segunda-feira, 27 de maio de 2013

O que eles celebram? (I)

Após uma postagem focalizando a cultura do entretenimento de mercado, segue a primeira de três partes nas quais dividi uma excelente entrevista com o psicanalista Tales Ab’Sáber apresentada em uma reportagem de Mônica Manir, publicada na edição de 3 de fevereiro de 2013 do jornal O Estado de S. Paulo. Na entrevista é questionado o que a juventude tanto celebra. Será que mais uma vez consegui manter a minha intenção de estabelecer alguma relação com a postagem anterior?
O que eles celebram?
"Celebram o desencanto de uma geração cujos impulsos de radicalização humanista, estética e política foram reduzidos a meras práticas de consumo. Celebram a balada, a boate de massa que virou o novo espaço da república pop. Celebram uma juventude atomizada entre as vidas difíceis de mercado e um hedonismo turbinado pela compulsão de ser feliz, como manda a propaganda. No caso da Kiss, celebram um Brasil em que a relação entre empresários, agentes públicos de segurança e políticos é toda degradada. Celebram, enfim, o que não é para ser celebrado." Trechos da entrevista exclusiva do psicanalista Tales Ab'Sáber.
Na balada do nada
Jovens festejam na noite o fato de não terem o que festejar, embalados numa felicidade compulsória
Numa usina elétrica desativada, cenário de máquinas, fiações e tubos da era do nazismo, uma boate vira a noite sem fechar. É a Berghain / Panorama Bar - vulgo Paranoia, para os brasileiros que habitam o circuito techno -, apontada por alguns como o melhor clube do mundo, ainda que seja para turista ver. Tales Ab'Sáber foi um dos que lá baixou, numa estada em Berlim. E de lá saiu com a certeza de que tinha material valioso para uma perícia sobre a grande noite da diversão industrial, traduzido em A Música do Tempo Infinito, livro lançado em outubro pela Cosac Naify.
"É uma festa intensa, que deseja não terminar jamais", diz o psicanalista sobre a balada alemã, que pulsa quase diariamente a partir das 23h59 e que, de sábado para domingo, entorpece o público com música eletrônica até a noite seguinte. Nessa perspectiva, o único sentido do dia é acionar o GPS para a próxima noitada, algo instantâneo de se fazer em Berlim, considerando a fábrica de entretenimento que é.
Depois da tragédia em Santa Maria, as blitze que se espalharam pelo País atrás de boates-ratoeiras escancararam uma noite brasileira também alucinada, que por nada festeja tudo. Antes do incêndio, somente na cidade gaúcha eram pelo menos cinco baladas por dia, de quinta a sábado. Em São Paulo capital, 500 casas noturnas foram licenciadas no ano passado e cerca de 600 esperam na fila por um alvará, enquanto outros milhares se espalharam feito gripe pelo País.
"Trata-se de um dispositivo de época para a gestão do prazer", diz Tales. "A balada é mais bonita, mais livre e mais erótica que a vida, e no entanto está totalmente articulada, econômica e socialmente, à vida como ela é." Algo diferente dos shows de rock e dos inferninhos dos anos 1970? Em seu apartamento em Pinheiros, bairro que abriga mais de dez páginas de boate do Google, Tales tenta traduzir essa geração que, em suas palavras, vive uma experiência sensorial sem compartilhamento. Esse gaúcho, radicado desde o primeiro ano de vida em São Paulo, também faz uma crítica sobre a morte quase instantânea de mais de 230 guris num país que vendeu para si a imagem de moderno, mas que de modernidade só absorveu a excitação, o Facebook e a pirotecnia.
A operação pente-fino nas boates do País mostrou que nos municípios brasileiros as casas noturnas brotaram a rodo. Que tipo de lazer é esse, que atrai tantos jovens?
Ele tem raízes na oferta de experiências própria da grande metrópole moderna, como os cafés concertos da Paris de Haussmann, os cabarés berlinenses dos anos 1920 e as casas de dança e jazz da Nova York da mesma época. Muito cedo se observou nessa invenção para a noite uma espécie de nova ordem internacional da diversão, ligada à organização da vida das massas na sociedade liberal. No entanto, a partir dos anos 1950 e 1960, emergiu a ideia de que a noite dos jovens estaria ligada também a um vetor político, de crítica ao sistema, no qual aquilo que era ofertado pelo mercado era vivido como a negatividade da antiga bohème. Esse movimento sempre guardou a ambiguidade de ser regulador e ao mesmo tempo um espaço imaginário de desejos conflitantes com a vida social. A partir das décadas de 1980 e 1990, há um retorno à ordem da contracultura ocidental, que teve seu ápice público e político, em plena luz do dia, em 1968 e 1970. Ele foi retirado do cotidiano, reservado para a circulação de mercado, para ser guardado, e de certo modo privatizado, na emergência da boate de massa, o novo espaço da república pop. Essa passagem histórica foi marcada pela ultrapassagem do rock - e da canção - pela música eletrônica. No Brasil, ela se condensou na balada, que não existia na minha juventude dos anos 1980.
O que, em geral, caracteriza uma balada?
Certa vez um jovem paciente me falou: "A balada é um lugar em que tudo muda. Quando você entra numa balada tudo vira outra coisa, você, as pessoas, o mundo. Nada do que vale fora de lá continua valendo, é um mundo à parte e outro do próprio mundo". A balada é o espaço que sustenta esse desejo. Ela dá uma amostra, um sampler, do mundo do luxo e da luxúria para os que não o possuem, ou da experiência estética antiburguesa para os adaptados. Trata-se de um dispositivo de época para a gestão do prazer. A balada é mais bonita, mais livre e mais erótica do que a vida, e no entanto está totalmente articulada , econômica e socialmente, à vida como ela é. Ela mantém vivo esse potencial utópico, e ao mesmo tempo o reduz a um espaço socialmente aceito. É a sua forma de solução de compromisso, o seu sonho social.
A balada agrega todas as classes sociais. De que juventude estamos tratando?
Uma juventude desencantada, que teve os impulsos críticos de radicalização humanista, estética e democrática, próprios do movimento da juventude ocidental do século 20, reduzidos a práticas de consumo a partir da aceleração da cultura do dinheiro dos anos 1990 e 2000. Essa juventude tenta manter valores de vanguarda de eros e civilização, como dizia o filósofo Herbert Marcuse, comprometidos com seu destino de venda de um trabalho sem garantias, muitas vezes sem direitos efetivos, no mundo das corporações. Uma juventude atomizada, que caminha entre a baixa vida de mercado e o hedonismo de consumo do teatro excitado de sua noite.
O que costumam festejar?
É um paradoxo. Eles festejam suas vidas difíceis de mercado, e sua inserção por um fio na coisa toda. Mais ou menos do mesmo modo que a mercadoria, por meio da cultura da propaganda, festeja a si própria sem parar. A ordem do poder atual exige celebração contínua, ligada à afirmação do indivíduo de realização do próprio prazer, desde que ele seja de mercado, apolítico. E esses jovens, que por vezes fingem um cuidadoso punkismo construído em lojas caras da moda, celebram a mesma celebração geral de seu mundo. Ou, como escrevi em meu livro, eles festejam o fato de não haver nada a festejar. É a compulsão a ser feliz, que diz muito respeito à propaganda.
Continua na próxima sexta-feira

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