Esta postagem apresenta a primeira de duas partes
nas quais dividi uma passagem homônima do livro Diálogos sobre a vida, de Krishnamurti. Nascido na Índia, Jiddu Krishnamurti (1895 – 1986) foi um filósofo, educador e conferencista internacional. Durante sua vida, viajou por
todo o mundo realizando palestras que eram seguidas por conversas com a
plateia. Vários de seus livros são inspirados em tais palestras e conversas, e Diálogos sobre a vida é um deles. Na passagem que selecionei para esta postagem, Krishnamurti conversa com quatro
estudantes. Mas antes de apresentá-la, creio que seja conveniente contar o que aconteceu comigo quando a li pela primeira vez.
Li Diálogos sobre a vida na época em
que eu tinha uma filha com sete anos, deixara de ter um filho que desencarnara
com quatro e minha esposa estava grávida. Considerando que eu me interessava em
ser um bom pai, ler o que Krishnamurti diz sobre os pais naquela passagem
incomodou-me demais. Então, o que fiz eu? Interrompi a leitura e guardei o
livro. Não, não me livrei dele, pois alguma coisa me intuía que eu
ainda viria a ter maturidade suficiente para deixar de melindrar-me com
opiniões que me incomodassem e que quando isso viesse a acontecer eu iria não só reler
aquela passagem, mas também ler o restante do livro. Aliás, existe nela uma
frase que define bem a minha reação. "O que acabo de dizer poderá ser
desagradável, mas é um fato", diz Krishnamurti.
Portanto, minha reação foi, simplesmente, dar
as costas a algo que era desagradável, mas era um fato. E sendo um fato,
hoje, aquela reação me faz lembrar uma inesquecível frase de um filme que minha
filha me levou a assistir em sua adolescência. É de um filme intitulado A
Praia, a seguinte frase:
"É fácil dar as costas, mas não é tão fácil esquecer". Hoje,
interpreto aquela minha atitude como dar as costas às palavras de Krishnamurti.
Palavras que, por jamais tê-las esquecido, a postagem anterior me fez querer lhes repassar nesta e na próxima, pois postagens muito longas têm menor
probabilidade de serem lidas. Será que algum de vocês terá uma reação
semelhante à minha?
Sem bondade e amor não existe educação
Eram quatro rapazes,
mais ou menos da mesma idade – entre dezesseis e dezoito anos. Um pouco
acanhados, cumpria provocá-los, mas uma vez postos em movimento era-lhes
difícil parar e ansiosas perguntas lhes saíam atropeladamente da boca. Via-se
que já tinham discutido a matéria entre si, de antemão, e haviam preparado suas
perguntas por escrito; mas depois de fazerem uma ou duas dessas perguntas,
esqueceram-se do escrito e as palavras lhes fluíam, livremente, de seus
próprios e espontâneos pensamentos. Embora não fossem de pais ricos,
trajavam-se com asseio e propriedade.
"Senhor, quando nos
falastes, a nós estudantes, há poucos dias", começou o que estava mais perto,
"dissestes alguma coisa sobre a necessidade de educação correta, para que
pudéssemos enfrentar a vida. Peço-vos explicar de novo o que entendeis por
educação correta. Conversamos a esse respeito entre nós, mas não entendemos bem
isso."
Que espécie de
educação estais recebendo atualmente?
"Ora, estamos no
Colégio, onde nos ensinam as matérias necessárias para uma dada profissão",
respondeu. "Eu vou ser engenheiro; estes meus amigos estão respectivamente
estudando Física, Literatura e Ciências Econômicas. Estamos fazendo os cursos
prescritos e lendo os livros necessários, e quando nos sobra tempo lemos um ou
outro romance; mas, com exceção dos jogos, estamos a maior parte do tempo
aplicados aos nossos estudos."
Pensais que isso basta
para estar-se corretamente educado para a vida?
"Do que dissestes, se
vê que isso não é suficiente", respondeu o segundo. "Mas é só isso que nos dão,
e em geral pensamos que estamos sendo educados."
