sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Por um mundo melhor

O texto intitulado Por um mundo melhor (apresentado nesta postagem) foi publicado na edição de 25 de janeiro de 2001 do Jornal do Brasil. Por que ainda espalhá-lo quase quinze anos depois? Porque, embora o tempo tenha passado, olhando sob vários pontos de vista, um mundo melhor ainda não chegou e o que nele é dito, infelizmente, permanece assustadoramente atual. O autor? Joel Rufino dos Santos (1941 - 04.09.2015), professor, escritor, jornalista e historiador. Os grifos são meus.
Por um mundo melhor
Por que os homens de bem não admitem que bandidos tenham direitos humanos? O que são direitos humanos?
Dias atrás um juiz da Vara de Infância e Adolescência mandou internar (prender) uma adolescente. Ela tinha fugido de uma internação anterior (por roubo) e foi capturada quando procurou, sangrando, a casa da mãe (aborto malfeito). As unidades de internação (prisão) do nosso estado formam um conjunto, o Degase (Departamento Geral de Ações Socioeducativas). Pertence à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos. Cumprindo ordem do juiz, o Degase internou (prendeu) a menina e, como em tantas vezes, tivemos a sensação de que nunca seremos perdoados por isso.
A decisão horrenda e o seu cumprimento perverso pelo Estado se chamam Justiça. O que podemos fazer para diminuir a maldade do Estado – o mais frio dos monstros frios, segundo Niestzshe – se chama direitos humanos. Eis, assim, uma primeira definição de direitos humanos: a correção das injustiças cometidas pelo Estado. Que ele chame essas injustiças de Justiça é somente prova do seu embuste e frieza. Se, no entanto, impedirmos os guardas de baterem naquela menina, se lhe dermos escola e médico enquanto estiver internada (presa), se cuidarmos da sua filhinha, lhe prestarmos assistência jurídica etc., não a livraremos da injustiça (Justiça), mas diminuiremos o seu sofrimento. O próprio Degase tem instrumentos e recursos para essa correção da maldade do Estado pelo próprio Estado. Ele é esquizofrênico: serve injustiça com uma mão, serve direitos humanos com a outra.
Não é, pois, difícil entender o que são direitos humanos. É apenas outro nome de justiça. Porém, como toda ideia, conceito, definição, norma, ética, moral, gosto, direitos humanos têm um fundamento filosófico. Este será difícil de entender?
Todos os homens nascem iguais, nus e da barriga de uma mulher. E, apesar de os enterros terem diferentes preços de mercado, todos são mortais. Para muita gente esses dois fatos pouco significam, são fatos naturais. Para os partidários dos direitos humanos são fatos morais: obrigam a uma atitude diante do conjunto dos homens. Para os partidários dos direitos humanos, a circunstância de todos nascermos iguais e morrermos inapelavelmente um dia liga cada homem a todos os homens. Onde houver um homem com fome, eu serei o faminto e o causador da fome. Onde houver um homem torturando outro, eu serei o torturado e o torturador. No caso da menina internada, eu sou ela, a injustiçada, e sou ele, o injustiçador em nome da Justiça.
A condição humana é, pois, a responsabilidade de todos os homens sobre cada homem. Não há outra condição. E direitos humanos? São o conjunto de normas de verdadeira justiça que nasce dessa responsabilidade. Os adversários dos direitos humanos são aqueles que, por qualquer circunstância, abriram mão dessa responsabilidade, optando por viver egoisticamente (mesmo em nome da justiça, de Deus, das terapias que pregam o "importante é estar bem consigo mesmo" etc.) a sua condição de homens. Quanto às declarações de Direitos Humanos feitas por diferentes países, em diferentes momentos históricos, seu espírito é o mesmo: em nenhuma circunstância nenhum homem será abandonado pelos outros homens. Não será abandonado o faminto nem o banqueiro, o polícia nem o ladrão, o "normal" nem o deficiente, o velho nem o adulto, o juiz nem a menina e assim por diante.
Por que uma ideia tão clara é tão rejeitada?
Primeiro, porque não é uma simples ideia. Os direitos humanos têm adversários em todas as classes, embora as pessoas obcecadas pela ascensão social e a segurança os detestem em especial. Ao ouvir falar em direitos humanos, policiais sacam a arma. Direitos humanos são mais do que uma ideia, são uma ética, um compromisso com a humanidade de cada homem em particular. Não é difícil de entender, é difícil de aceitar – pois exige atitude a ação a favor de todo e qualquer homem do mundo. Exige a renúncia do egoísmo.
