quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Nossa Segunda Ocupação: fazer pelos outros (I)

Continuação de terça-feira
Nossa Segunda Ocupação: fazer pelos outros
Ouvimos dizer com freqüência: "Ah, como eu gostaria de fazer algum bem neste mundo! Mas são tantas as minhas responsabilidades de família e de negócio, que nunca consigo levantar a cabeça. Afundado em pequenas coisas, não vejo a maneira de dar à minha vida um sentido superior."
Engano demasiado comum e perigoso! Quando se quer tornar prestativo ao seu semelhante, todo homem pode encontrar nos degraus mesmos da sua porta as aventuras da alma, que são a nossa fonte mais certa de verdadeira paz e satisfação perene. E para conhecer essa felicidade, a gente não precisa negligenciar os deveres cotidianos, nem de realizar coisas espetaculosas.
A essa carreira do espírito eu costumo chamar "a nossa segunda ocupação" – o nosso segundo emprego. Além do privilégio de cumpri-la, não há nela qualquer recompensa ou paga. Mas nela encontraremos nobres ensejos, e recolheremos uma profunda força interior. Nela poderemos pôr em ação todas as nossas reservas de força, porque aquilo que hoje mais falta faz no mundo são homens que se consagrem às necessidades de seus semelhantes. No correr desse trabalho altruísta, as bênçãos tanto chovem sobre quem é ajudado, como sobre quem ajuda.
Sem essas aventuras espirituais, o homem ou a mulher de hoje em dia caminham nas trevas. Sob a pressão da moderna vida em sociedade, tendemos a perder a personalidade. Os nossos anseios de criação e expressão própria ficam sufocados e a verdadeira civilização se retarda na medida em que tal acontece.
Onde encontrar remédio? Por muito ocupado que esteja, qualquer ser humano pode afirmar a sua personalidade, lançando mão de todos os ensejos de atividade espiritual que se lhe deparem. Como? Pela sua "segunda ocupação": por meio da ação pessoal, por muito pequena que seja a sua escala, orientada para o bem dos seus semelhantes. E não será preciso ir muito longe em busca de seus ensejos.
O nosso maior erro, como indivíduos, consiste em atravessarmos a vida com os olhos fechados, sem darmos pelas oportunidades que se nos oferecem. Tão depressa abrimos os olhos e procuramos com resolução, avistamos muita gente que precisa da nossa ajuda, não nas coisas grandes, mas justamente nas mais insignificantes. Para onde quer que nos viremos, podemos encontrar alguém que precisa de nós.
Um dia, ao atravessar a Alemanha na terceira classe de um trem, fiquei ao lado de um rapaz de aspecto grave, que parecia absorvido a procurar algo invisível. Em torno dele ia sentado um velhote visivelmente preocupado e aborrecido. A dada altura, o rapaz observou em voz alta que, quando chegássemos à próxima cidade, seria já noite fechada.
O velhote disse então com marcada ansiedade: "Não sei o que vai ser de mim quando lá chegarmos. Meu único filho está no hospital muito doente; até me mandaram chamar urgentemente, por telegrama. Tenho de vê-lo antes que ele morra! Mas venho da província, e tenho medo de me perder na cidade."
Ao que o rapaz explicou: "Eu conheço muito bem a cidade. Vou descer com o senhor e levá-lo ao hospital onde está o seu filho. Posso tomar depois outro trem."
Quando, juntos, saíram do carro, pareciam dois irmãos.
Ora, quem é pode que pode avaliar o alcance dum pequeno ato bom como aquele? Todos nós podemos manter-nos vigilantes, à espera de pequenas coisas que cumpre fazer.
Durante a Primeira Guerra Mundial, certo chofer de táxi, de Londres, foi julgado demasiado velho para o serviço militar. O homem andou de repartição em repartição, oferecendo os seus serviços durante as horas que tinha livres – mas por toda a parte se viu recusado. Até que, por fim resolveu "comissionar-se" a si próprio. Antes de irem para a frente, muitos soldados dos aquartelamentos situados fora da cidade, recebiam licença para ser gozada em Londres. De forma que, todas as noites, às oito horas o velho chofer aparecia pela estação, à procura dos soldados com cara de não conhecerem a cidade. Quatro ou cinco vezes por noite, até ser decretada a desmobilização, ele serviu voluntariamente como guia de soldados no labirinto das ruas de Londres.
É geralmente o embaraço da timidez que nos faz hesitar em abordar um estranho. O temor de nos vermos repelidos é a causa de grande parte da frieza que reina por esse mundo; quando parecemos indiferentes, somos na verdade simplesmente tímidos. A alma aventurosa deve romper essa barreira, decidir-se por adiantado a não fazer caso do repúdio. Se soubermos ousar com bom senso, mantendo sempre uma certa reserva na maneira de abordar o desconhecido, acharemos que, quando nos abrimos, abrimos simultaneamente as portas do espírito dos nossos semelhantes.
É nas grandes cidades, sobretudo, que se torna preciso abrir as portas do coração. O amor sente-se sempre solitário e perdido entre as multidões. A gente dos campos e das aldeias conhece-se mutuamente e consegue realizar certa medida de dependência mútua; mas os habitantes das cidades são estranhos que se cruzam sem se saudar – tão sós, tão isolados, por vezes tão perdidos e desesperados! Que estupenda oportunidade não é, então, esperar ali pelas pessoas que de todo o coração desejam ser simplesmente humanas!
Comece-se em qualquer parte – no escritório, na fábrica, no trem. Deve ter havido sorrisos num bonde, que retiveram à beira do abismo a mão do suicida! Muitas vezes, um simples olhar amigo é como um raio de sol que trespassa as trevas negras que nós suspeitávamos que existissem em torno de nós.
Quando volvo o olhar para a minha juventude, é que eu compreendo melhor quão importante foram, para mim, a ajuda, a compreensão e a coragem, a doçura e o bom senso de que tantas pessoas me deram provas. Esses homens e mulheres entraram em minha vida e se tornaram forças dentro de mim. Mas nunca o souberam. Nem eu percebi, ao tempo, a significação real de seu auxílio.
"Devemos tanto uns aos outros, que bem podemos perguntar-nos: que é que os outros me devem, a mim? A resposta completa parece dever ficar-nos sempre oculta, conquanto muitas vezes possamos ver uma pequena fração dela, talvez para não perdermos a coragem. Podemos, no entanto estar certos de uma coisa: que o reflexo de nossa própria vida sobre aqueles que nos rodeiam é – ou pode ser – na verdade, bem grande.
Continua na próxima segunda-feira

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