Se quisermos realmente entender a encrenca em que estamos metidos, nessa história de escassez de água, faz-se necessário interessar-se em ler algo sobre uma coisa denominada hidronegócio. Foi com essa afirmação que encerrei a postagem anterior. Portanto, em conformidade com ela, segue a íntegra de um
artigo do jornalista e escritor Sérgio Augusto, publicado na edição de 12 de
outubro de 2014 do jornal O Estado de S. Paulo com o título O jorro
do hidronegócio.
O jorro do hidronegócio
Como as irmãs do petróleo, seis empresas controlam a sua, a minha, a nossa água
Se não começar a chover em abundância a partir
da próxima semana, os paulistanos terão de pedir água de presente a Papai Noel.
Se a chuva só cair sobre a capital e não na cabeceira dos rios que abastecem o
Sistema Cantareira, 6,5 milhões de pessoas poderão ficar sem água em suas
torneiras. A fonte está secando, e a culpa é menos de São Pedro que de São
Paulo; ou, melhor dito, da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico de São
Paulo), que subestimou os estragos que as mudanças climáticas, a poluição e a
extração descontrolada de recursos hídricos vêm causando ao consumo de água,
aqui e lá fora.
Revelou-se há dias que a Sabesp sabia do risco
de desabastecimento no Sistema Cantareira desde 2012, mas só começou a encarar
o problema oito meses atrás, quando criou aquele bônus para quem economizasse
água. Em 2012, limitou-se a alertar investidores da Bolsa de Nova York para a
estiagem prevista e seu impacto nas finanças da empresa. Ainda segundo o
promotor público Rodrigo Sanches Garcia, a Sabesp captou mais água que o
autorizado para não prejudicar, acima de tudo, o valor de suas ações. Ou seja,
tratou a água como "um negócio", não como um bem coletivo, acusou o
procurador.
O Sistema Cantareira responde por 73% da
receita da Sabesp, cujos gestores, aliás, não são os únicos culpados pela crise
em curso. Haja vista as ações civis também impetradas contra a ANA (Agência
Nacional de Águas) e o DAEE (Departamento de Águas e Energia Elétrica),
coniventes com o descaso.
Enquanto rezam para São Pedro e lamentam que
Joe Btfsplk, aquele impronunciável personagem dos quadrinhos de Ferdinando que
vive com um permanente cúmulo-nimbo sobre a cabeça, não possa visitar a Bacia
do Rio Piracicaba, os paulistanos e seus vizinhos mais próximos podem fazer sua
catarse baixando da Amazon a versão kindle de um livro esclarecedor sobre a
crise da água: The Price of Thirst (O preço da sede), de Karen Piper
(University of Minnesota Press, 296 págs., US$ 14,99), lançado na semana
passada. Seu subtítulo (Global Water Inequality and the Coming Chaos)
resume em sete palavras o caos que a má distribuição e exploração comercial da
água deverão causar em escala mundial caso nada seja feito para sustar a
ganância do hidronegócio.
Como o ar que respiramos, a água é um bem
essencial, um direito humano, reconhecido como tal pela ONU, não uma
mercadoria, uma commodity. O que não impediu que, na semana passada, um juiz
tenha secado as torneiras de dezenas de milhares de residentes em Detroit sem
grana para pagar a conta de água, que a Sabesp tenha demorado a repassar aos
clientes o que seus acionistas já sabiam há dois anos e, pior ainda, que 20% do
planeta continue sem acesso a água potável. Assegurar a todos água limpa e
saneamento básico gratuitos é uma obrigação, um compromisso com a sobrevivência
da humanidade. Se nada mudar, daqui a uns dez anos dois terços da população
mundial terão de comprar água limpa daqueles que há tempos sacaram que a água é
o petróleo do século 21.
Água é bem essencial, não uma commodity
Água é o que não falta. A Terra ainda dispõe
da mesma quantidade de H2O do tempo dos dinossauros; o que mudou foi
sua localização, alterada por mudanças climáticas e pela exploração do solo.
Faltam sim reservatórios, açudes e aquíferos que não estejam quase
exclusivamente a serviço da agricultura ou administrados por corporações
internacionais, que se comportam como se explorassem minerais, madeiras e
energia solar.
Seria ótimo se fosse possível desviar água do
Solimões para as tubulações da Grande São Paulo. Ainda que fosse, custaria uma
fortuna incalculável. Mais fácil mover as pessoas, inventar um novo urbanismo,
construir prédios compactos e ecologicamente inteligentes, observa Karen Piper.
Isso, porém, não faz parte da agenda do Banco Mundial e do FMI, que
"vendem outros modelos de urbanização" e facilitam a prosperidade do
hidronegócio, hoje comandado por corporações sem a visibilidade da Shell,
Exxon, BP, Petrobrás, mas, no seu setor, igualmente poderosas e sedentas de
lucro: Suez, Veolia, Thames, American Water, Bechtel e Dow Chemicals (sim,
aquela mesma que fabricava bombas de napalm e agente laranja usadas na Guerra
do Vietnã). Juntas controlam mais de 70% da água "privatizada".
O New York Times cantou a pedra em
2006. "Sede dá lucro" alardeava o título de uma reportagem
("There's money in thirst"), com informações inéditas sobre o mercado
hídrico, que àquela altura já valia centenas de bilhões de dólares. "Mais
promissor que a exploração de petróleo", concluía a reportagem.
Amparada por quatro bolsas de estudo, Piper
passou uma década viajando e recolhendo dados para seu livro. Viu de perto como
funcionam o Conselho Mundial de Água (World Water Council) e seu fórum trienal
(World Water Forum), com representantes da ONU, especialistas em desenvolvimento,
ministros de minas e energia, chefes de Estado e, dominando a cena, os
mandachuvas de multinacionais que exploram recursos hídricos nos cinco
continentes. Os fóruns são uma espécie de Davos da água. Sempre em países
diferentes, e já de algum tempo também hostilizados por um Fórum Alternativo
Mundial da Água (Fame, na sigla em francês), que adotou um slogan em inglês:
"Water for life, not for profit", água é vida, não é negócio.
O primeiro fórum foi em Marrakesh, em 1997. O
próximo, ano que vem, será na Coreia, e o seguinte, em 2018, em Brasília. Nada
mais justo, pois o Brasil, este paraíso hídrico cuja maior cidade está ameaçada
de ficar sem água no próximo ano, tem representação expressiva no World Water
Council. Pelo relato de Piper, os fóruns não resolvem nada. São um blá-blá-blá
pomposo, regado a champanhe e caviar. Com muita água mineral de graça para os
abstêmios matarem a sede.
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Será que o artigo de
Sérgio Augusto ajuda-nos a entender a encrenca em que estamos metidos quanto à
escassez de água? Vocês tinham conhecimento das informações nele contidas? Será
que devemos interessar-nos em refletir sobre elas?
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