Assim como Caio Túlio Costa, autor do artigo Geração de babacas, também pertenço a
tal geração, mas, diferentemente de sua opinião, entendo que a situação em que
nos encontramos não seja de responsabilidade exclusiva dela, e explico.
Há uma afirmação que é
mais ou menos assim: Se uma pedra é
quebrada após levar cem marretadas, é um erro atribuir a quebra apenas a última
delas, pois o que a quebrou foram as cem. Analogamente, considero um erro
atribuir apenas a uma determinada geração a responsabilidade por qualquer mal existente em uma sociedade. Em outras palavras: enxergo a lamentável situação em que nos encontramos
como decorrência não apenas do que fez, ou deixou de fazer, a geração identificada
por Caio Túlio, mas também do que fizeram, ou deixaram de fazer, todas as
gerações que a antecederam.
Querem outra analogia?
Vocês concordam que as condições em que uma criança nasce, após nove meses de
gestação, devem ser atribuídas a tudo o que ocorreu ao longo da gestação, e não
apenas ao que ocorreu no último mês? Em suma: qualquer coisa que ocorre em
determinado momento decorre de tudo o que aconteceu até então, e não apenas ao que aconteceu, digamos, na véspera.
Embora o título identifique
apenas uma determinada geração, no artigo de Caio Túlio é identificada também
uma classe social: a classe média. E se, conforme explicado acima, em relação ao
que nele é dito em termos de geração eu discorde da opinião do autor, no que
tange ao que ele diz sobre a classe criticada minha concordância é total. Não
vejo como discordar do que é afirmado nos três seguintes parágrafos extraídos de
seu artigo.
A cada deterioração do serviço público, nós, a classe média – não importa se "média média", "alta" ou "baixa" – íamos resolvendo de modo privado cada problema, criando mundos à parte, desobrigando-nos de cobrar dos governos, do Estado, aquilo pelo qual continuamos pagando sem receber em contrapartida.
A responsabilidade pela podridão dos serviços básicos do Estado, numa análise mais profunda, não está somente nas mãos de políticos corruptos nem dos incompetentes gestores do dinheiro público. Está também na nossa incapacidade de saber cobrar do Estado o básico. Porque nós simplesmente pagamos imposto, muito imposto, para isto.
Esta responsabilidade é nossa porque com o pouquinho de dinheiro a mais que temos, nós, a classe média, tentamos solucionar particularmente aquilo que é dever do Estado. A grande maioria das gentes, a maioria da "vida real" que também acorda cedo, essa grande maioria não tem jeito de se sobrepor ao Estado, sofre quieta os infortúnios de uma vida desassistida no mais baixo dever do Estado. De onde viemos, nós o sabemos. Onde estamos idem. Pra onde vamos não se sabe. De cabeça erguida? Nada indica que sim.
"A grande maioria das gentes, a maioria da 'vida real' que também acorda cedo, essa grande maioria não tem jeito de se sobrepor ao Estado, sofre quieta os infortúnios de uma vida desassistida no mais baixo dever do Estado.", afirma Caio
Túlio. Em termos de classes sociais, eis a classe baixa.
A pequena minoria dos endinheirados, uma minoria da "vida real" que não acorda cedo, essa pequena minoria tem jeito de se
sobrepor ao Estado, usufrui ostensivamente as benesses de uma vida assistida no
mais alto dever do Estado. O dever de retribuir à ajuda monetária e ao apoio
logístico recebidos de tal minoria durante as caríssimas campanhas eleitorais. Eis
uma descrição da classe alta feita por analogia à descrição da classe baixa
apresentada no parágrafo anterior. Classe alta que por ter dinheiro de sobra tem
também menosprezo pelos serviços públicos. Afinal, em conformidade com a
soberba que a caracteriza, ela vê na capacidade de prescindir de tais serviços justamente
um dos fatores que a distinguem do resto
da sociedade. Necessitar de serviços públicos é coisa para pobre e para a classe
média, não para ela.
