sábado, 22 de novembro de 2014

Dias de inconsciência

A inspiração para esta postagem veio da passagem do dia 20 de novembro. Dia que passou a ser conhecido como Dia da Consciência Negra ou Dia de Zumbi dos Palmares. É a partir dos significados de consciência e de zumbi que ela foi elaborada. Consciência: faculdade de estabelecer julgamentos morais dos atos realizados. Zumbi: no Vudu, crença espiritual do Caribe, um zumbi (ou zombie) é um morto-vivo. É alguém que não está nem morto nem vivo, apenas entorpecido.
Nem morto nem vivo, apenas entorpecido. Entorpecido, eis a palavra que, no meu entender, melhor define o modo de viver predominante nesta sociedade na qual sobrevivemos. Palavra que me faz lembrar algumas passagens do livro Um caminho com o coração, de autoria de Jack Kornfield (publicado em 1993), que são apresentadas a seguir. Os grifos são meus.
Usamos a negação para fugir das dores e dificuldades da vida. Usamos os vícios para apoiar nossa negação. Os Estados Unidos têm sido chamados de "sociedade viciada", com mais de vinte milhões de alcoólicos e dez milhões de drogados, (lembrem que os números são anteriores a 1993, ano de publicação do livro), além de milhões de viciados em jogo, trabalho, comida, sexualidade, relacionamentos doentios. Nossos vícios são os apegos compulsivamente repetitivos que usamos para evitar sentir as dificuldades da vida e para negá-las. A propaganda nos impele a seguir o ritmo, a continuar consumindo, fumando, bebendo, ansiando por comida, dinheiro e sexo. Nossos vícios servem para nos entorpecer diante da realidade e ajudar a evitar a nossa própria experiência; e, com grande estardalhaço, nossa sociedade encoraja esses vícios.
Anne Wilson Schaef, autora de When Society Becomes an Addict, assim descreveu essa situação:
O elemento mais bem-ajustado da nossa sociedade é a pessoa que não está morta nem viva, apenas entorpecida, enfim um morto-vivo, um zumbi. Quando morta, ela não é capaz de fazer o trabalho da sociedade. Quando plenamente viva, está sempre dizendo "Não" a muitos dos processos da sociedade, ao racismo, à poluição ambiental, à ameaça nuclear, à corrida armamentista, recusando-se a beber água contaminada e a comer alimentos cancerígenos. Por isso, a sociedade tem o maior interesse em estimular aquelas coisas que tiram o nosso vigor, que nos mantêm ocupados com nossos dilemas e nos conservam ligeiramente entorpecidos e semelhantes a zumbis. Desse modo, nossa moderna sociedade de consumo funciona, ela própria, como um viciado.
Um dos nossos vícios mais difundidos é a velocidade. A sociedade tecnológica obriga-nos a aumentar o ritmo da nossa produtividade e o ritmo das nossas vidas. (...) Em uma sociedade que quase exige que vivamos o tempo duas vezes mais rápido, a velocidade e os vícios nos entorpecem diante de nossas próprias experiências. Numa sociedade desse tipo, é quase impossível fixar-nos no nosso corpo ou ficar ligados ao nosso coração; menos possível ainda é nos ligarmos uns aos outros ou à Terra onde vivemos. Ao contrário, encontramo-nos cada vez mais isolados e solitários, afastados uns dos outros e da teia natural da vida. Uma única pessoa dentro de um carro, casas enormes, telefones celulares, walkman preso aos ouvidos... e uma profunda solidão, uma sensação de pobreza interior. Esse é o mais difundido sofrimento de nossa sociedade moderna.
Transcorridos vinte e um anos, com exceção das referências tecnológicas e das quantidades nelas citadas, as passagens apresentadas acima permanecem assustadoramente atuais. Sendo assim, faço uso das palavras de Anne Wilson Schaef (apresentadas no segundo parágrafo acima) para uma comparação com algo que encontrei na Wikipédia sobre Zumbi dos Palmares e que apresento abaixo. Os grifos são meus.
