Interrompendo a sequência de postagens focalizando o
assunto Copa do Mundo de Futebol, segue um texto publicado na coluna de Rosely
Sayão na edição de 22 de julho de 2014 da Folha
de S.Paulo. Por que resolvi fazer tal interrupção? Porque no próximo
domingo é comemorado o Dia dos Pais.
O que um texto intitulado A lista de
desejos tem a ver com tal data? Quem viver, digo, quem ler verá.
A lista de desejos
Acabou
a graça de dar presentes em situações de comemoração e celebração, não é? Hoje,
temos listas para quase todas as ocasiões: casamento, chá de cozinha e seus
similares – e há similares espantosos, como chá de lingerie -, nascimento de
filho e chá de bebê, e agora até para aniversário.
Presente
para os filhos? Tudo eles já pediram e apenas mudam, de vez em quando ou
frequentemente, a ordem das suas prioridades. Quem tem filho tem sempre à sua
disposição uma lista de pedidos de presentes feita por ele, que pode crescer
diariamente, e que tanto pode ser informal quanto formal.
A
filha de uma amiga, por exemplo, tem uma lista na bolsa escrita à mão pelo
filho, que tem a liberdade de sacá-la a qualquer momento para fazer as mudanças
que ele julgar necessárias. Ah! E ela funciona tanto como lista de pedidos como
também de "checklist" porque, dessa maneira, o garoto controla o que
já recebeu e o que ainda está por vir. Sim: essas listas são quase uma garantia
de conseguir o pedido atendido.
Ninguém
mais precisa ter trabalho ao comprar um presente para um conhecido, para um
colega de trabalho, para alguma criança e até amigo. Sabe aquele esforço de
pensar na pessoa que vai receber o presente e de imaginar o que ela gostaria de
ganhar, o que tem relação com ela e seu modo de ser e de viver? Pois é: agora,
basta um telefonema ou uma passada rápida nas lojas físicas ou virtuais em que
as listas estão, ou até mesmo pedir para uma outra pessoa realizar tal tarefa,
e pronto! Problema resolvido!
Não
é preciso mais o investimento pessoal do pensar em algo, de procurar até
encontrar, de bater perna e cabeça até sentir-se satisfeito com a escolha feita
que, além de tudo, precisaria estar dentro do orçamento disponível para tal.
Hoje, o presente custa só o gasto financeiro e nem precisa estar dentro do
orçamento porque, para não transgredir a lista, às vezes é preciso parcelar o
presente em diversas prestações...
E,
assim que os convites chegam, acompanhados sem discrição alguma das listas, é
uma correria dos convidados para efetuar sem demora sua compra. É que os
presentes menos custosos são os primeiros a serem ticados nas listas, e quem demora
para cumprir seu compromisso acaba gastando um pouco mais do que gostaria.
Se,
por um lado, dar presentes deixou de dar trabalho, por outro deixou também
totalmente excluído do ato de presentear o relacionamento entre as pessoas
envolvidas. Ganho para o mercado de consumo, perda para as relações humanas
afetivas.
Os
presentes se tornaram impessoais, objetos de utilidade ou de luxo desejados. Acabou-se
o que era doce no que já foi, num passado recente, uma demonstração pessoal de
carinho.
Sabe,
caro leitor, aquela expressão de surpresa gostosa, ou de um pequeno susto que
insiste em se expressar, apesar da vontade de querer que ele passe
despercebido, quando recebíamos um mimo? Ou aquela frase transparente de
criança, que nunca deixa por menos: "Eu não quero isso!"? Tudo isso acabou.
Hoje, tudo o que ocorre é uma operação mental dupla. Quem recebe apenas tica
algum item da lista elaborada, e quem presenteia dá-se por satisfeito por ter
cumprido seu compromisso.
Que
tempos mais chatos. Resta, a quem tiver coragem, a possibilidade de transgredir
essas tais listas. Assim, é possível tornar a vida mais saborosa.
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Que
tempos mais paradoxais. Tempos em que presentear pessoas foi transformado em
algo impessoal, pois, como diz Rosely Sayão, "Os presentes se tornaram
impessoais, objetos de utilidade ou de luxo desejados. Acabou-se o que era doce
no que já foi, num passado recente, uma demonstração pessoal de carinho."
