sexta-feira, 31 de maio de 2013

O que eles celebram? (II)

Continuação de segunda-feira
Por que há tantos megaeventos para uma geração tão voltada para si mesma?
Exatamente por isso. Nesse ponto foi o filósofo Theodor Adorno quem nos deu contribuições importantes. Quanto mais individualizado e rarefeito na vida social para defender o próprio prazer, menos exigente culturalmente é esse consumidor, e mais sua ilusão de individualidade deságua em uma administração cultural geral. Podemos dizer que o hiperindivíduo, que busca a singularidade do seu prazer nas ofertas de mercado, acaba pensando como todos os demais, em uma grande uniformidade cultural, e ele vai de fato alimentar o megafestival que legitima o presente. Estamos diante de um mundo que, na mesma medida em que afirma o indivíduo, o empobrece e o torna apenas idêntico a todos.
Vivemos uma segunda 'idade da festa', expressão cunhada pelo jornalista Gay Talese que você recupera em seu livro?
É realmente muito interessante a formulação de Talese, que percebeu de modo intuitivo e profundo a transformação iminente do grande movimento político da contracultura jovem em uma cultura erótica da festa administrada. Em uma imensa festa contracultural de Andy Warhol, embalada pelo Velvet Underground num ginásio de Nova York, no auge dos protestos públicos contra a Guerra do Vietnã, Talese percebeu o destino da coisa toda: a política seria em breve substituída pela imagem. Seu texto é o primeiro a falar da celebração de tudo e de nada, que passou a ser a cultura jovem no nosso tempo, em que há muita produção de imagem, excitação e gozo, mas, para lembramos os termos do escritor, "nada está acontecendo". Um lance de espírito de gênio. Por que a festa precisa sugar tudo para ela? Tudo tem que se expressar como excitação. É a mesma lógica da mercadoria quando ela aparece: excitar para circular. Todos precisam estar nesse estado porque, caso contrário, não correspondem ao mundo. Esse momento está ligado ao desligamento do vetor político da contracultura. Ele passa a ser encenado, não é mais o embate político real.
'É a mesma lógica da mercadoria quando ela aparece: excitar para circular'
Onde estaria esse vetor político hoje?
É uma grande angústia ver esse hipermundo pacificado porque as pessoas foram convencidas de que a política se resolve nos partidos. Se a gente não acredita nas respostas que estão sendo dadas, a gente não acredita nessa política e ela não cumpre seu mandato, embora diga que cumpra. Adorno dizia isso: a ideologia não é mentirosa no seu conteúdo. O conteúdo da política é uma verdade racional humana. A ideologia é mentirosa porque ela disse que já deu o que prometeu, cortando o processo da demanda social. A política está congelada nessa estrutura do capital. Manter isso, que é extremamente instável e estável, implica uma energia incrível, inclusive de repressão. Em 2008, vimos como é difícil manter o equilíbrio de um negócio que tem que gerar cada vez mais lucro. A política está naquilo que essa própria estrutura aparentemente fechada não consegue sustentar mais. Essas são as crises reais, que a ideologia não consegue barrar. No plano simbólico da expressão cultural, é tudo política de imagem, de alimentar o todo.
Nesse texto, Talese também dizia que, para existir, a pessoa precisava ser vista. Hoje, para existir, ela necessita ser fotografada e postar-se no Facebook.
Era o tempo dos famosos 15 minutos de fama de Andy Warhol, o vínculo subjetivo com a sociedade do espetáculo do escritor francês Guy Debord. Nos anos 1960, começa a surgir essa percepção de que as pessoas estão encenando alguma coisa. Tão importante quanto ser alguém é produzir sua imagem. Essa foi a grande mensagem social da televisão. A internet é uma grande universalização dessa tendência, acompanhada de fragmentação e algum grau virtual de participação. Eles estão o tempo todo se comunicando, em grande parte querendo saber onde está a melhor festa. Essa prática cria, a cada noite, um mapa da vida e da cidade, um GPS das baladas. E esse mapa é mundial.
Isso também vigora com força no Oriente?
Repare: todo filme que trata de contradições políticas no Oriente traz uma baladinha. É uma espécie de enclave da cultura ocidental, que significa a inversão de todos os valores ao redor. Essa balada está sintonizada com a balada ocidental, a mesma música, a mesma moda, o folgazão do consumo de diversão internacional.
Ironicamente, todas as câmeras do circuito interno da boate Kiss desapareceram. Ninguém quis ficar com a imagem de responsável pela tragédia...
Esse episódio catastrófico revela uma situação de descompasso do Brasil. O País produziu para si mesmo o discurso edificante de que se modernizou rapidamente, o que não é verdade em muitos aspectos da vida. A Kiss é uma pequena boate, mas com características dessa cultura global da casa noturna cuja relação entre empresário, prefeitura e agentes públicos de segurança é toda degradada. Ninguém é culpado, e todo mundo é. São os déficits de técnica brasileira, técnica pública, inclusive.
Termina na próxima quarta-feira

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