O texto intitulado Por um mundo melhor (apresentado nesta
postagem) foi publicado na edição de 25 de janeiro de 2001 do Jornal do
Brasil. Por que ainda espalhá-lo quase quinze anos depois? Porque, embora o
tempo tenha passado, olhando sob vários pontos de vista, um mundo melhor ainda não
chegou e o que nele é dito, infelizmente, permanece assustadoramente atual. O
autor? Joel Rufino dos Santos (1941 - 04.09.2015), professor, escritor,
jornalista e historiador. Os grifos são meus.
Por um mundo melhor
Por que os homens de bem não admitem que
bandidos tenham direitos humanos? O que são direitos humanos?
Dias atrás um juiz da Vara de Infância e
Adolescência mandou internar (prender) uma adolescente. Ela tinha fugido de uma
internação anterior (por roubo) e foi capturada quando procurou, sangrando, a
casa da mãe (aborto malfeito). As unidades de internação (prisão) do nosso
estado formam um conjunto, o Degase (Departamento Geral de Ações
Socioeducativas). Pertence à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos.
Cumprindo ordem do juiz, o Degase internou (prendeu) a menina e, como em tantas
vezes, tivemos a sensação de que nunca seremos perdoados por isso.
A decisão horrenda e o
seu cumprimento perverso pelo Estado se chamam Justiça. O que podemos fazer
para diminuir a maldade do Estado – o mais frio dos monstros frios, segundo
Niestzshe – se chama direitos humanos. Eis, assim, uma primeira definição de
direitos humanos: a correção das injustiças cometidas pelo Estado. Que ele
chame essas injustiças de Justiça é somente prova do seu embuste e frieza. Se,
no entanto, impedirmos os guardas de baterem naquela menina, se lhe dermos
escola e médico enquanto estiver internada (presa), se cuidarmos da sua
filhinha, lhe prestarmos assistência jurídica etc., não a livraremos da
injustiça (Justiça), mas diminuiremos o seu sofrimento. O próprio Degase tem instrumentos
e recursos para essa correção da maldade do Estado pelo próprio Estado. Ele é
esquizofrênico: serve injustiça com uma mão, serve direitos humanos com a
outra.
Não é, pois, difícil
entender o que são direitos humanos. É apenas outro nome de justiça. Porém,
como toda ideia, conceito, definição, norma, ética, moral, gosto, direitos
humanos têm um fundamento filosófico. Este será difícil de entender?
Todos os homens nascem
iguais, nus e da barriga de uma mulher. E, apesar de os enterros terem
diferentes preços de mercado, todos são mortais. Para muita gente esses dois
fatos pouco significam, são fatos naturais. Para os partidários dos direitos
humanos são fatos morais: obrigam a uma atitude diante do conjunto dos homens. Para os partidários dos direitos humanos, a circunstância
de todos nascermos iguais e morrermos inapelavelmente um dia liga cada homem a
todos os homens. Onde houver um homem com fome, eu serei o faminto e o causador
da fome. Onde houver um homem torturando outro, eu serei o torturado e o
torturador. No caso da menina internada, eu sou ela, a injustiçada, e sou ele,
o injustiçador em nome da Justiça.
A condição humana é, pois, a responsabilidade de todos os
homens sobre cada homem. Não há outra condição. E direitos humanos? São o
conjunto de normas de verdadeira justiça que nasce dessa responsabilidade. Os
adversários dos direitos humanos são aqueles que, por qualquer circunstância,
abriram mão dessa responsabilidade, optando por viver egoisticamente (mesmo em
nome da justiça, de Deus, das terapias que pregam o "importante é estar
bem consigo mesmo" etc.) a sua condição de homens. Quanto às declarações
de Direitos Humanos feitas por diferentes países, em diferentes momentos
históricos, seu espírito é o mesmo: em nenhuma circunstância nenhum homem será
abandonado pelos outros homens. Não será abandonado o faminto nem o banqueiro,
o polícia nem o ladrão, o "normal" nem o deficiente, o velho nem o
adulto, o juiz nem a menina e assim por diante.
