sexta-feira, 12 de setembro de 2014

O homem não aceita mais ficar triste (I)

Neste blog onde, na maioria das vezes, as postagens são "sugeridas" pela anterior, após uma postagem que chama a atenção para a necessidade de aprender a lidar com os fatos da vida, segue a primeira de duas partes de uma entrevista que mostra que nesta insana sociedade na qual sobrevivemos estimula-se exatamente o contrário. A entrevista é com o médico Miguel Chalub e foi publicada na edição de 26.05.2010 da revista IstoÉ, em uma reportagem assinada por Adriana Prado. Para não desestimular leitores de pouco fôlego, mais uma vez recorro ao método Jack: vamos por partes.
O homem não aceita mais ficar triste
Uma das maiores autoridades brasileiras em depressão, Miguel Chalub diz que, hoje, qualquer tristeza é tratada como doença psiquiátrica. E que prefere-se recorrer aos remédios a encarar o sofrimento
A Organização Mundial de Saúde (OMS) prevê que a depressão será a doença mais comum do mundo em 2030 - atualmente, 121 milhões de pessoas sofrem do problema. Para o psiquiatra mineiro Miguel Chalub, 70 anos, há um certo exagero nessas contas. Ele defende que tanto os pacientes quanto os médicos estão confundindo tristeza com depressão. "Não se pode mais ficar triste, entediado, porque isso é imediatamente transformado em depressão", disse em entrevista à IstoÉ.
Professor das Universidades Federal (UFRJ) e Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), ele afirma que os psiquiatras são os que menos receitam antidepressivos, porque estão mais preparados para reconhecer as diferenças entre a "tristeza normal e a patológica". Mas o despreparo dos demais especialistas não seria o único motivo do que o médico chama de "medicalização da tristeza". Muitos profissionais se deixam levar pelo lobby da indústria farmacêutica. "Os laboratórios pagam passagens, almoços, dão brindes. Você, sem perceber, começa a fazer esse jogo."
IstoÉ - Por que tantas previsões alarmantes sobre o aumento da depressão no mundo?
Miguel Chalub - Porque estão sendo computadas situações humanas de luto, de tristeza, de aborrecimento, de tédio. Não se pode mais ficar entediado, aborrecido, chateado, porque isso é imediatamente transformado em depressão. É a medicalização de uma condição humana, a tristeza. É transformar um sentimento normal, que todos nós devemos ter, dependendo das situações, numa entidade patológica.
IstoÉ - Por que isso aconteceu?
Chalub - A palavra depressão passou a ter dois sentidos. Tradicionalmente, designava um estado mental específico, quando a pessoa estava triste, mas com uma tristeza profunda, vivida no corpo. A própria postura mostrava isso. Ela não ficava ereta, como se tivesse um peso sobre as costas. E havia também os sintomas físicos. O aparelho digestivo não funcionava bem, a pele ficava mais espessa. Mas, nos últimos anos, a palavra depressão começou a ser usada para designar um estado humano normal, o da tristeza. Há situações em que, se não ficarmos tristes, é um problema - como quando se perde um ente querido. Mas o homem não aceita mais sentir coisas que são humanas, como a tristeza.
IstoÉ - A que se deve essa mudança?
Chalub - Primeiro, a uma busca pela felicidade. Qualquer coisa que possa atrapalhá-la tem que ser chamada de doença, porque, aí, justifica: "Eu não sou feliz porque estou doente, não porque fiz opções erradas." Dou uma desculpa a mim mesmo. Segundo, à tendência de achar que o remédio vai corrigir qualquer distorção humana. É a busca pela pílula da felicidade. Eu não preciso mais ser infeliz.
"Há a tendência de achar que o medicamento vai corrigir qualquer distorção humana. É a busca pela pílula da felicidade"
IstoÉ - O que diferencia a tristeza normal da patológica?
Chalub - A intensidade. A tristeza patológica é muito mais intensa. A normal é um estado de espírito. Além disso, a patológica é longa.
IstoÉ - Quanto tempo é normal ficar triste após a morte de um ente querido, por exemplo?
Chalub - Não dá para estabelecer um tempo. O importante é que a tristeza vai diminuindo. Se for assim, é normal. A pessoa tem que ir retomando sua vida. Os próprios mecanismos sociais ajudam nisso. Por que tem missa de sétimo dia? Para ajudar a pessoa a ir se desonerando daquilo.
IstoÉ - Quais são os sintomas físicos ligados a depressão?
Chalub - Aperto no peito, dificuldade de se movimentar, a pessoa só quer ficar deitada, dificuldade de cuidar de si próprio, da higiene corporal. Na tristeza normal, pode acontecer isso por um ou dois dias, mas, depois, passa. Na patológica, fica nas entranhas.
IstoÉ - Ainda há preconceito com quem tem depressão?
Chalub - Não. É o contrário. A vulgarização da depressão diminuiu o preconceito, mas criou outro problema, que é essa doença inexistente. Antes, a pessoa com depressão era vista como fraca. Hoje, as pessoas dizem que estão deprimidas com a maior naturalidade. Não se fica mais triste. Se brigar com o marido, se sair do emprego, qualquer motivo é válido para se dizer deprimido. Pode até ser que alguém fique realmente com depressão, mas, em geral, fica-se triste. O sofrimento não significa depressão. E não justifica o uso de medicamentos.
"Hoje, brigar com o marido, sair do emprego, qualquer motivo é válido para se dizer deprimido. Mas o sofrimento não significa depressão"
IstoÉ - Os médicos não deveriam entender esse processo?
Chalub – Os médicos não estão isentos da ideologia vigente. O que acontece é: você vem ao meu consultório. Eu acho que você não está deprimido, que está só passando por uma situação difícil. Então, proponho que você faça um acompanhamento psicoterápico. Você não fica satisfeito e procura outro médico, que receita um antidepressivo. Ele é o moderno, eu sou o bobão. Para não ser o bobão, eu receito um antidepressivo logo. É uma coisa inconsciente.
IstoÉ – Inconsciente?
Chalub – Os médicos querem corresponder à demanda. Senão, o paciente sairá achando que não foi bem atendido. Receitando um antidepressivo, eles correspondem à demanda, porque a pessoa quer ser enquadrada como deprimida. Mas há a questão dos laboratórios. Eles bombardeiam os médicos.
Continua na próxima quarta-feira

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