quarta-feira, 5 de junho de 2013

O que eles celebram? (final)

Continuação de sexta-feira
Durante manifestações pedindo justiça, familiares mostraram cartazes revelando sua indignação com a 'ganância de gente corrupta'. Que elementos dessa tragédia mostram essa ganância? Os seguranças impedindo a saída dos jovens porque eles não haviam pago a consumação, por exemplo?
Esse incêndio é uma espécie de fato infinito. Ele congrega uma série de fatos do mundo - legais, políticos, simbólicos. Vamos pensar nos seguranças, por exemplo. Eles têm a mentalidade da polícia, se é que não são policiais. É a mentalidade autoritária em que a relação com o outro é sempre de predomínio pela força, de inabilidade para lidar com o público, com alguém que não seja "ordem e progresso". É esse autoritarismo que o patrão espera dele, aliás. Mas onde está a brigada de incêndio, que seria a outra consciência? Não tem! Morreu gente por causa disso, desse entrave à saída.
Também havia uma quantidade de pessoas muito além da capacidade do lugar...
Nos anos 1980, quando começaram a surgir as boates, elas não eram assim. O Madame Satã não era assim. E antes, nos anos 1950, 60, muito menos. O público era de adultos, os inferninhos eram micro, um tipo de boemia completamente outra, era o mundo do João Antônio, de Copacabana. Mudou a escala. Isso é próprio da geração, mas tem o elemento universal da catástrofe. Ela representa a humanidade, estamos todos diante dela e ela fala a todos. Em parte porque ocupam todas as revistas, todos os jornais. É a tautologia da indústria da comunicação. Em parte porque, de fato, algo diz que poderia ter sido com meu filho ou comigo. As pessoas se sentem comprometidas. Se elas fossem comprometidas assim com a política, seria fascinante. Mas não são.
Você reserva um longo capítulo para as drogas no seu livro. Que papel elas têm nessa grande noite da diversão industrial?
As drogas, no movimento contracultural da juventude ocidental modernista, eram uma experimentação erótica, faziam parte de um projeto no qual se poderia estabelecer outra ordem de existência na vida moderna. Elas também foram capturadas para dentro das casas noturnas, numa fusão com a música techno, especialmente com a explosão do ecstasy no final dos anos 1980 e começo dos 90. A droga é estrutural da própria experiência, não é mais uma possibilidade. Ela é necessária para que a coisa exista.
Estamos falando de drogas e álcool?
Sim, dos dois. Isso disparou uma realidade de excessos. A partir do surgimento da música da noite, aparece um novo tipo de cultura da droga, que é uma drogadição exibida, conspícua. O lugar por excelência disso é a boate. Mas a partir daí existe uma universalização das drogas como diversão, portanto como objeto de consumo de massa.
E a música? De onde veio a necessidade da pirotecnia para acompanhá-la?
Quando os Beatles tocavam nos estádios nos anos 1960, quando inauguraram essa era de espetáculo de massa e expressão pop, grandiosa e sedutora, eram quatro músicos em cima de um palco e só. E havia 60 mil pessoas vendo! Jimi Hendrix, quando botou fogo na guitarra, foi um xamanismo, uma espécie de autossacrifício, uma coisa dionisíaca de incendiar uma parte de si mesmo, ao mesmo tempo amando e atacando o que o representava. Mas foi um evento individual. Depois começa a surgir essa espetacularização visual do mundo da canção. Em 1968, 69, Pink Floyd começa a fazer projeções de imagens, uma produção mais barata. Então, num certo momento dos anos 1980, isso vira um espetáculo pirotécnico gigantesco, com explosões, bolas de fogo. Agora, as pequenas bandas do interior do mundo querem soltar seus rojões e fogos de artifício. Está aumentando a espetacularização, o que significa que a música perdeu importância.
Você chama o DJ da música techno de um 'Sísifo de nosso tempo, pulsando imensamente ao mesmo tempo que anuncia o vazio'. Mas músicos de outros ritmos que alimentam as baladas também não param. É o tal corpo-coração, enquanto a alma alucina?
Sim, é o corpo-suor, em que tudo tem que ser traduzido em pulsação. No Brasil, isso nos chegou muito pelo axé, com as cantoras dançando o tempo todo. As coisas têm que ser levadas no limite da expressividade, do desgaste físico. A banda de Santa Maria se chama Gurizada Fandangueira. Fandango é o velho baile gauchesco de dar o pão, que era feito com sanfona, uma música popular, de fazenda. E o fandango da Gurizada virou isso, uma exibição com sinalizadores que deseja agradar a 1.500 pessoas. Grandes artistas, como Madonna e Lady Gaga, fazem espetáculos assim também. A arte vai sendo deslocada para essa coisa mais infantil. Às vezes a música é playback, mas não é ela que está em jogo. É este show. Um show de pura excitação.
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A entrevista concedida pelo psicanalista Tales Ab’Sáber dá o que pensar!

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