segunda-feira, 24 de março de 2014

Reflexões provocadas por "O Velho Vendedor de Cebolas" (I)

Para quem é adepto da saudável prática de refletir sobre o que lê, O Velho Vendedor de Cebolas é uma história capaz de provocar uma quantidade impressionante de reflexões. Mas para a imensa maioria formada pelos adeptos da crença de que a finalidade da vida seja ganhar cada vez mais dinheiro, em cada vez menos tempo, essa história pode ser bastante chocante. E o choque pode começar com a resposta dada pelo velho índio quando indagado "se não estava no mercado para vender cebolas". Ao responder que "estava ali para viver sua vida", além de poder ter chocado seu interlocutor, o pele vermelha poderá chocar também aqueles que compactuem com a mentalidade daquele cara pálida oriundo de Chicago. Não, ninguém está neste mundo para vender seja lá o que for, e sim para viver sua vida.
Mas o que é viver sua vida? Será que nós sabemos o que seja isso? No meu entender, a maioria não sabe, mas o velho índio sabia. E por saber tal coisa é que ele dirigia-se ao mercado para aproveitar o dia que recebera. Aproveitá-lo para ver as pessoas em seus ponchos vermelhos, apreciar a natureza (a luz do sol e o balanço das palmeiras), ver seus amigos e conversar com eles. Ver seus amigos e conversar com eles! Algo cada vez mais difícil para quem sobrevive em grandes cidades, pois nelas, cada vez mais, o ver e o conversar são substituídos por torpedos enviados e recebidos por meio de algum desses aparelhos inteligentes desenvolvidos pela tecnologia.
O tempo passou, a tecnologia evoluiu de forma estonteante e tonta diante de tanta tecnologia a dita espécie inteligente do Universo trocou o "olhos nos olhos" por "olhos na telinha". Na telinha desses aparelhos inteligentes que os mais conscientes podem até imaginar que tenham sido inventados justamente com a intenção de manter em permanente estado de distração a espécie citada no início deste parágrafo. Sim, os aparelhos inteligentes sobrepuseram-se à espécie inteligente, e isto me faz lembrar a seguinte frase de Albert Einstein: "Temo o dia em que a tecnologia se sobreponha à humanidade. Então o mundo terá uma geração de idiotas".
As amizades do velho vendedor de cebolas eram cultivadas por meio de encontros presenciais; as nossas são por meio de encontros (sic) virtuais que, em última análise, nada mais são do que simulação de presença. Simulação de presença! Eis uma lamentável prática característica desta era e da qual cito mais um exemplo. Qual de vocês ainda não assistiu a uma daquelas cenas em que pessoas estão em um mesmo lugar, em um mesmo tempo, mas completamente alheias ao que ali está acontecendo. "Penduradas" em algum aparelho inteligente, elas estão conectadas com pessoas que não estão ali, enquanto para àquelas que estiverem ao seu redor elas "não estão nem ali". Vocês concordam que esse seja mais um caso de simulação de presença? Toda era recebe alguma denominação e esta em que vivemos tem algumas: era da informação, era da comunicação, era do conhecimento etc. Mas em meio a essas várias denominações, ainda creio que a mais adequada não esteja entre as citadas, pois no meu entender a denominação mais adequada é era da simulação.
Se naquela época, o velho vendedor de cebolas dirigia-se ao mercado porque desejava interagir com as pessoas, hoje o que se deseja é o isolamento. Sob o pretexto da dificuldade de locomoção e das facilidades tecnológicas disponíveis, o sonho das pessoas passou a ser trabalhar em casa o que implica, automaticamente, em deixar de interagir presencialmente e passar a fazê-lo apenas através de alguma dessas interfaces tecnológicas que nos dispensam da necessidade de interagir face a face. E cada vez mais as condições em que se sobrevive nas grandes cidades e o desenvolvimento da tecnologia estimulam as pessoas a não conviverem.
E assim em vez de viver sua vida, como fazia o velho vendedor de cebolas, a maioria apenas vai levando a vida. Ou pior, vai sendo levada pela vida, e validando uma sábia frase de Mario Quintana: "Com o tempo, não vamos ficando sozinhos apenas pelos que se foram: vamos ficando sozinhos uns dos outros." Sozinhos uns dos outros! De um livro de Domenico de Masi intitulado O Futuro Chegou, copiei a seguinte frase: "Trabalhar numa multinacional ou viver em uma metrópole nos rouba a solidão sem nos dar companhia.". Será que além do trabalho em uma multinacional ou a vida em uma metrópole existem outras coisas que nos roubam a solidão sem nos dar companhia? Essa é uma pergunta para que cada um de vocês responda.
Se, em termos de tamanho, a história O Velho Vendedor de Cebolas é pequena, em termos de reflexões provocadas, para mim, ela tem um tamanho impressionante. Sendo assim, elaborar uma postagem com tais reflexões foi algo bastante difícil. Registrando no caderno de anotações que costumo carregar comigo tudo o que me veio à cabeça após a elaboração da postagem anterior, o resultado foi ver-me diante de uma espécie de sessão de brainstorming da qual só eu participara. Para um adepto da prática do raciocínio sistêmico (segundo o qual tudo está interligado) o resultado foi uma tempestade de associações que provocou em minha cabeça uma enchente de ideias cujo escoamento foi difícil de realizar. Selecionei algumas reflexões para esta postagem, mas por não consegui resistir à vontade de elaborar uma postagem com as que ficaram fora desta, as reflexões prosseguirão na próxima, ok?
Mas antes de prosseguir com as reflexões quero esclarecer minha posição em relação a algo muito citado nesta postagem. Se, por desventura, alguém pensou que sou avesso à tecnologia, aqui vai minha opinião sobre ela. Considero a tecnologia algo inevitável, desejável e utilizável. Mas na linha do "ável" faltou citar um: o lamentável. E o lamentável refere-se ao uso que dela se faz. Minha posição em relação à tecnologia está em conformidade com a opinião de Alexis Carrel (1873-1944), cirurgião, fisiologista, biólogo e sociólogo, que, em 1912, recebeu o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia e, em 1935, publicou um livro intitulado O Homem, Esse Desconhecido, que foi traduzido e reeditado transformando-se num grande êxito mundial até a década de 1950. Segundo ele, "A civilização não tem como finalidade o progresso das máquinas; mas, sim o do homem".
A afirmação de Alexis Carrel tem tudo a ver com o temor expresso na frase de um de seus famosos contemporâneos, já citada nesta postagem: "Temo o dia em que a tecnologia se sobreponha à humanidade. Então o mundo terá uma geração de idiotas", disse Albert Einstein. Uma geração de idiotas fascinada por aparelhos inteligentes? Fascinado pelo progresso das máquinas, o homem tem negligenciado o seu próprio progresso.

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