domingo, 15 de março de 2015

Despertamento

Sono: estado de repouso normal e periódico, que no homem e nos animais superiores se caracteriza especialmente pela supressão da atividade perceptiva e motora voluntária, e que é variável em seu grau de profundidade, encontrando-se a vontade e a consciência em estado parcial ou total de suspensão temporária. Sonâmbulo: indivíduo que anda, fala e se levanta durante o sono; indivíduo que age automaticamente, de maneira desconexa. Sonambulismo: estado ou doença do sonâmbulo. Sonambúlico: de, ou próprio de sonâmbulo. Impressão: estado físico ou psicológico resultante da atuação de elementos ou situações exteriores sobre os órgãos dos sentidos, por intermédio deles ou sobre o corpo ou sobre a mente; sensação.
A finalidade do momento dicionário apresentado no parágrafo anterior é auxiliar na interpretação do episódio citado em uma passagem intitulada Despertamento, extraída do livro Um caso de amor com a vida, de Regis de Morais, publicado em 2003, apresentado a seguir.
Despertamento
Ouça esta história muito peculiar.
Na primeira metade do século XX, um cientista russo de nome Ouspensky deslocou-se, com sacrifícios pessoais, da Rússia até Paris em busca de um sábio sufi de nome Gurdjeff. Com este último, Ouspensky desejava fazer uma formação filosófica e psicológica. Uma vez tendo localizado e contatado Gurdjeff, encontraram-se ambos no apartamento habitado pelo mestre.
Tendo, o ainda jovem cientista, revelado sua intenção, pediu-lhe mestre Gurdjeff que ficasse por três dias ali em seu apartamento. Gurdjeff iria para a casa de um amigo, para deixar inteiramente só o seu novo discípulo. Recomendou a este: "Deixe cerradas as cortinas e não atenda se baterem à porta; também não atenda ao telefone, pois, sendo recém-chegado a Paris, a chamada não será para você." O mestre explicou que aqueles seriam três dias de isolamento, inteiramente na presença de si mesmo.
Assim orientado, assim feito. Os dias se arrastaram em uma sucessão de perplexidades, calmas, desesperos e rápidos sonos. Passado o tempo proposto, Gurdjeff voltou ao seu apartamento e, após breves palavras, convidou seu discípulo para dar uma caminhada pelas ruas de Paris.
Saíram para caminhar. Após certo tempo caminhando praticamente em silêncio no meio da agitação, Ouspensky segurou o mestre fortemente pelo braço, dizendo-lhe: "Senhor, tenho a estranha impressão de que estão todos dormindo, só nos dois caminhamos acordados!" O mestre observou que sua impressão era correta. Ambos transitavam entre seres sonambúlicos, ora andando apressados para nada, ora buscando agitadamente ninharias, ora em pesadelos de real sofrimento; mas estavam dormindo. Disse Gurdjeff: "Você é excelente aluno. Observe que este estado de sonambulismo é de toda, ou quase toda a humanidade. O trabalho a que nos propomos deve ser exatamente o de provocarmos o despertamento dos nossos irmãos."
Eis um episódio marcante.
E ainda da passagem intitulada Despertamento selecionei o seguinte parágrafo.
Pascal, o matemático e filósofo do século XVII, pediu que tomássemos cuidado com o divertissement; ele não nos falava da diversão comedida que nos garante o lado lúdico do viver. Falava-nos da obsessão por divertir-nos, exatamente como forma de anestesia e alienação que leva a um desenfreado sonambulismo.
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"(...) ambos transitavam entre seres sonambúlicos, ora andando apressados para nada, ora buscando agitadamente ninharias". Soa-lhes familiar a situação vivenciada pelo cientista e pelo sábio? Para mim, sim. Situação vivenciada em 1915 que leva-me a seguinte indagação: como sentiriam-se Ouspensky e Gurdjeff hoje, exatos cem anos depois, transitando entre seres sonambúlicos, a cada dia mais hipnotizados por telas de aparelhos inteligentes?
"três dias de isolamento, inteiramente na presença de si mesmo.", eis a primeira recomendação do mestre Gurdjeff para o discípulo que o procurara com a intenção de tornar-se consciente. Recomendação aceita por Ouspensky, mas de difícil aceitação pela maioria dos integrantes desta civilização (sic), pois, segundo o mestre, o estado de sonambulismo, percebido pelo discípulo, era de toda, ou quase toda a humanidade. Recomendação que me faz lembrar uma afirmação do famoso fotógrafo Sebastião Salgado: "Viajei muito no 'Gênesis', mas a maior viagem que fiz foi ao interior de mim mesmo. Foi me reencontrar."
Cem anos se passaram trazendo um desenvolvimento tecnológico alucinante do qual um dos grandes efeitos colaterais é o agravamento do estado de sonambulismo em que vive a humanidade. Ou seja, em relação à afirmação de Gurdjeff, o "quase toda a humanidade" está cada vez mais para toda e menos para quase. A fascinação por conectar-se a tudo e todos, em tempo integral, oferecida pela tecnologia, torna cada vez maior o contingente de indivíduos desprovidos do mínimo desejo de estar na presença de si mesmo. Desprovimento do qual resulta a impossibilidade do despertamento para coisas como a imprescindibilidade de descobrir qual seja a nossa verdadeira natureza, o motivo de nossa passagem por esta dimensão deste planeta e a finalidade da civilização.
Despertamento cuja ocorrência, muito provavelmente, levará a dita espécie inteligente do universo a interessar-se em refletir sobre a seguinte afirmação do teólogo, filósofo e paleontólogo francês Pierre Teilhard de Chardin (1881 - 1955): "Não somos seres humanos vivendo uma experiência espiritual, somos seres espirituais vivendo uma experiência humana." E também sobre uma afirmação do cirurgião, fisiologista, biólogo e sociólogo Alexis Carrel (1873 - 1944): "A civilização não tem como finalidade o progresso das máquinas; mas sim o do homem".
Afirmações que, no meu entender, têm tudo a ver com as seguintes palavras de Gurdjeff: "Você é excelente aluno. Observe que este estado de sonambulismo é de toda, ou quase toda a humanidade. O trabalho a que nos propomos deve ser exatamente o de provocarmos o despertamento dos nossos irmãos.". Palavras de Gurdjeff a Ouspensky. Palavras que, não sendo nós discípulos de Gurdjeff, nos chegaram de forma indireta, mas que chegaram. Portanto, na condição de integrantes da autodenominada espécie inteligente do universo, que tal refletirmos sobre elas?
E neste blog onde a maioria das postagens costuma ter alguma relação com a anterior, termino esta estabelecendo uma relação com a anterior. "Eu convido você a ir em frente, ser visto e se perguntar: se não eu, quem? Se não agora, quando? Obrigada." Foi com essas palavras que Emma Watson encerrou seu inspirador discurso com o qual, no meu entender, visava provocar o despertamento para a imprescindibilidade da cooperação entre homens e mulheres em prol da construção de um mundo melhor para ambos os gêneros. Provocar o despertamento dos nossos irmãos! Eis, segundo Gurdjeff, exatamente o trabalho a que devemos nos propor." Trabalho cuja consecução tem como condição imprescindível o nosso próprio despertamento. Compreendido?

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