segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Nossa Segunda Ocupação: fazer pelos outros (final)

Continuação de quinta-feira
Seja o que for de que houvermos recebido maior quinhão que os outros – saúde, talento, competência, êxito, infância venturosa, condições harmoniosas de vida doméstica, - não devemos guardar tudo só para nós como coisa natural. Em sinal de gratidão pela nossa boa sorte, devemos em troca, fazer algum sacrifício pelos outros.
Para aqueles que conhecem o sofrimento sob certas formas, há sempre oportunidades especiais. Temos, por exemplo, a fraternidade reinante entre os que carregam consigo a marca da dor. Quem se viu liberto das angústias da dor física, não deve pensar que é livre: desse momento em diante, ele se sente como que obrigado a amparar os outros no caminho da libertação. Se uma operação nos salvou da morte ou da tortura, façamos o que nos for possível para permitir à ciência médica penetrar nos redutos de morte e de agonia que ainda estão por conquistar. O mesmo com a mãe que viu seu filho salvo da morte, ou com os filhos que viram como a ciência médica tornou toleráveis os derradeiros tormentos do pai enfermo. Todos devem unir-se para que outros também possam usufruir os mesmos benefícios.
Na renúncia e sacrifício devemos, acima de tudo, saber dar. Quem oferece a esmola de dez dólares a um necessitado, se os pode dar, não fez sacrifício algum. A oferta da viúva, de que nos falam os Evangelhos, valeu mais do que todos os donativos dos ricos, porque esse pouco era, para ela, tudo. Devemos, por nossa parte, dar alguma coisa de que nos custe apartar-nos, ainda que seja somente a hora que queríamos passar no cinema ou em nosso jogo favorito.
Ouço muita gente dizer: "Ah, se ao menos eu fosse rico, quantas coisas boas eu não faria para ajudar os outros!" Mas todos nós podemos ser ricos de amor e generosidade. Além disso, se damos com cautela, indagando primeiro das necessidades exatas daqueles que mais necessitam de nossa ajuda, estamos dando do nosso próprio interesse, do nosso próprio amor e cuidado, o que vale bem mais do que todo o dinheiro deste mundo.
E, por misterioso desígnio da lei universal, conforme damos de nosso amor, mais amor e felicidade recebemos, para continuarmos a nossa jornada.
As obras de beneficência organizada são, naturalmente, necessárias; mas as suas lacunas devem ser preenchidas pelo serviço pessoal, prestado com amorosa bondade. Uma organização beneficente é um mecanismo complicado; como o automóvel, precisa de uma larga estrada para correr. Não pode penetrar, nas veredas mais estreitas: essas estão reservadas aos indivíduos que as possam percorrer de olhos abertos e corações transbordantes de compreensão.
Não podemos abdicar de nossa consciência em favor de uma organização, nem de um governo. "Serei eu guardador de meu irmão?" Decerto que sim! Não posso fugir à minha responsabilidade, dizendo que ao Estado cumpre fazer quanto for necessário. E é uma tragédia que, hoje tanta gente pensa e sinta diversamente.
Até na vida em família as crianças começam a crer que não têm obrigação de cuidar dos pais. Mas as pensões pagas aos velhos não podem dispensar os novos dos seus deveres. A desumanização dessa assistência é um erro, porque vem abolir o princípio do amor, que é o alicerce sobre o qual assenta a formação dos seres humanos e da própria civilização.
A ternura que dispensamos aos mais fracos do que nós próprios, fortalece nosso coração para a vida. Fazemos coisas horríveis uns aos outros, porque carecemos de compreensão e de piedade. Desde o momento em que compreendemos o nosso semelhante, e nos compadecemos dele e o perdoamos, como que lavamos a nossa alma, e o mundo nos parece mais limpo.
Mas por que devo eu perdoar ao meu semelhante?
Porque, quando não perdoo, não sou leal comigo mesmo. Estou procedendo como se estivesse isento de culpas idênticas – quando na verdade não estou. Devo perdoar as mentiras que dizem a meu respeito, porque muitas vezes minha própria conduta tem sido enodoada de mentiras. Devo perdoar a carência de amor, o ódio, a calúnia, a fraude, a arrogância que encontro pelo caminho, pois que eu mesmo muitas vezes tenho carecido de amor e tenho odiado, caluniado, defraudado, e sido arrogante. E mais, devo perdoar sem alarde nem espalhafato. Não consigo em geral perdoar por completo; não chego sequer a ser sempre justo. Mas aquele que se esforça por viver segundo essa regra, simples e dura como ela é, conhecerá as reais aventuras e triunfos da alma.
Causou-nos certo homem uma ofensa ou injustiça. Devemos esperar que ele nos venha pedir perdão? De modo algum. Pode acontecer que ele nunca o peça – e em tal caso nós nunca o perdoaríamos, o que seria mau. Não, em vez disso, digamos: "A ofensa não existe"!
Observo o varredor que, armado de pá e vassoura, varre o lixo da sala de espera da estação ferroviária. Varreu primeiro de um lado, depois vai varrer do outro. Nisto, ele olha para trás, por cima do ombro, e que vê? Um homem que joga no chão a ponta de um charuto, uma criança que espalha papéis em volta – isto é, mais lixo se acumulando onde ele acabara de limpar! E, no entanto, ele deve continuar com o seu trabalho, e sem perder a paciência. O mesmo devemos todos nós fazer. Em minhas relações pessoais, devo estar sempre munido de pá e vassoura. Devo varrer continuamente o lixo. Devo desembaraçar-me das coisas mortas e inúteis. Se as folhas não caíssem das árvores no outono, como é que haviam de crescer na primavera as folhas novas?
Poderão pensar que é maravilhosa a existência que minha senhora e eu levamos no sertão equatorial. Mas vivemos ali como poderíamos viver em qualquer outra parte! Todos podem levar uma existência ainda mais prodigiosa deixando-se ficar onde estão e pondo a sua alma à prova em mil pequenas experiências e conquistando triunfos de amor ao próximo. Uma tal carreira do espírito reclama paciência, devoção, ousadia. Exige força de vontade e a determinação de amar: a prova máxima a que um homem pode sujeitar-se. Mas é nessa difícil "segunda ocupação" que nós saberemos encontrar a única, a autêntica, a verdadeira felicidade.

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