Sono: estado de repouso
normal e periódico, que no homem e nos animais superiores se caracteriza
especialmente pela supressão da atividade perceptiva e motora voluntária, e que
é variável em seu grau de profundidade, encontrando-se a vontade e a consciência
em estado parcial ou total de suspensão temporária. Sonâmbulo: indivíduo que anda, fala e se levanta durante o sono; indivíduo
que age automaticamente, de maneira desconexa. Sonambulismo: estado ou doença do sonâmbulo. Sonambúlico: de, ou próprio de sonâmbulo. Impressão: estado físico ou psicológico resultante da atuação de
elementos ou situações exteriores sobre os órgãos dos sentidos, por intermédio
deles ou sobre o corpo ou sobre a mente; sensação.
A finalidade do momento dicionário apresentado no parágrafo
anterior é auxiliar na interpretação do episódio citado em uma passagem intitulada Despertamento,
extraída do livro Um caso de amor com a vida, de Regis de Morais,
publicado em 2003, apresentado a seguir.
Despertamento
Ouça esta história
muito peculiar.
Na primeira metade do
século XX, um cientista russo de nome Ouspensky deslocou-se, com sacrifícios
pessoais, da Rússia até Paris em busca de um sábio sufi de nome Gurdjeff. Com
este último, Ouspensky desejava fazer uma formação filosófica e psicológica.
Uma vez tendo localizado e contatado Gurdjeff, encontraram-se ambos no
apartamento habitado pelo mestre.
Tendo, o ainda jovem
cientista, revelado sua intenção, pediu-lhe mestre Gurdjeff que ficasse por
três dias ali em seu apartamento. Gurdjeff iria para a casa de um amigo, para
deixar inteiramente só o seu novo discípulo. Recomendou a este: "Deixe cerradas
as cortinas e não atenda se baterem à porta; também não atenda ao telefone,
pois, sendo recém-chegado a Paris, a chamada não será para você." O mestre
explicou que aqueles seriam três dias de isolamento, inteiramente na presença de si mesmo.
Assim orientado, assim
feito. Os dias se arrastaram em uma sucessão de perplexidades, calmas,
desesperos e rápidos sonos. Passado o tempo proposto, Gurdjeff voltou ao seu
apartamento e, após breves palavras, convidou seu discípulo para dar uma
caminhada pelas ruas de Paris.
Saíram para caminhar.
Após certo tempo caminhando praticamente em silêncio no meio da agitação,
Ouspensky segurou o mestre fortemente pelo braço, dizendo-lhe: "Senhor, tenho a
estranha impressão de que estão todos dormindo, só nos dois caminhamos
acordados!" O mestre observou que sua impressão era correta. Ambos transitavam
entre seres sonambúlicos, ora andando apressados para nada, ora buscando
agitadamente ninharias, ora em pesadelos de real sofrimento; mas estavam
dormindo. Disse Gurdjeff: "Você é excelente aluno. Observe que este estado de
sonambulismo é de toda, ou quase toda a humanidade. O trabalho a que nos
propomos deve ser exatamente o de provocarmos o despertamento dos nossos
irmãos."
Eis um episódio
marcante.
E ainda da passagem
intitulada Despertamento selecionei o
seguinte parágrafo.
Pascal, o matemático e
filósofo do século XVII, pediu que tomássemos cuidado com o divertissement; ele não nos falava da
diversão comedida que nos garante o lado lúdico do viver. Falava-nos da
obsessão por divertir-nos, exatamente como forma de anestesia e alienação que
leva a um desenfreado sonambulismo.
*************
"(...) ambos
transitavam entre seres sonambúlicos, ora andando apressados para nada, ora
buscando agitadamente ninharias". Soa-lhes familiar a situação vivenciada
pelo cientista e pelo sábio? Para mim, sim. Situação vivenciada em 1915 que
leva-me a seguinte indagação: como sentiriam-se Ouspensky e Gurdjeff hoje,
exatos cem anos depois, transitando entre
seres sonambúlicos, a cada dia mais hipnotizados por telas de
aparelhos inteligentes?
"três dias de
isolamento, inteiramente na presença de si mesmo.", eis a primeira recomendação
do mestre Gurdjeff para o discípulo que o procurara com a intenção de tornar-se
consciente. Recomendação aceita por Ouspensky, mas de difícil aceitação pela
maioria dos integrantes desta civilização (sic), pois, segundo o mestre, o estado
de sonambulismo, percebido pelo discípulo, era de toda, ou quase toda a humanidade. Recomendação que me faz
lembrar uma afirmação do famoso fotógrafo Sebastião Salgado: "Viajei muito
no 'Gênesis', mas a maior viagem que fiz foi ao interior de mim mesmo. Foi me
reencontrar."
Cem anos se passaram trazendo
um desenvolvimento tecnológico alucinante do qual um dos grandes efeitos
colaterais é o agravamento do estado de sonambulismo em que vive a humanidade.
Ou seja, em relação à afirmação de Gurdjeff, o "quase toda a humanidade" está cada vez mais para toda e menos para quase. A fascinação por conectar-se a tudo e todos, em tempo
integral, oferecida pela tecnologia, torna cada vez maior o contingente de
indivíduos desprovidos do mínimo desejo de estar na presença de si mesmo.
Desprovimento do qual resulta a impossibilidade do despertamento para coisas
como a imprescindibilidade de descobrir qual seja a nossa verdadeira natureza,
o motivo de nossa passagem por esta dimensão deste planeta e a finalidade da
civilização.
Despertamento cuja ocorrência, muito provavelmente, levará a dita espécie inteligente do universo a interessar-se em refletir sobre a seguinte afirmação do teólogo, filósofo e paleontólogo francês Pierre Teilhard de Chardin (1881 - 1955): "Não somos seres humanos vivendo uma experiência espiritual, somos seres espirituais vivendo uma experiência humana." E também sobre uma afirmação do cirurgião, fisiologista, biólogo e sociólogo Alexis Carrel (1873 - 1944): "A civilização não tem como finalidade o progresso das máquinas; mas sim o do homem".
Afirmações que, no meu entender, têm tudo a ver com as seguintes palavras de Gurdjeff: "Você é excelente aluno. Observe que este estado de
sonambulismo é de toda, ou quase toda a humanidade. O trabalho a que nos
propomos deve ser exatamente o de provocarmos o despertamento dos nossos
irmãos.". Palavras de Gurdjeff a Ouspensky. Palavras que, não sendo nós
discípulos de Gurdjeff, nos chegaram de forma indireta, mas que chegaram.
Portanto, na condição de integrantes da autodenominada espécie inteligente do
universo, que tal refletirmos sobre elas?
E neste blog onde a
maioria das postagens costuma ter alguma relação com a anterior, termino esta
estabelecendo uma relação com a anterior. "Eu convido você a ir em frente, ser visto e se perguntar: se não
eu, quem? Se não agora, quando? Obrigada." Foi com essas palavras que Emma
Watson encerrou seu inspirador discurso com o qual, no meu entender, visava
provocar o despertamento para a
imprescindibilidade da cooperação entre homens e mulheres em prol da construção
de um mundo melhor para ambos os gêneros. Provocar
o despertamento dos nossos irmãos! Eis, segundo Gurdjeff, exatamente o trabalho a que devemos nos
propor." Trabalho cuja consecução tem como condição imprescindível o nosso
próprio despertamento. Compreendido?
Nenhum comentário:
Postar um comentário