Por que uma ideia tão
clara é tão rejeitada?
Primeiro, porque não é
uma simples ideia. Os direitos humanos têm
adversários em todas as classes, embora as pessoas obcecadas pela ascensão
social e a segurança os detestem em especial. Ao ouvir falar em direitos humanos,
policiais sacam a arma. Direitos humanos são mais do que uma ideia, são uma
ética, um compromisso com a humanidade de cada homem em particular. Não é difícil de entender, é difícil de aceitar – pois
exige atitude a ação a favor de todo e qualquer homem do mundo. Exige a
renúncia do egoísmo.
Segundo, porque os
direitos humanos foram mistificados por seus adversários. Eles falam de
direitos humanos como "coisa de intelectuais que não sabem o que é um
bandido". Sempre que ocorre um assassinato de policial reclamam: "Por
que não falam agora? Direitos humanos é só pra bandido!". Direitos
humanos, contudo, nada têm de "teórico", embora sua origem filosófica
possa ser rastreada, pelo menos, na Magna Carta de 1215, no Bill of Rights,
ingleses; no enciclopedismo e na Declaração de 1789, franceses; até chegar à
Declaração Universal da ONU, de 1948. Direitos
humanos são a prática cotidiana e objetiva de corrigir injustiças, mesmo para
quem não conheça aqueles documentos.
O Estado, enquanto
tal, tem por primeira função manter a ordem social: que os ricos continuem
ricos e os pobres conformados. Em seguida, o Estado é uma pá: tira renda de
baixo para concentrar em cima. Os jovens pobres que não se conformam são
punidos com o cemitério, o hospício e a internação (prisão) judicial. Para
isso, difunde um "engana trouxa": devemos todos cumprir a lei –
quando a lei não passa do código de defesa da ordem que produziu os
inconformados. O Degase está repleto de crianças pobres que não se conformam
com a pobreza. Quem são os carcereiros e, por vezes, os torturadores dessas
crianças e adolescentes? Homens e mulheres pobres e injustiçados como eles,
convencidos pela necessidade a guardar e torturar crianças e adolescentes sob o
embuste de "medidas socioeducativas". São quase todos contrários aos
direitos humanos. ("Direito humano pra bandido? Queria ver se você tivesse
uma filha estuprada por uma dessas feras!").
O Estado, quando
gerido por forças democráticas, tem recursos para corrigir a injustiça que ele
próprio comete (sob a fórmula hipócrita de medidas socioeducativas). Cria
seções, departamentos, órgãos etc, de direitos humanos. Nenhum deles funciona,
no entanto, sem participação da sociedade civil. Ocorre que a sociedade civil é
o Estado ampliado (o Estado restrito é a burocracia, mais o monopólio da
repressão). Qual a função do Estado ampliado? A mesma de qualquer Estado:
transferir renda pra cima e aplicar a lei a quem não se conforma. O tráfico
organizado de drogas, por exemplo, é um braço do Estado: concentra renda nas
mãos dos traficantes, explorando o trabalho de jovens seduzidos pelo consumo de
massa (Nike, Company, funk etc),
reprimindo-os quando saem da linha. O tráfico não prospera pela ausência do
Estado nas favelas. Ele é a sua presença.
A participação da
sociedade civil não é, portanto, garantia de que se fará justiça. Essa
possibilidade, nos marcos da nossa organização social, é a defesa daqueles a
quem ela empobrece pela exploração do trabalho, pela mais valia espetaculoísta
e pelo massacre nas instituições prisionais e de "medidas socioeducativas".
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Não é difícil de entender, é difícil de aceitar – pois
exige atitude a ação a favor de todo e qualquer homem do mundo. Exige a
renúncia do egoísmo. Sendo assim, embora seja um texto extremamente fértil para reflexões, para
evitar possíveis problemas de aceitação, abster-me-ei de compartilhar as minhas.
Porém, considerando que a aceitação da imprescindibilidade da prática dos
direitos humanos é "por um mundo melhor", minha esperança é que cada um que
tenha lido o texto de Joel Rufino dos Santos faça as suas. Compreendido?
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