A Pedro de Almeida, governador da capitania de Pernambuco, mais interessava a submissão do que a destruição de Palmares. Após inúmeros ataques com a destruição e incêndios de mocambos, eles eram reconstruídos, e passou a ser economicamente desinteressante destruir Palmares. Os habitantes dos mocambos faziam esteiras, vassouras, chapéus, cestos e leques com a palha das palmeiras. Extraíam óleo da noz de palma, as vestimentas eram feitas das cascas de algumas árvores, produziam manteiga de coco, plantavam milho, mandioca, legumes, feijão e cana e comercializavam seus produtos com pequenas povoações vizinhas, de brancos e mestiços. Sendo assim, em 1678, o governador propôs ao chefe Ganga Zumba a paz e a alforria para todos os quilombolas de Palmares. Ganga Zumba aceita, mas Zumbi é contra, não admite que uns negros sejam libertos e outros continuem escravos.
Ao governador da capitania, mais interessava a submissão do que a destruição de Palmares, pois, passou a ser economicamente desinteressante destruir Palmares, diz o parágrafo acima. "O elemento mais bem-ajustado da nossa sociedade é a pessoa que não está morta nem viva, apenas entorpecida, enfim um morto-vivo, um zumbi. Quando morta, ela não é capaz de fazer o trabalho da sociedade.", diz Anne Wilson Schaef. Ou seja, a uma sociedade que abandona Um caminho com o coração (título do livro de Jack Kornfield citado nesta postagem) para seguir um sombrio caminho apenas com a economia, o que mais interessa é a pessoa que não está morta nem viva, apenas entorpecida, e como tal submissa aos ditames dos senhores da economia, enfim um morto-vivo, um zumbi.
Diante de uma proposta de paz e alforria para todos os quilombolas de Palmares, feita pelo governador, Zumbi é contra, pois não admite que uns negros sejam libertos e outros continuem escravos. Zumbi tinha a consciência de que o que não convém ao todo não deve convir a alguma (s) das partes. Ou seja, Zumbi era um indivíduo que recebera um nome que nada tinha a ver com o ele era. Um indivíduo que de zumbi nada tinha, pois era alguém não entorpecido.
E nós, como é que estamos em termos de entorpecimento? Como é que estamos em termos da consciência de sermos parte de um todo pelo qual temos nossa parcela de responsabilidade por seu êxito ou fracasso? Na minha percepção, mal, pois, infelizmente, o que enxergo nesta sociedade é um reduzido grupo de indivíduos providos de tal consciência e um imenso contingente de indivíduos que nela seguem entorpecidos pelo deplorável lema do cada um por si e para si.
Percepção que levou-me a redigir uma postagem iniciada assim: "A inspiração para esta postagem veio da passagem do dia 20 de novembro. Dia que passou a ser conhecido como Dia da Consciência Negra." Levado pela percepção de que nesta insana sociedade na qual sobrevivemos seja crescente a quantidade de dias de inconsciência nela vividos, minha intenção é chamar a atenção para o fato de que, mais do que uma data comemorativa que proporcione a oportunidade de desfrutar de um feriado, um dia intitulado Dia da Consciência (...) precisa ser visto como algo que desperte em nós a vontade de refletir sobre a imprescindibilidade do desenvolvimento desse atributo individual sem o qual a humanidade, como um todo, jamais chegará a ser algo que preste.
Que atributo é esse? A consciência. Consciência cujo desenvolvimento passa, inevitavelmente, pelo entendimento de ser imprescindível a diminuição gradual da crescente quantidade de dias de inconsciência com os quais a maioria dos integrantes desta sociedade inconsciente acostumou-se a conviver. Aliás, acostumar-se com coisas contra as quais deveria insurgir-se é um dos grandes males de uma sociedade inconsciente.

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