segunda-feira, 2 de março de 2015

Reflexões provocadas por "Abaixo a competição"

"O Dr. Terry Orlick é um dos principais defensores da desenfatização do espírito competitivo. No seu livro Vencendo a competição (Winning through Cooperation), ele recomenda alternativas de cooperação para a insanidade competitiva nos dias de hoje."
O parágrafo acima foi extraído do prefácio do livro nele citado, publicado em 1978. Um livro escrito por "um dos principais defensores da desenfatização do espírito competitivo recomendando alternativas de cooperação para a insanidade competitiva nos dias daquele hoje." Aquele hoje passou, o espírito competitivo cada vez mais enfatizado ficou, a insanidade competitiva só aumentou, e uma afirmação atribuída a Moshe Feldenkrais cada vez mais verdadeira ficou: "Se não fizermos nada para mudar nossa atitude e o nosso modo de atuar; amanhã parecerá ontem, exceto pela data."
Felizmente, assim como ontem também hoje existem indivíduos dispostos a defender a desenfatização do espírito competitivo e a imprescindibilidade da prática da cooperação. E para realizar tal defesa creio que o mais natural seja cada um deles fazê-la segundo a sua formação e as suas atividades profissionais. É em conformidade com a frase anterior que eu vejo a atuação de Simon Sinek.
Na condição de consultor, "após passar a aconselhar empresas como Disney, 3M, Pfizer, KPMG, Microsoft e American Express", Sinek escreveu um livro intitulado Leaders Eat Last (em tradução literal, "Líderes comem por último") ainda sem previsão de publicação no Brasil. Livro onde, pelo que deduzi a partir do próprio título e da entrevista concedida por Sinek à revista EXAME, ele condena a competição e critica estilos de liderança que a incentivem. Perguntado sobre o significado da metáfora que intitula seu livro mais recente, Sinek respondeu:
"Na carreira militar, condecoram-se os líderes que se sacrificam pelos outros. No mundo corporativo, o mais usual é premiar com bônus os executivos dispostos a sacrificar os outros para que eles e as empresas, supostamente, saiam ganhando. É um contrassenso. Em uma conversa com um almirante, perguntei a ele por que a Marinha americana é tão boa naquilo que faz? Ele me contou que, na hora das refeições, os marinheiros juniores comem primeiro, e os seniores comem por último. Não é uma regra escrita, mas reflete a forma como eles definem liderança." (os grifos são meus)
Pelo meu entendimento, foi da adaptação da resposta do almirante que Simon Sinek definiu o título de seu livro. "Os seniores comem por último", diz o almirante. "Líderes comem por último", diz o título do livro. E prosseguindo na linha de comer por último eu cheguei a uma passagem de um livro intitulado A delicada questão da vida dentro e fora da Terra, de Celso Martins. Passagem onde, segundo o autor, é relatado um episódio extraído da edição de maio de 1958 da revista Seleções do Reader’s Digest. Episódio que, por sua vez, foi extraído de uma reportagem focalizando a inteligência prática de muitos animais, e que é apresentado a seguir.
Operação Caribu
"Quando eu era da Real Força Aérea Canadense, declara S. S. Estes, fomos um dia designados para proceder à Operação Caribu. Nos invernos rigorosos os caribus são compelidos a procurar alimento para sobreviver e os rebanhos emigram para o sul. A finalidade da Operação Caribu era a de localizar os animais migradores e jogar toneladas de feno para eles.
A uns 650 quilômetros ao Norte de Winnipeg, conseguimos localizar uma grande manada. Muitos animais estavam deitados, evidentemente fracos demais para se porem de pé. Quando o feno caiu, aqueles que estavam deitados, nem tentaram se levantar. Mas quando demos uma volta para observá-los melhor, deparamos com um espetáculo extraordinário: alguns dos animais mais fortes aproveitavam-se do feno, apanhavam um pouco com a boca e iam colocá-lo diante dos companheiros enfraquecidos antes mesmo de eles próprios, os mais fortes, comerem."
