A prática do método das recordações sucessivas fez com que a referência ao AWOL - American Way of Life, feita na postagem Reflexões provocadas por "A face oculta do novo" (publicada na semana passada), me fizesse lembrar um texto que li em 1993, ano em que foi publicado em um livro intitulado Ser como eles, de autoria do extraordinário escritor uruguaio Eduardo Galeano. Vinte anos se passaram, alguns números nele citados sofreram alterações, mas na essência o texto permanece inteiramente válido e atual. Ou seja, "Podemos ser como eles?" é uma pergunta que continua precisando ser feita se ainda desejarmos evitar o esgotamento dos recursos deste planeta e, consequentemente, a extinção desta insana civilização fascinada pela sociedade de consumo.
Podemos ser como eles?
Promessa dos políticos, razão dos tecnocratas, fantasia dos desamparados: o Terceiro Mundo se transformará em Primeiro Mundo, e será rico e culto e feliz, desde que se porte bem e faça o que mandarem, sem chiar ou criar caso. Um destino de prosperidade recompensará as boas maneiras dos mortos de fome, no capítulo final da telenovela da História. Podemos ser como eles, anuncia o gigantesco anúncio luminoso no caminho do desenvolvimento dos subdesenvolvidos e da modernização dos atrasados.
Mas o que não pode ser não é, e, além disso, é impossível, como dizia com razão Pedro Galo, o toureiro. Se os países pobres atingissem o mesmo nível de produção e abuso que os países ricos, o planeta morreria. Nosso infeliz planeta já está em estado de coma, gravemente intoxicado pela civilização industrial, e espremido até a última gota pela sociedade de consumo.
Nos últimos vinte anos, enquanto a humanidade se multiplicava por três, a erosão assassinou o equivalente a toda a superfície cultivável dos Estados Unidos. O mundo, transformado em mercado e em mercadoria, está perdendo quinze milhões de hectares de florestas por ano. Deles, seis milhões se transformam em desertos. A natureza, humilhada, foi colocada às ordens da acumulação de capital. Terra, mar e ar são envenenados para que o dinheiro produza mais dinheiro, sem que a taxa de lucro diminua. Ser eficiente é ganhar o máximo em um mínimo de tempo.
A chuva ácida provocada pelos gases industriais assassina os bosques e os lagos do Norte do mundo, enquanto o lixo tóxico envenena os rios e os mares; ao Sul, a agroindústria de exploração avança , arrasando árvores e gentes. Ao Norte e ao Sul, A Leste e a Oeste, o homem serra, com delirante entusiasmo, o galho sobre o qual está sentado.
Do bosque ao deserto: modernização, devastação. Na fogueira incessante da Amazônia, arde meia Bélgica por ano, queimada pela civilização da cobiça, e em toda a América Latina a terra está sendo escalpelada e secada. Na América Latina morrem vinte e dois hectares de bosque por minuto, em sua maioria sacrificados pelas empresas que produzem carne ou madeira, em grande escala, para consumo alheio. As vacas da Costa Rica se transformam, nos Estados Unidos, em hamburguers da MacDonald's. Há meio século, as árvores cobriam três quartos do território da Costa Rica. Agora, são poucas as que sobraram, e ao ritmo da atual devastação, este pequeno país será terra careca quando o século chegar ao fim. A Costa Rica exporta carne para os Estados Unidos, e importa dos Estados Unidos pesticidas que os Estados Unidos proíbem que sejam usados em seu próprio solo.
Poucos países dilapidam os recursos de todos os outros. Crime e delírio da sociedade do esbanjamento: os seis por cento mais ricos da humanidade devoram um terço de toda a energia e um terço de todos os recursos naturais que são consumidos no mundo. As estatísticas revelam que um norte-americano consome, em média, a mesma coisa que cinquenta haitianos. Claro que o "em média" não define um morador do Harlem ou Baby Doc Duvalier, mas, seja como for, cabe a pergunta: o que aconteceria se cinquenta haitianos consumissem de repente a mesma coisa que cinquenta norte-americanos?
O que
aconteceria se toda a imensa população do Sul pudesse devorar o mundo
com a impune voracidade do Norte? O que aconteceria se fosse
multiplicada esta louca proporção dos artigos suntuosos e dos automóveis
e das geladeiras e dos televisores e das usinas nucleares e das usinas
elétricas? O que aconteceria com o clima, que já está à beira de um
colapso por causa do superaquecimento da atmosfera? O que aconteceria
com a Terra, com a pouca terra que a erosão está deixando para nós? E
com a água, que a quarta parte da humanidade já está bebendo contaminada
por nitratos e pesticidas e resíduos industriais de mercúrio e chumbo? O
que aconteceria? Não aconteceria. Teríamos simplesmente que mudar de
planeta. Este que temos, já bastante gasto, não aguentaria.
O precário equilíbrio do mundo, que roda pela beira do abismo, depende da perpetuação da injustiça. A miséria de muitos é necessária, para que seja possível o esbanjamento de muitos. Para que poucos continuem consumindo demais, muitos devem continuar consumindo de menos. E para evitar que alguém passe dos limites, o sistema multiplica as armas de guerra. Incapaz de combater a pobreza, combate os pobres, enquanto a cultura dominante, cultura militarizada, abençoa a violência do poder.
O american way of life, baseado no privilégio do esbanjamento, só pode ser praticado, nos países dominados, pelas minorias dominantes. Sua implantação maciça levaria ao suicídio coletivo da humanidade.
Possível, não é. Mas seria desejável?
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Neste momento, interrompo a minha programação
de postagens que tenham a ver com a anterior, pois a próxima será alusiva ao Dia do Amigo. Dia para o qual há
controvérsias sobre quando deve ser comemorado, mas que neste país parece ter
sido oficializado como sendo em 20 de julho.
Sendo assim, a questão "Seria desejável ser
como eles?", com a qual Eduardo Galeano encerra o seu texto, é assunto para
depois do Dia do Amigo.
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