Esta postagem deveria ter
sido feita logo após "Ducentésima postagem" ou "Quanto pior melhor". Por quê? Porque pode ajudá-los a confirmar ou não possíveis suspeitas quanto à
sanidade mental do mantenedor deste blog que podem ter sido levantadas a partir da simples leitura do
título daquela postagem. Por que a publiquei somente agora? Porque priorizei
duas postagens provocadas pelo comentário feito sobre aquela.
Sendo assim, segue um texto de Rubem Alves no
qual ele conta a experiência vivida ao ser convidado para fazer uma preleção
sobre saúde mental. Segundo ele, não só os que o convidaram, mas também ele supuseram
que, na qualidade de psicanalista, ele deveria ser um especialista no assunto. Tanto
que aceitou. Mas foi só parar para pensar, para se arrepender, pois percebeu
que nada sabia. Porém, valendo-se da condição de ser alguém extraordinário, ele elaborou um
instigante e surpreendente texto intitulado Saúde
mental que foi publicado em um livro seu intitulado O Médico. A referência a um equipamento denominado toca-discos
revela que o texto não é recente, mas pelas ideias neles apresentadas
considero-o atemporal. Dito isto, o que espero é que vocês estejam doidos (as)
para lê-lo.
Saúde mental
Fui
convidado a fazer uma preleção sobre saúde mental. Os que me convidaram
supuseram que eu, na qualidade de psicanalista, deveria ser um especialista no
assunto. E eu também pensei. Tanto que aceitei. Mas foi só parar para pensar,
para me arrepender. Percebi que nada sabia. Eu me explico.
Comecei o
meu pensamento fazendo uma lista das pessoas que, do meu ponto de vista,
tiveram uma vida mental rica e excitante, pessoas cujos livros e obras são
alimento para a minha alma. Nietzsche, Fernando Pessoa, Van Gogh, Wittgenstein,
Cecília Meireles, Maiakovski. E logo me assustei. Nietzsche ficou louco.
Fernando Pessoa era dado à bebida. Van Gogh matou-se. Wittgenstein alegrou-se
ao saber que iria morrer em breve: não suportava mais viver com tanta angústia.
Cecília Meireles sofria uma suave depressão crônica. Maiakovski suicidou-se.
Essas eram pessoas lúcidas e profundas que continuarão a ser pão para os vivos
muito depois de nós termos sido completamente esquecidos.
Mas será
que tinham saúde mental? Saúde mental, essa condição em que as idéias
comportam-se bem, sempre iguais, previsíveis, sem surpresas, obedientes ao
comando do dever, todas as coisas nos seus lugares, como soldados em ordem-unida,
jamais permitindo que o corpo falte ao trabalho, ou que faça algo inesperado;
nem é preciso dar uma volta ao mundo num barco à vela - basta fazer o que fez a
Shirley Valentine (se ainda não viu, veja o filme!) ou ter um amor proibido ou,
mais perigoso que tudo isso, a coragem de pensar o que nunca pensou. Pensar é
uma coisa muito perigosa...
Não, saúde
mental elas não tinham. Eram lúcidas demais para isso. Elas sabiam que o mundo
é controlado pelos loucos e idosos de gravata. Sendo donos do poder, os loucos
passam a ser os protótipos da saúde mental. Claro que nenhum dos nomes que
citei sobreviveria aos testes psicológicos a que teria de se submeter se fosse
pedir emprego numa empresa. Por outro lado, nunca ouvi falar de político que
tivesse estresse ou depressão. Andam sempre fortes em passarelas pelas ruas da
cidade, distribuindo sorrisos e certezas.
Sinto que
meus pensamentos podem parecer pensamentos de louco e por isso apresso-me aos
devidos esclarecimentos.
Nós somos
muito parecidos com computadores. O funcionamento dos computadores, como todo
mundo sabe, requer a interação de duas partes. Uma delas chama-se hardware, literalmente "equipamento
duro", e a outra denomina-se software,
"equipamento macio". O hardware é constituído por todas as coisas sólidas com que o
aparelho é feito. O software é
constituído por entidades "espirituais" - símbolos que formam os
programas e são gravados nos disquetes.
Nós também
temos um hardware e um software. O hardware são os nervos do cérebro, os neurônios, tudo aquilo que
compõe o sistema nervoso. O software
é constituído por uma série de programas que ficam gravados na memória. Assim
como nos computadores, o que fica na memória são símbolos, entidades
levíssimas, dir-se-ia mesmo "espirituais", sendo que o programa mais
importante é a linguagem.
Um
computador pode enlouquecer por defeitos no hardware
ou por defeitos no software. Nós
também. Quando o nosso hardware fica
louco é preciso chamar psiquiatras e neurologistas, que virão com suas poções
químicas e bisturis consertar o que estragou. Quando o problema está no software, entretanto, poções e bisturis
não funcionam. Não se conserta um programa com chave de fenda. Porque o software é feito de símbolos, somente
símbolos podem entrar dentro dele. Assim, para lidar com o software é preciso fazer uso de símbolos. Por isso, quem trata das
perturbações do software humano nunca
se vale de recursos físicos para tal. Suas ferramentas são palavras, e eles
podem ser humoristas, palhaços, escritores, gurus, amigos e até mesmo
psicanalistas.
Acontece,
entretanto, que esse computador que é o corpo humano tem uma peculiaridade que
o diferencia dos outros: o seu hardware,
o corpo, é sensível às coisas que o seu software
produz. Pois não é isso que acontece conosco? Ouvimos uma música e choramos.
Lemos os poemas do Drummond e o corpo fica excitado.
Imagine um
aparelho de som. Imagine que o toca-discos e os acessórios - o hardware - tenham a capacidade de ouvir
a música que ele toca e de se comover. Imagine mais, que a beleza é tão grande
que o hardware não a comporta e se
arrebenta de emoção! Pois foi isso que aconteceu com aquelas pessoas que citei
no princípio: a música que saía do seu software
era tão bonita que o seu hardware não
suportou.
Dados esses
pressupostos teóricos, estamos agora em condições de oferecer uma receita que
garantirá, àqueles que a seguirem à risca, saúde mental até o fim dos seus
dias.
Opte por um
software modesto. Evite as coisas
belas e comoventes. A beleza é perigosa para o hardware. Cuidado com a música. Brahms e Mahler são especialmente
contra-indicados. Já o rock pode ser tomado à vontade. Quanto às leituras,
evite aquelas que fazem pensar. Há uma vasta literatura especializada em
impedir o pensamento. Se há livros do doutor Lair Ribeiro, por que se arriscar
a ler Saramago? Os jornais têm o mesmo efeito. Devem ser lidos diariamente.
Como eles publicam diariamente sempre a mesma coisa com nomes e caras diferentes,
fica garantido que nosso software
pensará sempre coisas iguais. E, aos domingos, não desligue a televisão.
Deixe-se hipnotizar pelos programas de auditório.
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