Neste blog onde, na
maioria das vezes, o tema da próxima postagem é escolhido em função de sua afinidade
com alguma (s) ideia (s) por ele já espalhada (s) e / ou da coincidência de sua
publicação ocorrer em alguma data comemorativa que eu considere significativa,
na semana passada vi-me diante de duas opções. Destacar a completeza de uma
nova centena de postagens focalizando a imprescindibilidade da persistência ou chamar atenção para o Dia do Silêncio, lembrado no dia
sete de maio.
Tendo escolhido a
primeira opção, retardei por uma semana a postagem alusiva ao Dia do Silêncio.
Retardo que, no meu entender, em nada prejudica a publicação, mas considerando
que seria um prejuízo deixar de espalhar o artigo de Lúcia Guimarães intitulado
Silêncio, por favor, publicado na
edição de 21 de outubro de 2013 do jornal O
Estado de S. Paulo, segue o referido artigo.
Silêncio, por favor
"Por que todo
mundo está brigando?", a criança de seis anos, fazendo cara de choro,
perguntou, numa lanchonete carioca. Ninguém estava brigando. O ruído em volta
era o habitual, dos funcionários do balcão e dos fregueses que lotavam as
mesas. Mas a menina norte-americana tinha acabado de chegar, pela primeira vez,
ao Brasil. A história circula, há décadas, na minha família binacional, como anedota
sobre diferenças culturais. Hoje, Nova York compete em barulho com cidades
brasileiras – 85% das queixas sobre qualidade de vida feitas à prefeitura
nova-iorquina são sobre ruído excessivo.
Numa tarde recente,
marquei encontro com um escritor nova-iorquino no Central Park. Levamos alguns
minutos procurando um banco onde houvesse relativo silêncio para gravar a
entrevista. O barulho de aviões e helicópteros não podia ser evitado, claro.
Mal George Prochnik começou a falar, um apito ensurdecedor nos interrompeu. É o
sinal de alerta que dispara automaticamente quando veículos de serviço dão
marcha à ré, e um pequeno carro de manutenção do parque se aproximava.
Prochnik abriu um
sorriso triste, como se o ambiente em volta argumentasse por ele. Ele é autor
de um belo livro sobre o silêncio, In
Pursuit of Silence, Listening for Meaning in a Word of Noise.
À medida que se
intensificou a urbanização no século 20, a queixa sobre o ruído foi frequentemente
tratada com certo sarcasmo. Exigir silêncio é dar sinal de neurose ou de
escapismo. "Por que você não vai fazer artesanato em Mauá?", seria
uma reação comum à reclamação sobre o barulho no Rio ou em São Paulo.
Mas, como lembrou meu
interlocutor, nas últimas décadas, acumulou-se conhecimento médico sobre o preço
que pagamos pela explosão de decibéis. A poluição sonora hoje só perde para a
poluição do ar como dano à saúde e fator para encurtar a vida.
Com meu sono leve,
sempre invejei aqueles que dormem como uma pedra, a despeito do baile funk do
outro lado da rua. Pois os dorminhocos não levam vantagem. O fato é que o homem
não desenvolveu a capacidade fisiológica de se adaptar ao excesso de barulho.
Um estudo feito na Europa, em bairros perto de um movimentado aeroporto,
mostrou que quem continuava dormindo, durante pousos e decolagens, tinha alta
de pressão, pulso acelerado e liberava hormônios ligados ao estresse, não só
durante o sono, mas várias horas depois de acordar.
Prochnik, que é
enfático sem falar alto, me explica por que nós ouvimos. A audição dos mamíferos
começou como um sistema de alerta para a presença de outros animais, ainda que
distantes. Nosso ouvido evoluiu como um sofisticado amplificador para nos
proteger. O fato de que não saímos correndo ou sacamos uma arma quando a
ambulância passa na rua quer dizer apenas que a nossa consciência se adaptou à
barulheira. Mas parte do cérebro, explica o autor, não evoluiu para processar a
mudança do ambiente, de modo que a capacidade de não se incomodar com o ruído
alto é, na prática, uma falha que prejudica a saúde.