Que
tempos mais chatos. Tempos em que presentear é algo feito cada vez mais por
obrigação do que por verdadeira afeição. E feito por obrigação presentear é
algo que não envolve o coração. "Hoje, dar um presente custa só o gasto
financeiro. Hoje, tudo o que ocorre é uma operação mental dupla. Quem recebe
apenas tica algum item da lista elaborada, e quem presenteia dá-se por
satisfeito por ter cumprido seu compromisso.", diz Rosely Sayão. Tempos de
adoração pela praticidade das listas de desejos.
Que tempos mais
práticos. Tempos de louvor à praticidade, pois quase tudo pode ser comprado
pronto. Quase tudo, mas não tudo, embora mais de 70 anos já tenham passado
desde a seguinte afirmação de Antoine de Saint-Exupéry, o extraordinário autor
de O Pequeno Príncipe.
"Os homens compram tudo pronto nas lojas... Mas como não há lojas de
amigos, os homens não têm amigos." E ao falar em "tudo" e citar Saint-Exupéry
lembro de outra de suas frases e também de uma de Robert Kennedy.
"Os jovens têm
tudo, só lhes falta o essencial", é uma célebre frase de Robert Kennedy
pronunciada há mais de 40 anos. "É apenas com o coração que se pode ver
direito; o essencial é invisível aos olhos", disse Saint-Exupéry há 71 anos.
Quase tudo pode ser colocado em listas de desejos, mas o que nelas jamais
poderá ser colocado é o essencial, digo eu. Pelas vias da praticidade jamais
se chegará ao essencial.
No último dia de trabalho de uma colega que retornaria
ao estado onde nascera, passei o dia em um treinamento externo. Encerrado o treinamento,
em vez de dirigir-me diretamente para casa, fui até o local de trabalho para
despedir-me da amiga que eu não sabia quanto tornaria a ver. Sabendo que eu
estivera ausente do local de trabalho naquele dia, em tom de perplexidade, ele
me fez a seguinte pergunta: Guedes, você veio até aqui só para despedir-se de
mim? Respondi-lhe algo mais ou menos assim: Fulana, despedir-me de você é algo importante
para mim, e o que é importante não deve ser visto como "só para isto ou só para
aquilo". Ao não optar pelo mais prático (não passar "desnecessariamente" pelo
local de trabalho), e sim pelo mais importante (despedir-me de uma amiga que
não sabia quando tornaria a ver) eu deixara a minha amiga perplexa. Em uma
sociedade onde coisas são consideradas mais importantes do que pessoas, ao
serem tratadas com importância pessoas costumam ficar perplexas.
A
esta altura da postagem, alguém pode estar pensando algo assim: afinal, o que o
Dia dos Pais tem a ver com A lista de desejos, conforme foi insinuado
no primeiro parágrafo da postagem? Para quem tiver pensado assim, digo que o
simples fato de o Dia dos Pais poder ser
considerado uma daquelas "situações de comemoração e celebração em que se
presenteia", citadas no primeiro parágrafo do texto de Rosely Sayão, possibilita,
no meu entender, enxergar a relação citada. E enxergada tal relação, como representante
dos celebrados nessa data, ocorreu-me o desejo de aproveitar a proximidade
desta data para provocar reflexões sobre essa prática cada vez mais presente nesta sociedade onde as
relações afetivas estão cada vez mais ausentes:
a elaboração de lista de desejos. Prática da qual, segundo Rosely Sayão, resultam um ganho para o mercado de consumo e uma perda para as relações humanas afetivas.
Será
que a ideia de associar Dia dos Pais
com A lista de desejos faz algum
sentido? Ou, como questiona a banda Legião Urbana, "Será só imaginação?" Será
que o desejo de provocar reflexões a partir do texto de Rosely Sayão conseguiu levá-los
a pensar na "possibilidade de transgredir essas tais listas e, assim, tornar a
vida mais saborosa". Ou, ainda como questiona a Legião Urbana, "Será que é tudo
isso em vão?".
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