sábado, 25 de abril de 2015

Reflexões provocadas por "Geração de babacas"

Assim como Caio Túlio Costa, autor do artigo Geração de babacas, também pertenço a tal geração, mas, diferentemente de sua opinião, entendo que a situação em que nos encontramos não seja de responsabilidade exclusiva dela, e explico.
Há uma afirmação que é mais ou menos assim: Se uma pedra é quebrada após levar cem marretadas, é um erro atribuir a quebra apenas a última delas, pois o que a quebrou foram as cem. Analogamente, considero um erro atribuir apenas a uma determinada geração a responsabilidade por qualquer mal existente em uma sociedade. Em outras palavras: enxergo a lamentável situação em que nos encontramos como decorrência não apenas do que fez, ou deixou de fazer, a geração identificada por Caio Túlio, mas também do que fizeram, ou deixaram de fazer, todas as gerações que a antecederam.
Querem outra analogia? Vocês concordam que as condições em que uma criança nasce, após nove meses de gestação, devem ser atribuídas a tudo o que ocorreu ao longo da gestação, e não apenas ao que ocorreu no último mês? Em suma: qualquer coisa que ocorre em determinado momento decorre de tudo o que aconteceu até então, e não apenas ao que aconteceu, digamos, na véspera.
Embora o título identifique apenas uma determinada geração, no artigo de Caio Túlio é identificada também uma classe social: a classe média. E se, conforme explicado acima, em relação ao que nele é dito em termos de geração eu discorde da opinião do autor, no que tange ao que ele diz sobre a classe criticada minha concordância é total. Não vejo como discordar do que é afirmado nos três seguintes parágrafos extraídos de seu artigo.
A cada deterioração do serviço público, nós, a classe média – não importa se "média média", "alta" ou "baixa" – íamos resolvendo de modo privado cada problema, criando mundos à parte, desobrigando-nos de cobrar dos governos, do Estado, aquilo pelo qual continuamos pagando sem receber em contrapartida.
A responsabilidade pela podridão dos serviços básicos do Estado, numa análise mais profunda, não está somente nas mãos de políticos corruptos nem dos incompetentes gestores do dinheiro público. Está também na nossa incapacidade de saber cobrar do Estado o básico. Porque nós simplesmente pagamos imposto, muito imposto, para isto.
Esta responsabilidade é nossa porque com o pouquinho de dinheiro a mais que temos, nós, a classe média, tentamos solucionar particularmente aquilo que é dever do Estado. A grande maioria das gentes, a maioria da "vida real" que também acorda cedo, essa grande maioria não tem jeito de se sobrepor ao Estado, sofre quieta os infortúnios de uma vida desassistida no mais baixo dever do Estado. De onde viemos, nós o sabemos. Onde estamos idem. Pra onde vamos não se sabe. De cabeça erguida? Nada indica que sim.
"A grande maioria das gentes, a maioria da 'vida real' que também acorda cedo, essa grande maioria não tem jeito de se sobrepor ao Estado, sofre quieta os infortúnios de uma vida desassistida no mais baixo dever do Estado.", afirma Caio Túlio. Em termos de classes sociais, eis a classe baixa.
A pequena minoria dos endinheirados, uma minoria da "vida real" que não acorda cedo, essa pequena minoria tem jeito de se sobrepor ao Estado, usufrui ostensivamente as benesses de uma vida assistida no mais alto dever do Estado. O dever de retribuir à ajuda monetária e ao apoio logístico recebidos de tal minoria durante as caríssimas campanhas eleitorais. Eis uma descrição da classe alta feita por analogia à descrição da classe baixa apresentada no parágrafo anterior. Classe alta que por ter dinheiro de sobra tem também menosprezo pelos serviços públicos. Afinal, em conformidade com a soberba que a caracteriza, ela vê na capacidade de prescindir de tais serviços justamente um dos fatores que a distinguem do resto da sociedade. Necessitar de serviços públicos é coisa para pobre e para a classe média, não para ela.