Numa realidade de
aparelhos digitais, em que a atenção é constantemente fraturada, temos a ilusão
de que o multitasking, fazer várias coisas ao mesmo tempo, é um triunfo de
controle mental. Não é, afirmam os neurocientistas, e o mesmo vale para a
distração por som. Quando alguém diz "o barulho é tanto que não consigo me
ouvir pensar", está coberto de razão. Uma das resistências ao controle do
ruído é a acusação de elitismo. E Prochnik confirma que o silêncio hoje é
privilégio para poucos. Há toda uma indústria para proteger os afluentes do
ruído, desde a máquina de lavar mais silenciosa, passando por materiais de
construção e a localização de apartamentos.
O silêncio é privilégio
para poucos. Há uma indústria para proteger os afluentes do ruído
Nunca tinha pensado na
relação entre o silêncio e a democracia, mas Prochnik me dá um exemplo que está
na origem dos Estados Unidos, no final do século 18. Reunidos na Filadélfia, os
fundadores da república, antes de redigir a Constituição, mandaram cobrir de
terra a rua de pedras em frente ao Independence Hall. Queriam abafar o trote
dos cavalos e outros ruídos de tráfego. Queriam se concentrar para imaginar a
nova democracia. A interrupção da concentração por ruídos em volta, ainda que
seja a TV ligada na sala ao lado, se reflete, sim sobre o curso da reflexão e
consequentemente, sobre a independência do pensamento.
Em seu livro, Prochnik
cita um estudo de 1938 que analisava os discursos de Adolf Hitler. A voz do
führer tinha uma média de frequência de vibrações mais alta do que a da média
da população. O próprio Hitler comentou que não teria conquistado o poder se
não fossem os alto-falantes. A voz, como lembrou Charles Darwin, pode ser uma
arma de intimidação.
Mas, da conversa com
Prochnik, as histórias que mais me assustaram foram sobre o desenvolvimento de
crianças. Ele citou um estudo feito numa escola pública americana. A
alfabetização de crianças que frequentavam as salas de aula com janela para o
tráfego intenso ficava, em média, um ano atrás da alfabetização de crianças que
estudavam em salas com janelas para o fundo silencioso do prédio.
Nem só o barulho à
distância afeta o desenvolvimento infantil. O problema está na simples
eliminação do silêncio. Aqueles aparelhos de ruído branco para abafar o ruído
da casa no quarto do bebê? Má ideia, diz ele, recorrendo à pesquisa de Michel
Merzenich, um dos pioneiros do estudo da plasticidade do cérebro. Pense numa
casa com a TV e um ventilador barulhento sempre ligados. O ruído de fundo
permanente tem, sobre a aquisição de linguagem do bebê, efeito semelhante a ser
criado por um só adulto que nasceu com fenda palatina. O cientista explica que
esta criança aprende a falar, claro, mas a sua língua seria um português
inferior porque, no começo do desenvolvimento, ela não pôde distinguir entre o
ruído de fundo e a fonética. Então, esta criança já parte para a escola com uma
capacidade mais lenta de processar linguagem.
Quando explorou a
costa brasileira, Charles Darwin descreveu o contraste do ruído ensurdecedor
dos insetos, ouvido nos navios longe da costa, e o silêncio profundo do
interior da floresta.
Ao acompanhar certos
debates em curso, seja o de políticos no Congresso ou o que divide músicos e
biógrafos, lembro da tarde com George Prochnik no Central Park. Os xingamentos,
os argumentos simplistas confirmam que o volume do barulho contribui para
abafar a democracia.
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Será que, assim como a
persistência, o silêncio também deve ser considerado imprescindível? Será que o
artigo de Lúcia Guimarães lhes provocará reflexões?
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