E completando o
conjunto das classes sociais há o contingente intermediário formado pelos
indivíduos cujas condições econômicas e financeiras situam-se entre a dos
integrantes das duas classes já citadas. Eis a classe média - não importa se "média média", "alta" ou "baixa". Classe à qual
Caio Túlio Costa atribui a "responsabilidade pela podridão dos serviços
básicos do Estado", pois "com o pouquinho de dinheiro a mais que
tem", ela arvora-se em "tentar solucionar particularmente aquilo que
é dever do Estado", ou seja, em tentar dar soluções privadas para
problemas públicos.
Soluções que, de
imediato, a iludem (o que não é ruim, pois entre seus lemas favoritos há um que
diz "me engana que eu gosto"), mas que com o decorrer do tempo acabam
revelando o que realmente são: um antigo problema revigorado ou um novo problema
oriundo de uma antiga solução. Algo como "O que não me mata me fortalece" ou "Os problemas de hoje provêm das 'soluções' de ontem".
Uma classe incauta que,
ao insistir em buscar soluções particulares para problemas coletivos, demonstra
ainda não ter entendido ser impossível haver solução cuja natureza seja
diferente da natureza do problema. Ou seja, é simplesmente impossível haver
solução privada para um problema público. Uma classe incauta que insiste em não
aceitar como verdadeira a seguinte afirmação atribuída a Marco Aurélio (121 –
180), o imperador-filósofo: "O que não convém ao enxame não convém tampouco à abelha.".
Educação, segurança, saúde e transporte, serviços públicos básicos
cuja prestação é dever do Estado e sobre os quais, há 21 anos, Caio Túlio alertava
"que a cada deterioração nós, a classe média - não importa se 'média média', 'alta' ou 'baixa' - íamos resolvendo de modo privado cada problema, criando mundos à parte, desobrigando-nos de cobrar dos governos, do Estado, aquilo pelo qual continuamos pagando sem receber em contrapartida.".
Educação, segurança, saúde e transporte, serviços públicos básicos
que, se já eram ruins há 21 anos, o decorrer do tempo só fez piorar, pois,
diferentemente da opinião de Caio Túlio, a babaquice por ele descrita não é um
atributo exclusivo de uma geração, e sim uma característica de uma
classe. Sendo assim, o tempo passou, outras gerações atingiram "o vigor de
sua produção" (usando uma expressão de Caio Túlio), mas nenhum
arrefecimento da babaquice de pretender resolver problemas públicos de modo
privado foi verificado tampouco alguma redução da
nossa incapacidade de saber cobrar do Estado o cumprimento de seus deveres.
Aliás, muito pelo contrário,
o que se vê é a crescente propagação da equivocada crença de que o Estado
não serve para nada e que nossa única opção seja entregar à iniciativa privada a
solução de todos os nossos problemas. Somos seres realmente muito estranhos! Já
que não fazemos a nossa parte, o jeito é substituir a outra parte! Somos indubitavelmente
a espécie inteligente do Universo! E ao pensar na opção de entregar à
iniciativa privada a solução de todos os nossos problemas, o que imediatamente
ocorre-me é uma estranha sensação de que, em algum momento, acabaremos perdendo
toda e qualquer iniciativa (a de
cobrar do Estado o cumprimento de seus deveres nós nunca a tivemos) e o que nos
restará será apenas a privada.
"De onde viemos, nós o sabemos. Onde estamos idem. Pra onde vamos não se sabe. De cabeça erguida? Nada indica que sim.". Eis o último parágrafo do artigo de Caio Túlio. E que juntando-o
com as últimas palavras do parágrafo acima (transformadas em indagação), resulta
em algo sinistro. "Pra onde vamos não se sabe. De cabeça erguida? Nada
indica que sim.". ...e o que nos restará será apenas a privada.
E após lembrar algumas interrogações apresentadas no parágrafo
final do artigo, eu lembro uma apresentada no parágrafo inicial. Será que a
figura que aparece no desenho de Paul Klee pode ser interpretada como "um
anjo a olhar para aquilo que os homens chamam de
progresso e se traduz num amontoado de detritos no chão?", indaga Caio Túlio.
"Um amontoado de detritos no chão."... "e o que nos restará será
apenas a privada". Será que há alguma relação entre a interpretação de Caio Túlio e
as palavras finais do segundo parágrafo acima?
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