Conforme prometido no
parágrafo final da postagem anterior, esta apresenta um antigo artigo onde um conhecido
jornalista, também escritor, adverte sobre uma condenável atitude de uma
geração de uma determinada classe de um determinado país. Que atitude é essa? A
equivocada mania de pretender resolver problemas públicos por meio de soluções
(sic) privadas. O artigo é assinado por Caio Túlio
Costa e foi
publicado na edição de 12 de junho de 1994 da
extinta Revista da Folha, uma revista
que fazia parte da edição dominical do jornal Folha de S.Paulo. A quem ficar chocado (a) com o espalhamento de
ideias apresentadas em um artigo publicado há 21 anos ou com o título a ele
dado, alerto que é enorme a probabilidade de ficar ainda mais chocado (a) com o que
nele é dito.
Existem interrogações
metafísicas no desenho de Paul Klee que ilustra esta página. De onde? Onde?
Para onde? As questões não se esgotam na dúvida da identidade. A última delas
até suspira por um futuro incerto, calibrado pela cabeça curva do personagem,
pelo olhar para baixo. Será um anjo como outros de Klee? Outro a olhar para
aquilo que os homens chamam de progresso e se traduz num amontoado de detritos
no chão? Desafortunadamente, o preço do progresso requer doses incomensuráveis
de detritos. Mais um paradoxo da dita civilização.
Este blablablá metafísico vem
a propósito das responsabilidades de pessoas que hoje têm mais ou menos a minha
idade, ou seja, estão entre os 35 e 45 anos (eu chego aos 40 agora) e não se
dão conta do quanto se desobrigaram do papel de cobradores permanentes dos
deveres do Estado, se esqueceram de sua cidadania.
Tentarei ser claro. Esta
turma, que está no vigor de sua produção, pouco fez para honrar a herança de
cidadania deixada pelos avós e pais no que toca aos serviços prestados pelo
Estado.
Eles, nossos avós e nossos
pais, nos deram uma boa escola pública. Quando ela degringolou nas mãos de
governos por nós eleitos, fomos atrás das escolas particulares e lá
matriculamos nossos filhos, pagando mais para dar-lhes uma provável educação "à altura".
Eles nos deram ruas calmas,
sem violência, sem assaltos. Podíamos brincar "lá
fora", passear e fazer compras com sossego. Quando a criminalidade
explodiu, nós contratamos os porteiros e seguranças dos prédios, instalamos
circuitos internos de televisão, nos refugiamos em condomínios fechados,
ajudamos a emplacar shopping centers fechados e seguros, fugimos das ruas com
as janelas fechadas dos carros.
Eles nos deram hospitais
públicos que funcionavam com decência e eram limpos. Quando as filas cresceram
e o atendimento destemperou, nós fomos atrás dos planos mirabolantes de saúde,
engordamos a indústria das clínicas, resolvemos tudo particularmente.
Eles nos deram trens, ônibus,
transporte público funcional. Quando os ônibus e os trens se encheram de gente,
transbordantes, quando as poucas linhas de metrô passaram a não dar conta,
compramos o primeiro carro, o segundo, arrumamos táxis ou motoristas só para
levar crianças à escola...
A cada deterioração do
serviço público, nós, a classe média – não importa se "média média", "alta" ou "baixa" – íamos resolvendo de modo
privado cada problema, criando mundos à parte, desobrigando-nos de cobrar dos
governos, do Estado, aquilo pelo qual continuamos pagando sem receber em
contrapartida.
Buscamos soluções privadas para a queda do serviço público, obrigação do Estado
A responsabilidade pela
podridão dos serviços básicos do Estado, numa análise mais profunda, não está
somente nas mãos de políticos corruptos nem dos incompetentes gestores do
dinheiro público. Está também na nossa incapacidade de saber cobrar do Estado o
básico. Porque nós simplesmente pagamos imposto, muito imposto, para isto.
Esta responsabilidade é nossa
porque com o pouquinho de dinheiro a mais que temos, nós, a classe média,
tentamos solucionar particularmente aquilo que é dever do Estado. A grande
maioria das gentes, a maioria da "vida real" que também acorda cedo, essa grande maioria não tem jeito de se
sobrepor ao Estado, sofre quieta os infortúnios de uma vida desassistida no
mais baixo dever do Estado. De onde viemos, nós o sabemos. Onde estamos idem.
Pra onde vamos não se sabe. De cabeça erguida? Nada indica que sim.
Ilustração: "De onde? Onde?
Para Onde?", feita em 1940 por Paul Klee (1879 – 1940).
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Decorridos 21 anos de sua publicação, creio que refletir
sobre o que é dito no artigo de Caio Túlio Costa continue sendo algo imprescindível, pois concordo inteiramente com a seguinte afirmação atribuída a Moshe Feldenkrais: "Se não
fizermos nada para mudar nossa atitude e o nosso modo de atuar; amanhã parecerá
ontem, exceto pela data."
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