Só aprender a ler e
escrever, a desenvolver a memória e preparar-se para os exames, adquirir certas
capacidades ou técnicas para obtenção de emprego – isso é educação?
"Mas não é necessário
tudo isso?"
Decerto, é essencial
preparo para se ter um meio de vida adequado, mas a vida não é só isso. Há o
sexo, a ambição, a inveja, o patriotismo, a violência, a guerra, o amor, a
morte, Deus, as relações humanas, que constituem a sociedade – e tantas outras
coisas. Estais sendo educados para enfrentardes esta coisa vastíssima que se
chama a vida?
"Mas, quem irá
educar-nos assim?", perguntou o terceiro. "Nossos mestres e professores parecem
tão indiferentes. Alguns deles são homens brilhantes e muito lidos, mas nenhum
deles pensa sequer em tal coisa. Somos impelidos através dos cursos, e já
teremos muita sorte se tirarmos os nossos diplomas; tudo se está tornando tão difícil."
"Com exceção de nossas
paixões sexuais, que são bastante positivas", disse o primeiro, "nada sabemos
acerca da vida; tudo o mais parece tão vago e remoto. Ouvimos nossos pais
resmungarem sobre a falta de dinheiro, e compreendemos que eles estão aprisionados
em certas rotinas para o resto da vida. Assim, quem pode instruir-nos sobre a
vida?"
Ninguém pode
instruir-vos, mas vós podeis aprender. Há vasta diferença entre aprender e ser
instruído. O aprender prossegue durante toda a vida, ao passo que só se é
instruído durante apenas algumas horas ou anos – e, depois, fica-se o resto da
vida a repetir o que se aprendeu. O que foi ensinado logo se torna cinzas
frias; e a vida, uma coisa viva, se torna um campo de batalha, de vãos
esforços. Sois jogados na vida, sem se vos dar oportunidade ou tempo para a
compreenderdes; antes de saberdes qualquer coisa acerca da vida, vos vedes no
meio dela, casado, preso a um emprego, rodeado de uma sociedade exigente e
inexorável. Cada um deve começar a aprender o que é a vida desde a primeira
infância, e não no último momento; quando já estamos adultos, quase já é tarde
demais.
Sabeis o que é a vida?
Ela se estende do momento de nascerdes ao momento de morrerdes – e talvez além.
A vida é um todo muito vasto e complexo. É como uma casa onde todas as coisas
possíveis acontecem simultaneamente. Amais e odiais, sois ávido, invejoso, e ao
mesmo tempo sentis que não o deveis ser. Sois ambicioso, e encontrais a
frustração ou o bom êxito, em seguida a toda uma série de ansiedades, temores e
crueldades; e mais cedo ou mais tarde manifesta-se o sentimento da futilidade
desse bom êxito. E há também os horrores e a brutalidade da guerra, e a paz
mantida pelo terror; e há nacionalismo, e a soberania nacional, responsáveis
pela guerra; e a morte, no fim da estrada da vida ou a meio do caminho. E a
busca de Deus, com suas crenças antagônicas e as disputas entre religiões
organizadas.
E a luta para se obter e conservar um emprego; e o casamento, os filhos, a doença e o jogo da sociedade e do Estado. A vida é tudo isso e muito mais; e no meio dessa confusão sois lançado. Em geral, nela soçobrais, desditoso, destruído; e se conseguis sobreviver, galgando até o alto da massa amontoada, sois ainda uma parte da confusão. Isso é o que se chama "a vida": luta e sofrimentos perpétuos, e um pouquinho de alegria ocasional. Quem irá instruir-vos a respeito de tudo isso? Ou, melhor, como ireis aprender acerca de tudo isso? Ainda que sejais dotados de capacidades e talentos, sois pressionados pela ambição, pelo desejo de fama, com suas frustrações e sofrimentos. Tudo isso é a vida, não? E transcender tudo isso é também vida.
Continua na próxima quarta-feira
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