Continuação de quinta-feira
Seja o que for de que
houvermos recebido maior quinhão que os outros – saúde, talento, competência,
êxito, infância venturosa, condições harmoniosas de vida doméstica, - não
devemos guardar tudo só para nós como coisa natural. Em sinal de gratidão pela
nossa boa sorte, devemos em troca, fazer algum sacrifício pelos outros.
Para aqueles que conhecem
o sofrimento sob certas formas, há sempre oportunidades especiais. Temos, por
exemplo, a fraternidade reinante entre os que carregam consigo a marca da dor.
Quem se viu liberto das angústias da dor física, não deve pensar que é livre:
desse momento em diante, ele se sente como que obrigado a amparar os outros no
caminho da libertação. Se uma operação nos salvou da morte ou da tortura,
façamos o que nos for possível para permitir à ciência médica penetrar nos
redutos de morte e de agonia que ainda estão por conquistar. O mesmo com a mãe
que viu seu filho salvo da morte, ou com os filhos que viram como a ciência
médica tornou toleráveis os derradeiros tormentos do pai enfermo. Todos devem
unir-se para que outros também possam usufruir os mesmos benefícios.
Na renúncia e
sacrifício devemos, acima de tudo, saber dar. Quem oferece a esmola de dez
dólares a um necessitado, se os pode dar, não fez sacrifício algum. A oferta da
viúva, de que nos falam os Evangelhos, valeu mais do que todos os donativos dos
ricos, porque esse pouco era, para ela, tudo. Devemos, por nossa parte, dar
alguma coisa de que nos custe apartar-nos, ainda que seja somente a hora que
queríamos passar no cinema ou em nosso jogo favorito.
Ouço muita gente
dizer: "Ah, se ao menos eu fosse rico, quantas coisas boas eu não faria
para ajudar os outros!" Mas todos nós podemos ser ricos de amor e
generosidade. Além disso, se damos com cautela, indagando primeiro das
necessidades exatas daqueles que mais necessitam de nossa ajuda, estamos dando
do nosso próprio interesse, do nosso próprio amor e cuidado, o que vale bem
mais do que todo o dinheiro deste mundo.
E, por misterioso
desígnio da lei universal, conforme damos de nosso amor, mais amor e felicidade
recebemos, para continuarmos a nossa jornada.
As obras de
beneficência organizada são, naturalmente, necessárias; mas as suas lacunas
devem ser preenchidas pelo serviço pessoal, prestado com amorosa bondade. Uma
organização beneficente é um mecanismo complicado; como o automóvel, precisa de
uma larga estrada para correr. Não pode penetrar, nas veredas mais estreitas:
essas estão reservadas aos indivíduos que as possam percorrer de olhos abertos
e corações transbordantes de compreensão.
Não podemos abdicar de
nossa consciência em favor de uma organização, nem de um governo. "Serei
eu guardador de meu irmão?" Decerto que sim! Não posso fugir à minha
responsabilidade, dizendo que ao Estado cumpre fazer quanto for necessário. E é
uma tragédia que, hoje tanta gente pensa e sinta diversamente.
Até na vida em família
as crianças começam a crer que não têm obrigação de cuidar dos pais. Mas as
pensões pagas aos velhos não podem dispensar os novos dos seus deveres. A
desumanização dessa assistência é um erro, porque vem abolir o princípio do
amor, que é o alicerce sobre o qual assenta a formação dos seres humanos e da
própria civilização.
A ternura que
dispensamos aos mais fracos do que nós próprios, fortalece nosso coração para a
vida. Fazemos coisas horríveis uns aos outros, porque carecemos de compreensão
e de piedade. Desde o momento em que compreendemos o nosso semelhante, e nos
compadecemos dele e o perdoamos, como que lavamos a nossa alma, e o mundo nos
parece mais limpo.
Mas por que devo eu
perdoar ao meu semelhante?
Porque, quando não
perdoo, não sou leal comigo mesmo. Estou procedendo como se estivesse isento de
culpas idênticas – quando na verdade não estou. Devo perdoar as mentiras que
dizem a meu respeito, porque muitas vezes minha própria conduta tem sido
enodoada de mentiras. Devo perdoar a carência de amor, o ódio, a calúnia, a
fraude, a arrogância que encontro pelo caminho, pois que eu mesmo muitas vezes
tenho carecido de amor e tenho odiado, caluniado, defraudado, e sido arrogante.
E mais, devo perdoar sem alarde nem espalhafato. Não consigo em geral perdoar
por completo; não chego sequer a ser sempre justo. Mas aquele que se esforça
por viver segundo essa regra, simples e dura como ela é, conhecerá as reais
aventuras e triunfos da alma.
Causou-nos certo homem
uma ofensa ou injustiça. Devemos esperar que ele nos venha pedir perdão? De
modo algum. Pode acontecer que ele nunca o peça – e em tal caso nós nunca o
perdoaríamos, o que seria mau. Não, em vez disso, digamos: "A ofensa não
existe"!
Observo o varredor
que, armado de pá e vassoura, varre o lixo da sala de espera da estação
ferroviária. Varreu primeiro de um lado, depois vai varrer do outro. Nisto, ele
olha para trás, por cima do ombro, e que vê? Um homem que joga no chão a ponta
de um charuto, uma criança que espalha papéis em volta – isto é, mais lixo se
acumulando onde ele acabara de limpar! E, no entanto, ele deve continuar com o
seu trabalho, e sem perder a paciência. O mesmo devemos todos nós fazer. Em
minhas relações pessoais, devo estar sempre munido de pá e vassoura. Devo
varrer continuamente o lixo. Devo desembaraçar-me das coisas mortas e inúteis.
Se as folhas não caíssem das árvores no outono, como é que haviam de crescer na
primavera as folhas novas?
Poderão pensar que é
maravilhosa a existência que minha senhora e eu levamos no sertão equatorial.
Mas vivemos ali como poderíamos viver em qualquer outra parte! Todos podem
levar uma existência ainda mais prodigiosa deixando-se ficar onde estão e pondo
a sua alma à prova em mil pequenas experiências e conquistando triunfos de amor
ao próximo. Uma tal carreira do espírito reclama paciência, devoção, ousadia.
Exige força de vontade e a determinação de amar: a prova máxima a que um homem
pode sujeitar-se. Mas é nessa difícil "segunda ocupação" que nós
saberemos encontrar a única, a autêntica, a verdadeira felicidade.
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