quinta-feira, 7 de agosto de 2014

A lista de desejos

Interrompendo a sequência de postagens focalizando o assunto Copa do Mundo de Futebol, segue um texto publicado na coluna de Rosely Sayão na edição de 22 de julho de 2014 da Folha de S.Paulo. Por que resolvi fazer tal interrupção? Porque no próximo domingo é comemorado o Dia dos Pais. O que um texto intitulado A lista de desejos tem a ver com tal data? Quem viver, digo, quem ler verá.
A lista de desejos
Acabou a graça de dar presentes em situações de comemoração e celebração, não é? Hoje, temos listas para quase todas as ocasiões: casamento, chá de cozinha e seus similares – e há similares espantosos, como chá de lingerie -, nascimento de filho e chá de bebê, e agora até para aniversário.
Presente para os filhos? Tudo eles já pediram e apenas mudam, de vez em quando ou frequentemente, a ordem das suas prioridades. Quem tem filho tem sempre à sua disposição uma lista de pedidos de presentes feita por ele, que pode crescer diariamente, e que tanto pode ser informal quanto formal.
A filha de uma amiga, por exemplo, tem uma lista na bolsa escrita à mão pelo filho, que tem a liberdade de sacá-la a qualquer momento para fazer as mudanças que ele julgar necessárias. Ah! E ela funciona tanto como lista de pedidos como também de "checklist" porque, dessa maneira, o garoto controla o que já recebeu e o que ainda está por vir. Sim: essas listas são quase uma garantia de conseguir o pedido atendido.
Ninguém mais precisa ter trabalho ao comprar um presente para um conhecido, para um colega de trabalho, para alguma criança e até amigo. Sabe aquele esforço de pensar na pessoa que vai receber o presente e de imaginar o que ela gostaria de ganhar, o que tem relação com ela e seu modo de ser e de viver? Pois é: agora, basta um telefonema ou uma passada rápida nas lojas físicas ou virtuais em que as listas estão, ou até mesmo pedir para uma outra pessoa realizar tal tarefa, e pronto! Problema resolvido!
Não é preciso mais o investimento pessoal do pensar em algo, de procurar até encontrar, de bater perna e cabeça até sentir-se satisfeito com a escolha feita que, além de tudo, precisaria estar dentro do orçamento disponível para tal. Hoje, o presente custa só o gasto financeiro e nem precisa estar dentro do orçamento porque, para não transgredir a lista, às vezes é preciso parcelar o presente em diversas prestações...
E, assim que os convites chegam, acompanhados sem discrição alguma das listas, é uma correria dos convidados para efetuar sem demora sua compra. É que os presentes menos custosos são os primeiros a serem ticados nas listas, e quem demora para cumprir seu compromisso acaba gastando um pouco mais do que gostaria.
Se, por um lado, dar presentes deixou de dar trabalho, por outro deixou também totalmente excluído do ato de presentear o relacionamento entre as pessoas envolvidas. Ganho para o mercado de consumo, perda para as relações humanas afetivas.
Os presentes se tornaram impessoais, objetos de utilidade ou de luxo desejados. Acabou-se o que era doce no que já foi, num passado recente, uma demonstração pessoal de carinho.
Sabe, caro leitor, aquela expressão de surpresa gostosa, ou de um pequeno susto que insiste em se expressar, apesar da vontade de querer que ele passe despercebido, quando recebíamos um mimo? Ou aquela frase transparente de criança, que nunca deixa por menos: "Eu não quero isso!"? Tudo isso acabou. Hoje, tudo o que ocorre é uma operação mental dupla. Quem recebe apenas tica algum item da lista elaborada, e quem presenteia dá-se por satisfeito por ter cumprido seu compromisso.
Que tempos mais chatos. Resta, a quem tiver coragem, a possibilidade de transgredir essas tais listas. Assim, é possível tornar a vida mais saborosa.
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Que tempos mais paradoxais. Tempos em que presentear pessoas foi transformado em algo impessoal, pois, como diz Rosely Sayão, "Os presentes se tornaram impessoais, objetos de utilidade ou de luxo desejados. Acabou-se o que era doce no que já foi, num passado recente, uma demonstração pessoal de carinho."