E completando o conjunto das classes sociais há o contingente intermediário formado pelos indivíduos cujas condições econômicas e financeiras situam-se entre a dos integrantes das duas classes já citadas. Eis a classe média - não importa se "média média", "alta" ou "baixa". Classe à qual Caio Túlio Costa atribui a "responsabilidade pela podridão dos serviços básicos do Estado", pois "com o pouquinho de dinheiro a mais que tem", ela arvora-se em "tentar solucionar particularmente aquilo que é dever do Estado", ou seja, em tentar dar soluções privadas para problemas públicos.
Soluções que, de imediato, a iludem (o que não é ruim, pois entre seus lemas favoritos há um que diz "me engana que eu gosto"), mas que com o decorrer do tempo acabam revelando o que realmente são: um antigo problema revigorado ou um novo problema oriundo de uma antiga solução. Algo como "O que não me mata me fortalece" ou "Os problemas de hoje provêm das 'soluções' de ontem".
Uma classe incauta que, ao insistir em buscar soluções particulares para problemas coletivos, demonstra ainda não ter entendido ser impossível haver solução cuja natureza seja diferente da natureza do problema. Ou seja, é simplesmente impossível haver solução privada para um problema público. Uma classe incauta que insiste em não aceitar como verdadeira a seguinte afirmação atribuída a Marco Aurélio (121 – 180), o imperador-filósofo: "O que não convém ao enxame não convém tampouco à abelha.".
Educação, segurança, saúde e transporte, serviços públicos básicos cuja prestação é dever do Estado e sobre os quais, há 21 anos, Caio Túlio alertava "que a cada deterioração nós, a classe média - não importa se 'média média', 'alta' ou 'baixa' - íamos resolvendo de modo privado cada problema, criando mundos à parte, desobrigando-nos de cobrar dos governos, do Estado, aquilo pelo qual continuamos pagando sem receber em contrapartida.".
Educação, segurança, saúde e transporte, serviços públicos básicos que, se já eram ruins há 21 anos, o decorrer do tempo só fez piorar, pois, diferentemente da opinião de Caio Túlio, a babaquice por ele descrita não é um atributo exclusivo de uma geração, e sim uma característica de uma classe. Sendo assim, o tempo passou, outras gerações atingiram "o vigor de sua produção" (usando uma expressão de Caio Túlio), mas nenhum arrefecimento da babaquice de pretender resolver problemas públicos de modo privado foi verificado tampouco alguma redução da nossa incapacidade de saber cobrar do Estado o cumprimento de seus deveres.
Aliás, muito pelo contrário, o que se vê é a crescente propagação da equivocada crença de que o Estado não serve para nada e que nossa única opção seja entregar à iniciativa privada a solução de todos os nossos problemas. Somos seres realmente muito estranhos! Já que não fazemos a nossa parte, o jeito é substituir a outra parte! Somos indubitavelmente a espécie inteligente do Universo! E ao pensar na opção de entregar à iniciativa privada a solução de todos os nossos problemas, o que imediatamente ocorre-me é uma estranha sensação de que, em algum momento, acabaremos perdendo toda e qualquer iniciativa (a de cobrar do Estado o cumprimento de seus deveres nós nunca a tivemos) e o que nos restará será apenas a privada.
"De onde viemos, nós o sabemos. Onde estamos idem. Pra onde vamos não se sabe. De cabeça erguida? Nada indica que sim.". Eis o último parágrafo do artigo de Caio Túlio. E que juntando-o com as últimas palavras do parágrafo acima (transformadas em indagação), resulta em algo sinistro. "Pra onde vamos não se sabe. De cabeça erguida? Nada indica que sim.". ...e o que nos restará será apenas a privada.
E após lembrar algumas interrogações apresentadas no parágrafo final do artigo, eu lembro uma apresentada no parágrafo inicial. Será que a figura que aparece no desenho de Paul Klee pode ser interpretada como "um anjo a olhar para aquilo que os homens chamam de progresso e se traduz num amontoado de detritos no chão?", indaga Caio Túlio. "Um amontoado de detritos no chão."... "e o que nos restará será apenas a privada". Será que há alguma relação entre a interpretação de Caio Túlio e as palavras finais do segundo parágrafo acima?

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