A leitura de A face oculta do novo me fez lembrar um
artigo, não tão novo, publicado na edição de 7 de setembro de 2008 do Jornal do Brasil com o título O suicídio como protesto. Seu autor é o
extraordinário jornalista Mauro Santayana e, no meu entender, ele interpreta o
ato final daqueles em quem a guerra desperta a consciência e os leva a ver a
América da mesma forma que Jackie Cogan, o protagonista do filme Killing Them Softly (no Brasil, O Homem da Máfia). "Mas a América,
reflete Cogan, não é uma nação. É um negócio, business". E ao descobrir que matavam não em defesa da pátria, e sim a serviço de interesses
econômicos de grandes corporações, em um último e extremo ato de protesto,
eles põem fim à própria vida, ou melhor, a uma vida imprópria para alguém em quem
a guerra despertou a consciência.
O suicídio como protesto
Cento e quinze
militares norte-americanos, em serviço no Iraque, suicidaram-se no ano passado.
Neste ano, até 31 de agosto, foram 62 os que decidiram matar-se, e há mais 31
casos sob análise. É comum que os suicidas, a fim de preservar o seguro de vida
para seus familiares, dissimulem o ato, fazendo-o passar como acidente.
Os volumosos estudos
sobre o suicídio (até mesmo o jovem Marx se dedicou ao assunto, ao examinar
relatórios policiais de Paris) mostram que é raro o caso em que as causas
estejam nas glândulas ou neurônios da pessoa. Elas se devem, quase sempre, aos
constrangimentos impostos pela sociedade, que levam à depressão, à humilhação,
à vergonha: o suicida se mata por não suportar o meio em que vive. Daí a
observação de Chesterton, de que o suicida, ao matar-se, mata o mundo.
Em The living room, peça recebida com
violência pela crítica britânica, em 1952, Graham Greene discute o tema do
pecado e do suicídio. A mensagem moral, que contraria a teologia católica, é a
de que, em determinadas situações (no caso, um triângulo amoroso), o suicídio é
a única saída para a expiação do sentimento de culpa. Também ali, a heroína se
encontrava prisioneira das circunstâncias – em seu caso, as do afeto proibido.
E há os que se matam
para não matar. Esse parece ser o caso de mais de 600 militares
norte-americanos que se mataram, nos últimos cinco anos, em consequência da
aventura de Bush, do Pentágono e de Wall Street no Oriente Médio.
Há o caso exemplar do
coronel Theodore Westhusing, que se matou no dia 5 de junho de 2005, no Iraque.
Westhusing era professor de filosofia e especialista em ética militar. Em 2004,
convencido de que a guerra era justa, ofereceu-se como voluntário. Com seu
curriculum acadêmico e folha de serviços, foi trabalhar diretamente com o alto
comando americano, junto ao general David Petraeus, que o encarregou de
supervisionar o treinamento de tropas iraquianas para operações especiais
anti-terroristas, pela firma privada US Investigation Services.
O coronel descobriu
que a empresa cobrava 77 milhões de dólares ao ano e sua única despesa era a do
pagamento de 7.500 dólares mensais a cada um dos 15 mercenários israelenses
contratados para a tarefa, ou seja, menos de 1.700 mil dólares ao ano, se, por
hipótese, receberem 15 salários anuais. Era um caso sujo de corrupção. Mais
ainda: observou que poucos trabalhavam, mas se encarregavam de matar civis
iraquianos indiscriminadamente.
O coronel denunciou o
fato a seus superiores, entre eles o general Petraus, que não lhe deram
resposta. Sua última carta aos chefes foi precisa: "Não posso ser parte de
uma missão que entranha a corrupção, o abuso dos direitos humanos e a mentira.
Chega. Não decidi, voluntariamente, vir ao Iraque para servir de apoio à
corrupção, aos mercenários ávidos de dinheiro, aos comandantes interessados
apenas em si mesmos. Vim para servir com honra, e me sinto desonrado".
A guerra pode
brutalizar as pessoas – o que ocorre com mais frequência – ou lhes despertar a
consciência humanística mais profunda. Matar em defesa da pátria é um dever que
alguns cumprem com angústia. Matar a serviço de interesses econômicos de
grandes corporações é outra coisa, conforme as ácidas reflexões dos personagens
de Remarque em Nada de novo no front
ocidental.
A guerra pode brutalizar ou despertar a consciência
Em uma de suas cartas,
Lawrence da Arábia narra profundo remorso por ter matado, pessoalmente, um
jovem árabe. Confessa que o fez sem necessidade, e descobriu, ao guardar a
pistola no coldre, que se estava desumanizando. O mesmo herói, voltando à sua
aldeia britânica, desviou abruptamente a motocicleta que montava, para não
atingir um menino em sua bicicleta. Perdeu a consciência, para morrer seis dias
depois.
Talvez não haja
sociedade contemporânea mais alienada do que a norte-americana, embarcada na
ilusão do poder sem limites. Mesmo assim, ela descobre, de vez em quando, que
seus jovens estão morrendo para que os bilionários continuem usufruindo das
riquezas do mundo e de sua arrogância. Isso ocorreu na época do Vietnã, e
começa a ocorrer agora, com as manifestações de Saint Paul, na Minnesota,
contra a guerra do Iraque e McCain, que a defende. Os suicidas do Iraque (e do
Afeganistão) são também mártires dessa resistência contra o desatino americano.
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Há uma antiga charge de Millôr Fernandes,
publicada no Jornal do Brasil, na
qual dois indivíduos trocam as duas seguintes frases:
- Às vezes, para sobreviver, a gente tem que fazer certas coisas.
- Mas, depois de fazer certas coisas, pra que sobreviver?
No meu entender, mesmo
sem terem conhecido a charge de Millôr, aqueles militares americanos aos quais Mauro
Santayana se refere em seu artigo concordavam plenamente com ela. O que vocês
acham?
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