sábado, 6 de junho de 2015

O empresário sem funcionários

Lançando mão de um texto recente, focalizei na postagem anterior aquela que na pirâmide de aspirações da classe empresarial ocupa a segunda posição mais alta: enfraquecer cada vez mais os laços que a unem aos outrora denominados funcionários, hoje chamados de colaboradores. A famigerada terceirização. Em conformidade com a ideia de usar a sequência de postagens para encadear temas afins e recorrendo aos meus alfarrábios, lanço mão de um antigo texto e focalizo nesta a aspiração máxima de tal classe: romper completamente tais laços, livrando-se definitivamente de colaboradores de carne e osso e passando a contar apenas com os mecanizados e / ou automatizados.
Um antigo texto publicado na edição de 16 de novembro de 1996 da extinta revista Manchete, em uma coluna intitulada Análise, assinada pelo jornalista, professor e advogado Carlos Chagas, com o seguinte título: O empresário sem funcionários. Escrito há quase dezenove anos (além do motivo citado no parágrafo anterior), espalho-o neste blog por incluí-lo entre os textos que atestam a veracidade da seguinte afirmação de Gunther Anders, filósofo alemão, em 1957: "O fascínio pelo progresso nos faz cegos para o apocalipse."
O empresário sem funcionários
Calígula queria que os romanos tivessem uma cabeça. Para degolá-los
De Calígula, dizia-se desejar que os romanos tivessem uma só cabeça para poder degolá-los de uma só vez. Pois não é que dois mil anos depois a moda voltou? E pegou. Porque a prática da estratégia do singular César vem encontrando cada vez mais discípulos entre nós.
Numa dessas colunas de variedades onde, não raro, o responsável é surpreendido pela inserção de notas que não redigiu, e, esperamos, com a totalidade das quais não precise concordar, publicou-se preciosidade digna dos tempos em que degolar era um prazer.
Diz a nota que antes mesmo de ser inaugurada uma fábrica provisória de veículos já tinha produzido 550 caminhões. Com o complemento: "e só com 100 funcionários...".
Pelo jeito o inspirador da informação, tanto faz se localizado na fábrica, na Avenida Paulista ou em alguma Bolsa de Valores, exultou por conta do pequeno número de operários aos quais precisou pagar salários. Mais feliz certamente ficaria se os 550 caminhões tivessem sido feitos por 50 funcionários. Maravilhado se diria caso tudo se produzisse com cinco. Como chegaria ao orgasmo se os caminhões pudessem ser montados sem nenhum funcionário.
A gente fica pensando onde nos levará esse modelo canibalesco que flui da chamada globalização da economia. Porque ao menos pela lógica e pela ética, como também pela política, o planeta gira em torno do sol como o habitat de todos, jamais para se transformar em condomínio ou propriedade privada de uns poucos. Todos têm o direito à vida, à saúde, à educação, ao lazer, a ir e vir e, sem esquecer, todos têm o direito ao trabalho. Querer mudar os pilares da filosofia e tornar o trabalho algo supérfluo, lentamente dispensável, mais do que discriminar a maior parte da Humanidade significará condenar o indivíduo à miséria, ao abandono e à barbárie. Essa forma cruel de livre concorrência entre a guilhotina e o pescoço sentencia o trabalhador a mero detalhe, peça descartável da atividade econômica.
A gente fica pensando onde nos levará esse modelo canibalesco que flui da chamada globalização da economia
Seguindo adiante tal processo, logo o gênero humano estará constituído por aqueles que dirigem a produção despojada do trabalho e aqueles que à margem de tudo, sem trabalho, terminarão segregados em guetos, até em continentes inteiros, condenados ao desaparecimento e, antes dele, no máximo, às migalhas da caridade.
Serão esses os novos tempos determinados pelo que alguns pascácios chamam de o fim da História? Servirá o avanço da tecnologia para criar legiões de desempregados? Tamanha ingenuidade seria aceita placidamente por essa maioria? A continuarem as coisas como vão logo emergirá a revolta como única saída. A mudança de sistema tão velhaco quanto inócuo através da rebelião.
Boa parte dos responsáveis pelos destinos das nações parece estar perdendo o rumo, depois de haver perdido o pudor. Na medida em que aceitam e até incentivam e estimulam relacionamento tão canhestro das relações entre as forças de produção, apenas se aproximam da figura de seu patrono histórico. No caso, o Calígula. Tem sido dito com certa ênfase até mesmo que o poder público não existe para atender os pobres, pessoas ou nações. Cada qual que concorra livremente...
Só que nesse exato momento o modelo segue o caminho da vaca. Vai para o brejo. Porque se a lei é a do mais forte, do mais rico, até do mais inteligente, o mínimo a fazer será demonstrar a irracionalidade da proposta antes que sucumbam os mais inteligentes, os mais ricos e os mais fortes, diante da inexorável evidência de que a natureza das coisas levará à destruição essa ordem infernal. Jamais chegaremos ao limite em que o empresário desejará que todos os seus empregados tenham uma só carteira de trabalho para poder demiti-los de uma só vez...
Como contra a natureza das coisas ninguém investe impunemente, seria bom que certos colunistas tomassem cuidado. Porque se 550 caminhões chegarem a ser produzidos sem nenhum operário, também terá chegado o dia em que suas colunas acabarão feitas apenas com notas vindas de procedência externa. Será então a hora das lamentações...
*************
Será que antes da hora das lamentações..., vale a pena encontrarmos tempo para a hora das reflexões?

Nenhum comentário: