Neste blog onde, na maioria das vezes, as
postagens são "sugeridas" pela anterior, após uma postagem que chama
a atenção para a necessidade de aprender a lidar com os fatos da vida, segue a
primeira de duas partes de uma entrevista que mostra que nesta insana sociedade na qual
sobrevivemos estimula-se exatamente o contrário. A entrevista é com o médico Miguel Chalub e foi publicada na edição de 26.05.2010 da
revista IstoÉ, em uma reportagem assinada por Adriana Prado. Para não
desestimular leitores de pouco fôlego, mais uma vez recorro ao método Jack: vamos
por partes.
O homem não aceita mais ficar triste
Uma das maiores autoridades brasileiras em depressão, Miguel Chalub diz que, hoje, qualquer tristeza é tratada como doença psiquiátrica. E que prefere-se recorrer aos remédios a encarar o sofrimento
A Organização Mundial de Saúde (OMS) prevê que
a depressão será a doença mais comum do mundo em 2030 - atualmente, 121 milhões
de pessoas sofrem do problema. Para o psiquiatra mineiro Miguel Chalub, 70
anos, há um certo exagero nessas contas. Ele defende que tanto os pacientes
quanto os médicos estão confundindo tristeza com depressão. "Não se pode
mais ficar triste, entediado, porque isso é imediatamente transformado em depressão",
disse em entrevista à IstoÉ.
Professor das Universidades Federal (UFRJ) e
Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), ele afirma que os psiquiatras são os que
menos receitam antidepressivos, porque estão mais preparados para reconhecer as
diferenças entre a "tristeza normal e a patológica". Mas o despreparo
dos demais especialistas não seria o único motivo do que o médico chama de
"medicalização da tristeza". Muitos profissionais se deixam levar
pelo lobby da indústria farmacêutica. "Os laboratórios pagam passagens,
almoços, dão brindes. Você, sem perceber, começa a fazer esse jogo."
IstoÉ - Por que tantas previsões alarmantes
sobre o aumento da depressão no mundo?
Miguel Chalub - Porque estão sendo
computadas situações humanas de luto, de tristeza, de aborrecimento, de tédio.
Não se pode mais ficar entediado, aborrecido, chateado, porque isso é
imediatamente transformado em depressão. É a medicalização de uma condição
humana, a tristeza. É transformar um sentimento normal, que todos nós devemos
ter, dependendo das situações, numa entidade patológica.
IstoÉ - Por que isso aconteceu?
Chalub - A palavra depressão passou a ter dois
sentidos. Tradicionalmente, designava um estado mental específico, quando a
pessoa estava triste, mas com uma tristeza profunda, vivida no corpo. A
própria postura mostrava isso. Ela não ficava ereta, como se tivesse um peso
sobre as costas. E havia também os sintomas físicos. O aparelho digestivo não
funcionava bem, a pele ficava mais espessa. Mas, nos últimos anos, a palavra
depressão começou a ser usada para designar um estado humano normal, o da
tristeza. Há situações em que, se não ficarmos tristes, é um problema - como
quando se perde um ente querido. Mas o homem não aceita mais sentir coisas que são humanas,
como a tristeza.
IstoÉ - A que se deve essa mudança?
Chalub - Primeiro, a uma busca pela felicidade.
Qualquer coisa que possa atrapalhá-la tem que ser chamada de doença, porque, aí,
justifica: "Eu não sou feliz porque estou doente, não porque fiz opções
erradas." Dou uma desculpa a mim mesmo. Segundo, à tendência de achar que
o remédio vai corrigir qualquer distorção humana. É a busca pela pílula da
felicidade. Eu não preciso mais ser infeliz.
"Há
a tendência de achar que o medicamento vai corrigir qualquer distorção humana.
É a busca pela pílula da felicidade"
IstoÉ - O que diferencia a tristeza normal da
patológica?
Chalub - A intensidade. A tristeza patológica é
muito mais intensa. A normal é um estado de espírito. Além disso, a patológica
é longa.
IstoÉ - Quanto tempo é normal ficar triste
após a morte de um ente querido, por exemplo?
Chalub - Não dá para estabelecer um tempo. O
importante é que a tristeza vai diminuindo. Se for assim, é normal. A pessoa
tem que ir retomando sua vida. Os próprios mecanismos sociais ajudam nisso. Por
que tem missa de sétimo dia? Para ajudar a pessoa a ir se desonerando daquilo.
IstoÉ - Quais são os sintomas físicos ligados
a depressão?
Chalub - Aperto no peito, dificuldade de se
movimentar, a pessoa só quer ficar deitada, dificuldade de cuidar de si
próprio, da higiene corporal. Na tristeza normal, pode acontecer isso por um ou
dois dias, mas, depois, passa. Na patológica, fica nas entranhas.
IstoÉ - Ainda há preconceito com quem tem
depressão?
Chalub - Não. É o contrário. A vulgarização da
depressão diminuiu o preconceito, mas criou outro problema, que é essa doença
inexistente. Antes, a pessoa com depressão era vista como fraca. Hoje, as
pessoas dizem que estão deprimidas com a maior naturalidade. Não se fica mais
triste. Se brigar com o marido, se sair do emprego, qualquer motivo é válido
para se dizer deprimido. Pode até ser que alguém fique realmente com depressão,
mas, em geral, fica-se triste. O sofrimento não significa depressão. E não
justifica o uso de medicamentos.
"Hoje,
brigar com o marido, sair do emprego, qualquer motivo é válido para se dizer
deprimido. Mas o sofrimento não significa depressão"
IstoÉ - Os médicos não deveriam entender esse
processo?
Chalub – Os médicos não estão isentos da ideologia
vigente. O que acontece é: você vem ao meu consultório. Eu acho que você não
está deprimido, que está só passando por uma situação difícil. Então, proponho
que você faça um acompanhamento psicoterápico. Você não fica satisfeito e
procura outro médico, que receita um antidepressivo. Ele é o moderno, eu sou o
bobão. Para não ser o bobão, eu receito um antidepressivo logo. É uma coisa
inconsciente.
IstoÉ – Inconsciente?
Chalub – Os médicos querem corresponder à demanda.
Senão, o paciente sairá achando que não foi bem atendido. Receitando um
antidepressivo, eles correspondem à demanda, porque a pessoa quer ser
enquadrada como deprimida. Mas há a questão dos laboratórios. Eles bombardeiam
os médicos.
Continua na próxima quarta-feira
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