Para quem é adepto da saudável prática de
refletir sobre o que lê, O Velho Vendedor de Cebolas é uma história capaz de provocar uma quantidade impressionante
de reflexões. Mas para a imensa maioria formada pelos adeptos da crença de que
a finalidade da vida seja ganhar cada vez mais dinheiro, em cada vez menos
tempo, essa história pode ser bastante chocante. E o choque pode começar com a
resposta dada pelo velho índio quando indagado "se não estava no mercado para
vender cebolas". Ao responder que "estava ali para viver sua vida", além de
poder ter chocado seu interlocutor, o pele vermelha poderá chocar também
aqueles que compactuem com a mentalidade daquele cara pálida oriundo de
Chicago. Não, ninguém está neste mundo para vender seja lá o que for, e sim
para viver sua vida.
Mas o que é viver sua vida? Será que nós sabemos
o que seja isso? No meu entender, a maioria não sabe, mas o velho índio sabia. E
por saber tal coisa é que ele dirigia-se ao mercado para aproveitar o dia que
recebera. Aproveitá-lo para ver as pessoas em seus ponchos vermelhos, apreciar
a natureza (a luz do sol e o balanço das palmeiras), ver seus amigos e conversar
com eles. Ver seus amigos e conversar com eles! Algo cada vez mais difícil para quem sobrevive em grandes cidades, pois nelas, cada vez mais, o ver e o conversar são substituídos por torpedos enviados e recebidos por meio de algum desses aparelhos inteligentes desenvolvidos pela
tecnologia.
O tempo passou, a
tecnologia evoluiu de forma estonteante e tonta diante de tanta tecnologia a
dita espécie inteligente do Universo trocou o "olhos nos olhos" por "olhos na telinha".
Na telinha desses aparelhos inteligentes que os mais conscientes podem
até imaginar que tenham sido inventados justamente com a intenção de manter em permanente
estado de distração a espécie citada no início deste parágrafo. Sim, os aparelhos
inteligentes sobrepuseram-se à espécie inteligente, e isto me faz lembrar a
seguinte frase de Albert Einstein: "Temo o dia em que a tecnologia se
sobreponha à humanidade. Então o mundo terá uma geração de idiotas".
As amizades do velho vendedor de cebolas eram
cultivadas por meio de encontros presenciais; as nossas são por meio de
encontros (sic) virtuais que, em última análise, nada mais são do que simulação
de presença. Simulação de presença! Eis uma lamentável prática característica desta era e da qual cito mais um exemplo. Qual de vocês ainda
não assistiu a uma daquelas cenas em que pessoas estão em um mesmo lugar, em um
mesmo tempo, mas completamente alheias ao que ali está acontecendo.
"Penduradas" em algum aparelho inteligente, elas estão conectadas com pessoas
que não estão ali, enquanto para àquelas que estiverem ao seu redor elas "não estão nem
ali". Vocês concordam que esse seja mais um caso de simulação de presença? Toda era
recebe alguma denominação e esta em que vivemos tem algumas: era da informação,
era da comunicação, era do conhecimento etc. Mas em meio a essas várias
denominações, ainda creio que a mais adequada não esteja entre as citadas, pois
no meu entender a denominação mais adequada é era da simulação.
Se naquela época, o velho vendedor de cebolas dirigia-se
ao mercado porque desejava interagir com as pessoas, hoje o que se deseja é o isolamento. Sob
o pretexto da dificuldade de locomoção e das facilidades tecnológicas
disponíveis, o sonho das pessoas passou a ser trabalhar em casa o que implica,
automaticamente, em deixar de interagir presencialmente e passar a fazê-lo apenas
através de alguma dessas interfaces tecnológicas que nos dispensam da
necessidade de interagir face a face. E cada vez mais as condições em que se
sobrevive nas grandes cidades e o desenvolvimento da tecnologia estimulam as
pessoas a não conviverem.
E assim em vez de viver sua vida, como fazia o velho
vendedor de cebolas, a maioria apenas vai levando a vida. Ou pior, vai sendo
levada pela vida, e validando uma sábia frase de Mario Quintana: "Com o tempo, não
vamos ficando sozinhos apenas pelos que se foram: vamos ficando sozinhos uns
dos outros." Sozinhos uns dos outros! De um livro de Domenico de Masi
intitulado O Futuro Chegou, copiei a seguinte frase: "Trabalhar
numa multinacional ou viver em uma metrópole nos rouba a solidão sem nos dar
companhia.". Será que além do trabalho em uma multinacional ou a vida em uma
metrópole existem outras coisas que nos roubam a solidão sem nos dar companhia?
Essa é uma pergunta para que cada um de vocês responda.
Se, em termos de tamanho, a história O Velho Vendedor de Cebolas é pequena, em
termos de reflexões provocadas, para mim, ela tem um tamanho impressionante. Sendo
assim, elaborar uma postagem com tais reflexões foi algo bastante difícil. Registrando no caderno de anotações que costumo carregar comigo tudo o que
me veio à cabeça após a elaboração da postagem anterior, o resultado foi ver-me
diante de uma espécie de sessão de brainstorming da qual só eu participara. Para um adepto
da prática do raciocínio sistêmico (segundo o qual tudo está interligado) o resultado foi uma
tempestade de associações que provocou em minha cabeça uma enchente de ideias cujo
escoamento foi difícil de realizar. Selecionei algumas reflexões para esta
postagem, mas por não consegui resistir à vontade de elaborar uma postagem com
as que ficaram fora desta, as reflexões prosseguirão na próxima, ok?
Mas antes de prosseguir com as reflexões quero
esclarecer minha posição em relação a algo muito citado nesta postagem. Se, por
desventura, alguém pensou que sou avesso à tecnologia, aqui vai minha opinião
sobre ela. Considero a tecnologia algo inevitável, desejável e utilizável. Mas na
linha do "ável" faltou citar um: o lamentável. E o lamentável refere-se ao uso
que dela se faz. Minha posição em relação à tecnologia está em
conformidade com a opinião de Alexis Carrel (1873-1944), cirurgião,
fisiologista, biólogo e sociólogo, que, em 1912, recebeu o Prêmio Nobel de
Medicina e Fisiologia e, em 1935, publicou um livro intitulado O Homem, Esse
Desconhecido, que foi traduzido e reeditado transformando-se num grande
êxito mundial até a década de 1950. Segundo ele, "A civilização não tem
como finalidade o progresso das máquinas; mas, sim o do homem".
A
afirmação de Alexis Carrel
tem tudo a ver com o temor expresso na frase de um de seus famosos
contemporâneos,
já citada nesta postagem: "Temo o dia em que a tecnologia se sobreponha à
humanidade. Então o mundo terá uma geração de idiotas", disse Albert
Einstein. Uma geração de idiotas fascinada por aparelhos inteligentes?
Fascinado pelo progresso das máquinas, o homem tem negligenciado o seu
próprio progresso.
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