassa, mas também por isso trabalha-se mais e por mais tempo: no subemprego, nos frilas, na faina informal; fora e dentro de casa, em plantão permanente, inclusive nas horas de lazer. E ainda exigem que sejamos mais rápidos. Em prol de um inquestionado valor de nosso tempo, a produtividade.
Daí o astucioso neologismo busyness, amálgama de ocupado (busy) e negócio (business), supostamente criado por Andrew Smart, no livro manifesto Autopilot: The Art and Science of Doing Nothing, e popularizado por Tim Kreider, na página de opinião do New York Times, no ano passado. "Ocupação" seria a tradução perfeita se já não significasse, em português, qualquer tipo de trabalho. Adotemos o busyness.
Até as crianças andam mais "busy" hoje em dia, metidas em atividades extracurriculares, terapias ocupacionais e solicitações eletrônicas, sem folga para as folganças de gerações passadas, sem tempo para o doce far niente contemplativo, para o ficar bestando sabidamente regenerativo e potencialmente criativo. E como é de menino que se torce o pepino, já existem manuais de autoajuda para se educar crianças a administrar bem seu tempo, vale dizer, ajustá-lo precocemente à lógica do capitalismo moderno, do "tempo é dinheiro", da eficácia regida por algoritmos e outros prodígios da tecnologia da informação corporativa. Que, aliás, não são infalíveis, embora intensa e piamente utilizados na contratação de funcionários por empresas do Vale do Silício.
A presente e histérica sobrecarga de afazeres, salienta Tim Kreider, nem sempre é uma necessidade ou uma inevitável condição de vida; é uma opção, voluntária ou aquiescente, alimentada por uma espécie de consolo existencial, um antídoto contra a sensação de vazio e a solidão. Uma agenda cheia, ainda que de compromissos tão ou mais dispensáveis que a maioria das ligações feitas ou recebidas pelo celular, é uma anfetamina espiritual, um placebo que nos incute a ilusão de que afinal não somos tão prescindíveis e insignificantes assim.
Crescemos e nos multiplicamos ouvindo toda sorte de platitudes em favor do trabalho, que ele enobrece o homem, dá sentido à vida. Mas Deus, como gostava de lembrar Millôr Fernandes, só falou em trabalho depois que o homem comeu a maçã, o que configura duas coisas: que o trabalho foi um castigo (a palavra trabalho vem do latim tripalium, um instrumento de tortura) e o destino humano era a vagabundagem. Ou a ociosidade criativa preconizada pelos filósofos gregos, por Sêneca, Montaigne, Lafargue, Russel e toda uma linhagem de sábios, que passa por Ascenso Ferreira e alcança Camus ("Os ociosos é que transformam o mundo, porque os outros não dispõem de tempo para fazê-lo"), Milan Kundera e Thomas Pynchon. O Princípio de Arquimedes, não custa lembrar, nasceu num banho de banheira. E a Lei da Gravidade, quando Newton relaxava debaixo de uma macieira.
Em plena vigência do moralismo cristão ("Ganharás o pão com o suor do teu rosto", etc.), radicalizado pela ética do trabalho protestante, e dos primeiros desdobramentos do taylorismo, Cesare Pavese proclamou: "Lavorare stanca" (trabalhar cansa). Publicou um livro com esse título, na Itália fascista, mas não foi preso por isso. O fascismo, apesar de tudo, não fez da ergolatria uma doutrina de Estado como os nazistas (que afixaram nos pórticos de seus campos de concentração o mote "Arbeit Macht Frei", o trabalho liberta), os comunistas soviéticos (que inventaram o stakanovismo), e a ditadura do Estado Novo (que proibiu sambas e marchinhas simpáticos à malandragem).
O stakanovismo foi um movimento de massa visando a elevar os níveis de produtividade na União Soviética. Inspirou-se no recorde sobre-humano de extração de carvão batido pelo mineiro Alexei Stakanov, em 1935, que Stalin manipulou como "um exemplo para mostrar ao mundo a eficácia do sistema de trabalho socialista". Em 1976, o cineasta polonês Andrzej Wadja fez um ótimo filme sobre um pedreiro da Cracóvia acometido de stakanovismo, O Homem de Mármore. Está na hora de alguém abordar o stakanovismo do nosso tempo, o karoshi digital. Ou será que Mita Diran morreu em vão?
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Por que o Culto ao Trabalho Intenso é Contraproducente, eis o título de um vigoroso ensaio de Steve Poole publicado na revista britânica New Statesman, no mesmo dia da morte de Mita Diran, e que, obviamente, ela não teve tempo de ler, informa Sérgio Augusto em seu artigo. Mas outra publicação é citada no artigo. Um livro publicado seis meses antes da morte de Diran e que, no meu entender, ela também não teve tempo de ler. Escrito por Andrew Smart, neurocientista e pesquisador da Universidade de Nova York, ele é intitulado Autopilot: The Art and Science of Doing Nothing ("Piloto automático: a arte e a ciência de não fazer nada", numa tradução livre e sem edição no Brasil). Um livro do qual tomei conhecimento, em fevereiro de 2014, ao ler uma entrevista com o autor publicada na revista Você s/a, em sua edição daquele mês. Assinada por Elisa Tozzi ela recebeu o título Trabalhar demais é tão perigoso quanto fumar. Se quiser ler a entrevista clique aqui.
"Trabalhar demais é tão perigoso quanto fumar", afirma o título da entrevista. Então, por que trabalhamos demais? Porque como diz o subtítulo do artigo de Sérgio Augusto, "Trabalhar demais nos incute a ilusão de que não somos tão insignificantes assim". Subtítulo sugerido pelas palavras de Tim Kreider, colunista da página de opinião do New York Times, citadas no sexto parágrafo do artigo de Sérgio e repetidas abaixo.
"A presente e histérica sobrecarga de afazeres, salienta Tim Kreider, nem sempre é uma necessidade ou uma inevitável condição de vida; é uma opção, voluntária ou aquiescente, alimentada por uma espécie de consolo existencial, um antídoto contra a sensação de vazio e a solidão. Uma agenda cheia, ainda que de compromissos tão ou mais dispensáveis que a maioria das ligações feitas ou recebidas pelo celular, é uma anfetamina espiritual, um placebo que nos incute a ilusão de que afinal não somos tão prescindíveis e insignificantes assim.".
Considero o parágrafo acima irretocável. Como "um antídoto contra a sensação de vazio e a solidão", o que se vê são pessoas entregando-se a insanas jornadas de trabalho em busca de tentar convencer não só aos outros, mas também a si próprios, de sua imprescindibilidade e significância. Busca que não poucas vezes termina em desfechos trágicos como o ocorrido com Mita Diran.
Karoshi, que pode ser traduzido literalmente do japonês como "morte por excesso de trabalho", é morte súbita ocupacional. É trabalhar exaustivamente até ultrapassar o limite entre a vida e a morte, e, subitamente ser pego pela morte. Em termos de "time is money" ou "time is life"; "time is this" ou "time is that", a conclusão a que chego é que karoshi é trocar o "time is life" preconizado por Luiz Roberto Londres pelo "time is death".

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