Segundo, porque os direitos humanos foram mistificados por seus adversários. Eles falam de direitos humanos como "coisa de intelectuais que não sabem o que é um bandido". Sempre que ocorre um assassinato de policial reclamam: "Por que não falam agora? Direitos humanos é só pra bandido!". Direitos humanos, contudo, nada têm de "teórico", embora sua origem filosófica possa ser rastreada, pelo menos, na Magna Carta de 1215, no Bill of Rights, ingleses; no enciclopedismo e na Declaração de 1789, franceses; até chegar à Declaração Universal da ONU, de 1948. Direitos humanos são a prática cotidiana e objetiva de corrigir injustiças, mesmo para quem não conheça aqueles documentos.
O Estado, enquanto tal, tem por primeira função manter a ordem social: que os ricos continuem ricos e os pobres conformados. Em seguida, o Estado é uma pá: tira renda de baixo para concentrar em cima. Os jovens pobres que não se conformam são punidos com o cemitério, o hospício e a internação (prisão) judicial. Para isso, difunde um "engana trouxa": devemos todos cumprir a lei – quando a lei não passa do código de defesa da ordem que produziu os inconformados. O Degase está repleto de crianças pobres que não se conformam com a pobreza. Quem são os carcereiros e, por vezes, os torturadores dessas crianças e adolescentes? Homens e mulheres pobres e injustiçados como eles, convencidos pela necessidade a guardar e torturar crianças e adolescentes sob o embuste de "medidas socioeducativas". São quase todos contrários aos direitos humanos. ("Direito humano pra bandido? Queria ver se você tivesse uma filha estuprada por uma dessas feras!").
O Estado, quando gerido por forças democráticas, tem recursos para corrigir a injustiça que ele próprio comete (sob a fórmula hipócrita de medidas socioeducativas). Cria seções, departamentos, órgãos etc, de direitos humanos. Nenhum deles funciona, no entanto, sem participação da sociedade civil. Ocorre que a sociedade civil é o Estado ampliado (o Estado restrito é a burocracia, mais o monopólio da repressão). Qual a função do Estado ampliado? A mesma de qualquer Estado: transferir renda pra cima e aplicar a lei a quem não se conforma. O tráfico organizado de drogas, por exemplo, é um braço do Estado: concentra renda nas mãos dos traficantes, explorando o trabalho de jovens seduzidos pelo consumo de massa (Nike, Company, funk etc), reprimindo-os quando saem da linha. O tráfico não prospera pela ausência do Estado nas favelas. Ele é a sua presença.
A participação da sociedade civil não é, portanto, garantia de que se fará justiça. Essa possibilidade, nos marcos da nossa organização social, é a defesa daqueles a quem ela empobrece pela exploração do trabalho, pela mais valia espetaculoísta e pelo massacre nas instituições prisionais e de "medidas socioeducativas".
Tivemos agora mesmo um exemplo de como a sociedade civil organizada pode ajudar na reprodução da injustiça: o Rock in Rio. As ONGs que deram seu apoio ao espetáculo lucrativíssimo, conclamando a juventude à paz, por um mundo melhor, o que fazem é benzer (como os padres que benziam o tráfico negreiro) a adesão alucinatória ao sistema que produz alienação. "Uma guitarra em alto volume é o bastante" para levar ao êxtase multidões de jovens (e velhos e crianças juvenilizados pela indústria cultural). Outrora, se chamava isso de alienação. Os que embolsam a grossa mais valia espetaculoísta do Rock in Rio não nos poupam a ironia. O Rock in Rio é "por um mundo melhor".
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Não é difícil de entender, é difícil de aceitar – pois exige atitude a ação a favor de todo e qualquer homem do mundo. Exige a renúncia do egoísmo. Sendo assim, embora seja um texto extremamente fértil para reflexões, para evitar possíveis problemas de aceitação, abster-me-ei de compartilhar as minhas. Porém, considerando que a aceitação da imprescindibilidade da prática dos direitos humanos é "por um mundo melhor", minha esperança é que cada um que tenha lido o texto de Joel Rufino dos Santos faça as suas. Compreendido?

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