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Na Marinha americana, "Os seniores comem por último". Entre os caribus migradores, "Os mais fortes comem por último". E no mundo corporativo, quem come por último? Nesse competitivo mundo, onde foi tornada usual a premiação com bônus, o que também é usual é a existência de quem não come nem por último, pois o critério estabelecido pelos executivos para a distribuição de tais bônus jamais contempla a totalidade dos executados. Como diz Sinek em sua entrevista e eu confirmo com o conhecimento de causa por ter atuado em tal mundo durante 3,7 décadas, "No mundo corporativo, o mais usual é premiar com bônus os executivos dispostos a sacrificar os outros para que eles e as empresas, supostamente, saiam ganhando. É um contrassenso.".
Ao afirmar que "Líderes inspiradores fazem com que seus subordinados respondam a seus apelos com sangue, suor e lágrimas.", Simon Sinek leva a entrevistadora a lhe perguntar se "Há bons exemplos de líderes inspiradores". Pergunta cuja resposta começa assim: "Eles são poucos.". Resposta que, no meu entender, dá o que pensar.
Será que líderes inspiradores é uma redundância? Afinal ser líder é exatamente ser capaz de inspirar outras pessoas. Será que o nosso problema não está exatamente em confundir mandar com liderar; em confundir chefe com líder? Vejam o que diz Carlos Salles (presidente da subsidiária da Xerox do Brasil, de 1989 a 1999) no prefácio do livro Mandar é Fácil...Difícil é Liderar, de Jorge Lessa: "Parece inacreditável, mas em plena soleira do terceiro milênio ainda existe muita confusão entre o real significado dos verbos 'mandar' e 'liderar'".
Segundo Robert Goffee e Gareth Jones, vencedores, no ano de 2006, do prestigioso Prêmio McKinsey para o melhor artigo publicado na Harvard Business Review com um artigo intitulado "Por que alguém deveria ser liderado por você?", dizem que, apenas no ano de 2005, mais de dois mil livros sobre liderança foram publicados. Ou seja, liderança é algo sobre o qual muito se fala, muito se escreve, pouco se entende e muito se confunde, se considerarmos a verdadeira acepção da palavra. Confundir chefe com líder é algo que, no meu entender, ocorre na entrevista que provocou esta postagem. Segue a resposta de Sinek à pergunta "Qual é a importância de ter líderes que se sacrificam pela equipe?".
"É a melhor maneira de ter um ambiente menos agressivo, em que haja mais colaboração entre os funcionários. Caso contrário, no longo prazo, o excesso de competitividade interna se torna prejudicial. Quando as pessoas sentem que o líder faria qualquer coisa para se beneficiar, que ele mentiria para parecer melhor do que é, a resposta natural é paranoia e egoísmo. Quando os funcionários acreditam que o líder sacrificaria seu bônus para evitar demissões, eles se sentem seguros. A resposta natural é confiança e cooperação. O homem é um animal social e responde ao ambiente onde está. É por isso que o chefe deve criar um círculo de segurança em torno de sua equipe." (os grifos são meus)
Vejam que na resposta de Sinek aparecem as palavras líder e chefe. Não, um líder jamais faria qualquer coisa para se beneficiar, jamais mentiria para parecer melhor do que é, pois atitudes como essas são típicas de chefes, não de líderes. Chefes, na maioria das vezes, incentivam a competição; líderes sempre incentivam a cooperação.
Como afirma o título do livro de Simon Sinek, líderes comem por último. O problema é que no tal do mundo corporativo a existência de líderes é algo raríssimo, e o que nele prolifera são os chefes, e dentre estes são poucos os que se dispõem a comer por último, pois dessa espécie a maioria dos representantes segue o seguinte lema: "farinha pouca, meu pirão primeiro". Sendo assim, para aqueles que conhecem a verdadeira acepção da palavra líder e as figuras que no mundo corporativo ostentam tal denominação, o título do livro de Simon Sinek pode sugerir que ele seja de ficção. Mas ficção ou não, considero que o simples fato de condenar a competição já seja motivo suficiente para lê-lo. 
Esta postagem começa citando o Dr. Terry Orlick e termina com uma de suas afirmações: "A competitividade humana simplesmente não é necessária para a sobrevivência do homem; no máximo, é uma ameaça a ela.". Portanto, abaixo a competição; e acima a cooperação.
Em tempo: em 19.01.2013 foi publicada neste blog uma postagem intitulada Hipocrisias corporativas – Liderança que, no meu entender, vale a pena ler.

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