Que tempos mais chatos. Tempos em que presentear é algo feito cada vez mais por obrigação do que por verdadeira afeição. E feito por obrigação presentear é algo que não envolve o coração. "Hoje, dar um presente custa só o gasto financeiro. Hoje, tudo o que ocorre é uma operação mental dupla. Quem recebe apenas tica algum item da lista elaborada, e quem presenteia dá-se por satisfeito por ter cumprido seu compromisso.", diz Rosely Sayão. Tempos de adoração pela praticidade das listas de desejos.
Que tempos mais práticos. Tempos de louvor à praticidade, pois quase tudo pode ser comprado pronto. Quase tudo, mas não tudo, embora mais de 70 anos já tenham passado desde a seguinte afirmação de Antoine de Saint-Exupéry, o extraordinário autor de O Pequeno Príncipe. "Os homens compram tudo pronto nas lojas... Mas como não há lojas de amigos, os homens não têm amigos." E ao falar em "tudo" e citar Saint-Exupéry lembro de outra de suas frases e também de uma de Robert Kennedy.
"Os jovens têm tudo, só lhes falta o essencial", é uma célebre frase de Robert Kennedy pronunciada há mais de 40 anos. "É apenas com o coração que se pode ver direito; o essencial é invisível aos olhos", disse Saint-Exupéry há 71 anos. Quase tudo pode ser colocado em listas de desejos, mas o que nelas jamais poderá ser colocado é o essencial, digo eu. Pelas vias da praticidade jamais se chegará ao essencial.
No último dia de trabalho de uma colega que retornaria ao estado onde nascera, passei o dia em um treinamento externo. Encerrado o treinamento, em vez de dirigir-me diretamente para casa, fui até o local de trabalho para despedir-me da amiga que eu não sabia quanto tornaria a ver. Sabendo que eu estivera ausente do local de trabalho naquele dia, em tom de perplexidade, ele me fez a seguinte pergunta: Guedes, você veio até aqui só para despedir-se de mim? Respondi-lhe algo mais ou menos assim: Fulana, despedir-me de você é algo importante para mim, e o que é importante não deve ser visto como "só para isto ou só para aquilo". Ao não optar pelo mais prático (não passar "desnecessariamente" pelo local de trabalho), e sim pelo mais importante (despedir-me de uma amiga que não sabia quando tornaria a ver) eu deixara a minha amiga perplexa. Em uma sociedade onde coisas são consideradas mais importantes do que pessoas, ao serem tratadas com importância pessoas costumam ficar perplexas.
A esta altura da postagem, alguém pode estar pensando algo assim: afinal, o que o Dia dos Pais tem a ver com A lista de desejos, conforme foi insinuado no primeiro parágrafo da postagem? Para quem tiver pensado assim, digo que o simples fato de o Dia dos Pais poder ser considerado uma daquelas "situações de comemoração e celebração em que se presenteia", citadas no primeiro parágrafo do texto de Rosely Sayão, possibilita, no meu entender, enxergar a relação citada. E enxergada tal relação, como representante dos celebrados nessa data, ocorreu-me o desejo de aproveitar a proximidade desta data para provocar reflexões sobre essa prática cada vez mais presente nesta sociedade onde as relações afetivas estão cada vez mais ausentes: a elaboração de lista de desejos. Prática da qual, segundo Rosely Sayão, resultam um ganho para o mercado de consumo e uma perda para as relações humanas afetivas.
Será que a ideia de associar Dia dos Pais com A lista de desejos faz algum sentido? Ou, como questiona a banda Legião Urbana, "Será só imaginação?" Será que o desejo de provocar reflexões a partir do texto de Rosely Sayão conseguiu levá-los a pensar na "possibilidade de transgredir essas tais listas e, assim, tornar a vida mais saborosa". Ou, ainda como questiona a Legião Urbana, "Será que é tudo isso em vão?".

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