Em conformidade com a
intenção de estabelecer alguma relação entre postagens consecutivas, após a
opinião de um psicanalista sobre o que seja saúde mental segue a opinião de um neurocirurgião sobre algo que ele considera
capaz de lesionar o cérebro. Considerando a analogia entre seres
humanos e computadores (feita por Rubem Alves na postagem anterior), após espalhar uma ideia de um profissional que lida com software este
blog espalha uma de alguém que trabalha com hardware. O texto é de Jair Raso,
vice-presidente da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia, e foi publicado na
edição de 31 de março de 2013 da Folha de
S.Paulo.
MMA e o glamour da violência
O cigarro
já teve a sua época de glamour, associado a grandes estrelas do cinema e a
intelectuais. Hoje, o prestígio é da violência e as celebridades no Brasil são
os atores das Artes Marciais Mistas (MMA). Wanderlei Silva, Anderson Silva,
Rodrigo e Rogério Minotauro fazem publicidade, aparecem em programas de
auditório e, o que é pior, inspiram o comportamento de milhares de pessoas,
sobretudo jovens.
Pode-se
chamar de arte ou esporte algo que lembra as "rinhas de galo" ou as
lutas de gladiadores no império romano?
Além da
violência inspirada por essas lutas, há o mal que elas causam à saúde dos
lutadores. Dustin Jenson, lutador de MMA, morreu seis dias após sofrer uma
lesão no cérebro durante uma luta em maio de 2012, nos Estados Unidos. O
lutador de boxe brasileiro Maguila é um exemplo do portador de doença
relacionada à luta: tem quadro de demência atribuído aos repetidos traumatismos
cranianos sofridos durante sua carreira de lutador.
Há mais de
30 anos, a neurocirurgia fez uma série de estudos que mudou os paradigmas do
diagnóstico e tratamento do traumatismo crânio-encefálico.
Grande
parte desses estudos foi feita em animais. No entanto, os mais impressionantes
foram aqueles realizados por meio da observação de vídeo dos nocautes nas lutas
de boxe. O movimento da cabeça em cada golpe determina a gravidade da lesão no
cérebro. Para que o boxeador vá a nocaute, ou seja, para que entre em coma, é
necessário que o golpe sofrido faça um mecanismo de torção em seu pescoço, com
os neurônios perdendo momentaneamente grande parte de suas conexões com o
corpo.
Os estudos
esclareceram os conceitos de lesão axonal difusa, amnésia lacunar e do coma de
origem traumática. Quando um lutador é nocauteado, ele sofre uma lesão axonal
difusa, que pode ser fisiológica ou anatômica. A última pode deixar danos
irreversíveis.
A amnésia
lacunar é a perda da capacidade de se lembrar de eventos que sucederam o
traumatismo. Houve casos de lutadores que não se lembravam de um ou dois rounds
numa sequência de luta em que caíram, mas conseguiram se recuperar. Um lutador
sequer se lembrava se havia ganhado ou perdido determinada luta.
Em longo
prazo, traumas repetidos no encéfalo podem provocar demência ou outros tipos de
doença, como a Doença de Parkinson. Muhammad Ali (Cassius Clay), uma lenda do
boxe internacional, é um dos exemplos.
O UFC
(MMA), verdadeiro vale-tudo, é uma versão mais popular do boxe. Mas os
mecanismos de agressão ao cérebro são os mesmos. Sequelas definitivas em seus
praticantes também não são incomuns. Apesar disso, anunciadas com estardalhaço
e assistidas por milhões de pessoas, as lutas garantem investimentos
milionários nesse tipo de esporte.
Nesse
aspecto, os animais estão mais bem protegidos. A Declaração Universal dos
Direitos dos Animais, proclamada em 1978 pela Unesco, abomina toda forma de
maus tratos de animais para divertimento dos homens. No Brasil, o governo Jânio
Quadros proibiu as rinhas de galo e até hoje são caso de polícia. Os trabalhos
sobre traumatismo crânio-encefálico tendo animais como modelos praticamente
desapareceram.
Passa da
hora da Declaração Universal dos Direitos Humanos fazer algo semelhante com
essas estúpidas lutas, como o boxe e o UFC, versões de verdadeiras roletas
russas. Não deveriam fazer parte do que consideramos esporte. Afinal, esporte é
atividade relacionada à saúde e não à doença.
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