quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Para o lucro crescer, o fator medo tem que crescer

Após um intervalo de tempo bem maior do que eu poderia imaginar e a "intromissão" de Pedidos e desejos de final de ano na sequência de postagens, segue uma postagem provocada por uma afirmação de Marcelo Gleiser em seu artigo Em 'Jurassic World', o homem continua na época da caverna. Comentada na postagem que espalha o artigo, a frase "Para o lucro crescer, o fator medo tem que crescer" retorna intitulando esta, pois, no meu entender, a abrangência de sua veracidade vai além do contexto usado por Gleiser. Qual contexto? Uma comparação entre o lucro do produtor e dos patrocinadores de um filme recente (Jurassic World) com o de outro de tema semelhante lançado há 22 anos (Jurassic Park). Em um mundo onde o lucro material é cultuado como valor supremo e no qual os mais fortes dominam os mais fracos pela imposição dos mais variados tipos de medo, enxergo a afirmação de Gleiser como aplicável a quase tudo que nele se faz.
Em um mundo onde a economia é imposta, e aceita, como o eixo que articula todas as instâncias sociais, segundo Karl Polanyi (1886 – 1964), filósofo, historiador da economia e antropólogo húngaro, "vive-se numa sociedade de mercado, onde o que vale é a competição entre os indivíduos, tudo vira mercadoria e qualquer bem pode ser negociado tendo em vista o lucro que se possa obter.".
E juntando a afirmação de Karl Polanyi com a visão de Octávio Paz, poeta e prêmio Nobel Mexicano, que enxergava no medo o veneno que os poderosos costumam injetar na sociedade quando querem dominá-la com menor dispêndio chega-se à confirmação da veracidade da afirmação de Marcelo Gleiser: "Para o lucro crescer, o fator medo tem que crescer".
São de uma tirinha do extraordinário André Dahmer intitulada Encontro Anual dos Donos do Mundo (que pode ser vista no final da postagem) as palavras apresentadas a seguir:
- Quer dizer que podemos gerar o medo...
-... e depois vender proteção!
-  Nossa, Henry. Sua ideia me dá calafrios...
- Olha aí, já temos o primeiro cliente!
Gerar o medo ... e depois vender proteção! Gerar o medo, lucrar com a venda de proteção, fazer crescer o medo e, consequentemente, fazer crescer o lucro com a venda de proteção!
E aqui eu faço o seguinte questionamento. Em uma sociedade de mercado, onde, segundo Karl Polanyi, "tudo vira mercadoria e qualquer bem pode ser negociado tendo em vista o lucro que se possa obter", será que faz sentido acreditar que haja interesse em acabar com alguma coisa que faz o lucro crescer? Ou seja, será que, em uma civilização (sic) que tem na venda de proteção uma de suas principais fontes de lucros, faz sentido acreditar que haja interesse em acabar com a insegurança e o medo por ela provocado? Ou o interesse é exatamente o contrário: aumentar a insegurança que aumentará o medo que aumentará o lucro? O que vocês acham?
Sim, aumentar a insegurança e predispor as pessoas a aceitar pagar por proteção na forma de seguros oferecidos em uma variedade cada vez maior. Referindo-me apenas aos que cobrem roubos, seguem algumas coisas para as quais são feitos seguros: carros, residências, cartões de crédito, cartões de crédito, smartphones e uma série de outros bens materiais sem os quais as pessoas consideram que seja impossível viver e, portanto, têm medo de perder.
Seguros dentre os quais destaco os que cobrem residências e carros (um dos principais objetos de desejo). Residências com as quais além dos gastos com seguros gasta-se cada vez mais com sistemas de segurança (sic) cada dia mais sofisticados, mais caros e com menor durabilidade, pois da mesma forma que a segurança se sofistica, a criminalidade também o faz. Resultado: o fator medo cresce e consequentemente o lucro com a venda de proteção.
Venda de proteção que em relação aos carros inclui a blindagem para torná-los à prova de balas. Prova que, diante do crescimento do poder das armas que disparam as balas, é cada vez mais difícil de suportar e mais cara para pagar. Blindagem que no aspecto residencial talvez seja buscada na ideia de morar em condomínios fechados nos quais as pessoas imaginam estar a salvo da bandidagem. Haja imaginação! A edição de 28 de outubro de 2015 do jornal Valor traz em uma página intitulada Especial / Seguros uma reportagem de Rejane Aguiar cujo título é Coberturas para condomínios tendem a se expandir. Reportagem que começa com a frase apresentada a seguir.
"As notícias de assaltos a condomínios já são corriqueiras no Brasil, mas sempre aumentam a sensação de insegurança e ajudam a impulsionar as vendas de sistema de proteção e de coberturas adicionais de seguros."
"Aumentam a sensação de insegurança e ajudam a impulsionar as vendas de sistemas de proteção e de coberturas adicionais de seguros", afirma a reportagem de Rejane Aguiar. "Gerar o medo e depois vender proteção", diz André Dahmer em sua tirinha. "Para o lucro crescer, o fator medo tem que crescer", é a frase dita por Marcelo Gleiser no excelente artigo espalhado neste blog em 3 de dezembro de 2015 e que provocou esta postagem. Tudo a ver, não?
No parágrafo acima são citadas três afirmações que têm tudo a ver. Neste são citadas duas frases que começam desmentindo falsas relações e terminam apresentando as verdadeiras. A primeira delas é uma frase que já vi em vários lugares, mas cuja autoria em nenhum deles era definida. "Cidade limpa não é a que mais se varre; é a que menos se suja". A segunda foi elaborada a partir da primeira usando o método mutatis mutandis. "Cidade segura não é aquela na qual mais se prende; é aquela na qual menos se delinque".
Ou seja, viver em uma civilização onde realmente haja segurança nada tem a ver com a possibilidade de comprar proteção contra a ação de delinquentes, e sim com a construção de uma sociedade onde inexistem condições que propiciem a delinquência. Em outras palavras: por mais estranho que possa parecer, o único modo de cessar o efeito de algo provocado pelo homem é cessando a causa.
E após o tudo a ver e as falsas e as verdadeiras relações apresentadas nos três parágrafos imediatamente acima, encerro esta postagem deixando-lhes algumas questões.
Será que faz algum sentido acreditar que seja possível viver em segurança em uma civilização que tolera o lucro oriundo do medo provocado pela delinquência? Será que algum dia entenderemos que acreditar ser possível construir uma sociedade na qual a segurança seja obtida pela compra de proteção é uma ilusão? Será que algum dia conseguiremos nos livrar da ilusão de que para eliminar todo e qualquer mal que nos aflige basta pagar a alguém para que ele o faça, ou seja, é algo que prescinde da nossa participação? Será que um dos nossos maiores males não é exatamente o fascínio por ilusões e a antipatia por desilusões. Será que algum dia conseguiremos enxergar que a solução para uma enorme quantidade de males que nos afligem passa, inevitavelmente, por festejar a des-ilusão?

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