Continuação de segunda-feira
Por que há tantos megaeventos para uma geração
tão voltada para si mesma?
Exatamente por isso. Nesse ponto foi o
filósofo Theodor Adorno quem nos deu contribuições importantes. Quanto mais
individualizado e rarefeito na vida social para defender o próprio prazer,
menos exigente culturalmente é esse consumidor, e mais sua ilusão de
individualidade deságua em uma administração cultural geral. Podemos dizer que
o hiperindivíduo, que busca a singularidade do seu prazer nas ofertas de
mercado, acaba pensando como todos os demais, em uma grande uniformidade
cultural, e ele vai de fato alimentar o megafestival que legitima o presente.
Estamos diante de um mundo que, na mesma medida em que afirma o indivíduo, o
empobrece e o torna apenas idêntico a todos.
Vivemos uma segunda 'idade da festa', expressão
cunhada pelo jornalista Gay Talese que você recupera em seu livro?
É realmente muito interessante a formulação de
Talese, que percebeu de modo intuitivo e profundo a transformação iminente do
grande movimento político da contracultura jovem em uma cultura erótica da
festa administrada. Em uma imensa festa contracultural de Andy Warhol, embalada
pelo Velvet Underground num ginásio de Nova York, no auge dos protestos públicos
contra a Guerra do Vietnã, Talese percebeu o destino da coisa toda: a política
seria em breve substituída pela imagem. Seu texto é o primeiro a falar da
celebração de tudo e de nada, que passou a ser a cultura jovem no nosso tempo,
em que há muita produção de imagem, excitação e gozo, mas, para lembramos os termos
do escritor, "nada está acontecendo". Um lance de espírito de gênio.
Por que a festa precisa sugar tudo para ela? Tudo tem que se expressar como
excitação. É a mesma lógica da mercadoria quando ela aparece: excitar para
circular. Todos precisam estar nesse estado porque, caso contrário, não
correspondem ao mundo. Esse momento está ligado ao desligamento do vetor
político da contracultura. Ele passa a ser encenado, não é mais o embate
político real.
'É a mesma lógica da
mercadoria quando ela aparece: excitar para circular'
Onde estaria esse vetor político hoje?
É uma grande angústia ver esse hipermundo
pacificado porque as pessoas foram convencidas de que a política se resolve nos
partidos. Se a gente não acredita nas respostas que estão sendo dadas, a gente
não acredita nessa política e ela não cumpre seu mandato, embora diga que
cumpra. Adorno dizia isso: a ideologia não é mentirosa no seu conteúdo. O
conteúdo da política é uma verdade racional humana. A ideologia é mentirosa
porque ela disse que já deu o que prometeu, cortando o processo da demanda
social. A política está congelada nessa estrutura do capital. Manter isso, que
é extremamente instável e estável, implica uma energia incrível, inclusive de
repressão. Em 2008, vimos como é difícil manter o equilíbrio de um negócio que
tem que gerar cada vez mais lucro. A política está naquilo que essa própria
estrutura aparentemente fechada não consegue sustentar mais. Essas são as
crises reais, que a ideologia não consegue barrar. No plano simbólico da
expressão cultural, é tudo política de imagem, de alimentar o todo.
Nesse texto, Talese também dizia que, para
existir, a pessoa precisava ser vista. Hoje, para existir, ela necessita ser
fotografada e postar-se no Facebook.
Era o tempo dos famosos 15 minutos de fama de
Andy Warhol, o vínculo subjetivo com a sociedade do espetáculo do escritor
francês Guy Debord. Nos anos 1960, começa a surgir essa percepção de que as
pessoas estão encenando alguma coisa. Tão importante quanto ser alguém é
produzir sua imagem. Essa foi a grande mensagem social da televisão. A internet
é uma grande universalização dessa tendência, acompanhada de fragmentação e
algum grau virtual de participação. Eles estão o tempo todo se comunicando, em
grande parte querendo saber onde está a melhor festa. Essa prática cria, a cada
noite, um mapa da vida e da cidade, um GPS das baladas. E esse mapa é mundial.
Isso também vigora com força no Oriente?
Repare: todo filme que trata de contradições
políticas no Oriente traz uma baladinha. É uma espécie de enclave da cultura
ocidental, que significa a inversão de todos os valores ao redor. Essa balada
está sintonizada com a balada ocidental, a mesma música, a mesma moda, o
folgazão do consumo de diversão internacional.
Ironicamente, todas as câmeras do circuito
interno da boate Kiss desapareceram. Ninguém quis ficar com a imagem de
responsável pela tragédia...
Esse episódio catastrófico revela uma situação
de descompasso do Brasil. O País produziu para si mesmo o discurso edificante
de que se modernizou rapidamente, o que não é verdade em muitos aspectos da
vida. A Kiss é uma pequena boate, mas com características dessa cultura global
da casa noturna cuja relação entre empresário, prefeitura e agentes públicos de
segurança é toda degradada. Ninguém é culpado, e todo mundo é. São os déficits
de técnica brasileira, técnica pública, inclusive.
Termina na próxima quarta-feira
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