Alegando querer homenagear Zumbi dos
Palmares, herói que se recusou a aceitar a liberdade para as pessoas do
quilombo enquanto outros eram escravizados, o ex-prefeito César Maia instituiu O Dia do Zumbi.
Aqueles que prestam
atenção ao que leem (caso de vocês) devem estar se perguntando o que o
parágrafo acima tem a ver com o título O Nosso Dia. Rigorosamente, a resposta
a essa pergunta resume-se em uma palavra: nada. Mas os parágrafos abaixo
mostram que O Dia do Zumbi deve ser
considerado um dia comemorativo, ou melhor, reflexivo pela maioria dos
integrantes da insana sociedade em que sobrevivemos.
No Vudu, crença
espiritual do Caribe, um zumbi (ou zombie) é um morto-vivo. É alguém que não
está nem morto nem vivo, apenas entorpecido. Eis o início da explicação que
dá sentido ao título desta postagem e que prossegue com a seguinte passagem do
livro Um caminho com o coração, de
autoria de Jack Kornfield.
"Usamos a negação para fugir das dores e dificuldades da vida. Usamos os vícios para apoiar nossa negação. Os Estados Unidos têm sido chamados de 'sociedade viciada', com mais de vinte milhões de alcoólicos e dez milhões de drogados, (números anteriores a 1993, ano de publicação do livro), além de milhões de viciados em jogo, trabalho, comida, sexualidade, relacionamentos doentios. Nossos vícios são os apegos compulsivamente repetitivos que usamos para evitar sentir as dificuldades da vida e para negá-las. A propaganda nos impele a seguir o ritmo, a continuar consumindo, fumando, bebendo, ansiando por comida, dinheiro e sexo. Nossos vícios servem para nos entorpecer diante da realidade e ajudar a evitar a nossa própria experiência; e, com grande estardalhaço, nossa sociedade encoraja esses vícios."
Os negritos, tanto os
acima quanto os demais no texto, são meus e têm a finalidade de criar relações entre segmentos da postagem. E são do livro citado acima, as
palavras de Anne Wilson Schaef, autora de When Society Becomes na Addict.
"O elemento mais bem-ajustado da nossa sociedade é a pessoa que não está morta nem viva, apenas entorpecida, enfim um morto-vivo, um zumbi. Quando morta, ela não é capaz de fazer o trabalho da sociedade. Quando plenamente viva, está sempre dizendo 'Não' a muitos dos processos da sociedade, ao racismo, à poluição ambiental, à ameaça nuclear, à corrida armamentista, recusando-se a beber água contaminada e a comer alimentos cancerígenos. Por isso, a sociedade tem o maior interesse em estimular aquelas coisas que tiram o nosso vigor, que nos mantêm ocupados com nossos dilemas e nos conservam ligeiramente entorpecidos e semelhantes a zumbis. Desse modo, nossa moderna sociedade de consumo funciona, ela própria, como um viciado."
Quem está plenamente
vivo age de forma consciente, e não em conformidade com a vontade e / ou o
interesse de quem se considere acima de nós. Não
participa de coisas que sejam prejudiciais aos outros, nem a si mesmo. Usa a
tecnologia a seu favor, como ferramenta que é, em vez de segui-la cegamente,
mesmo não sabendo para onde ela está indo. E falar em tecnologia, leva-me a apresentar
mais uma passagem do livro Um caminho com
o coração.
"Um dos nossos vícios mais difundidos é a velocidade. A sociedade tecnológica obriga-nos a aumentar o ritmo da nossa produtividade e o ritmo das nossas vidas. A Panasonic recentemente (lembrem que o livro é de 1993) lançou um novo videocassete capaz de reproduzir a voz em velocidade duas vezes maior, porém mantendo o tom normal. 'Com este videocassete', dizia a propaganda da Panasonic, 'você pode ouvir um dos grandes discursos de Winston Churchill ou do presidente Kennedy ou um dos clássicos da literatura mundial na metade do tempo!'. Fico me perguntando se eles também recomendariam fitas em velocidade duas vezes maior para Mozart e Beethoven. O cineasta Woody Allen comentou essa obsessão com a velocidade dizendo que fez um curso de leitura dinâmica e conseguiu ler Guerra e Paz em vinte minutos. 'É sobre a Rússia', concluiu."
Fico me perguntando
qual é fração de entendimento daquilo que ouve para quem ouve em metade do
tempo. A conclusão de Woody Allen sobre a sua leitura de Guerra e Paz mostra que a fração é pequena. E para entender melhor
o porquê desta postagem, segue mais uma passagem do livro de Jack Kornfield.
"Em uma sociedade que quase exige que vivamos o tempo duas vezes mais rápido, a velocidade e os vícios nos entorpecem diante de nossas próprias experiências. Numa sociedade desse tipo, é quase impossível fixar-nos no nosso corpo ou ficar ligados ao nosso coração; menos possível ainda é nos ligarmos uns aos outros ou à Terra onde vivemos. Ao contrário, encontramo-nos cada vez mais isolados e solitários, afastados uns dos outros e da teia natural da vida. Uma única pessoa dentro de um carro, casas enormes, telefones celulares, walkman presos aos ouvidos... e uma profunda solidão, uma sensação de pobreza interior. Esse é o mais difundido sofrimento de nossa sociedade moderna."
De nossa sociedade moderna,
entorpecida e inconsciente de sua submissão a interesses que não são dela como
um todo. E aqui eu retorno ao assunto do primeiro parágrafo para fazer uma
comparação entre as mentalidades dominantes no século XVII e XXI. Copiei da
Internet o seguinte texto sobre Palmares:
"1678: A Pedro de Almeida, governador da capitania de Pernambuco, mais interessava a submissão do que a destruição de Palmares, após inúmeros ataques com a destruição e incêndios de mocambos, eles eram reconstruídos, e passou a ser economicamente desinteressante, os habitantes dos mocambos faziam esteiras, vassouras, chapéus, cestos e leques com a palha das palmeiras. E extraiam óleo da noz de palma, as vestimentas eram feitas das cascas de algumas árvores, produziam manteiga de coco, plantavam milho, mandioca, legumes, feijão e cana e comercializavam seus produtos com pequenas povoações vizinhas, de brancos e mestiços. Sendo assim o governador propôs ao chefe Ganga Zumba a paz e a alforria para todos os quilombolas de Palmares. Ganga Zumba aceita, mas Zumbi é contra, não admite que uns negros sejam libertos e outros continuem escravos. Além do mais eles tinham suas próprias Leis e Crenças e teriam que abrir mão de sua cultura."
Comparemos então o que é
dito acima com as palavras de Anne Wilson Schaef.
"O elemento mais bem-ajustado da nossa sociedade é a pessoa que não está morta nem viva, apenas entorpecida, enfim um morto-vivo, um zumbi. Quando morta, ela não é capaz de fazer o trabalho da sociedade. Quando plenamente viva, está sempre dizendo 'Não' a muitos dos processos da sociedade, (...)"
Quando plenamente viva, está sempre dizendo 'Não' a muitos
processos da sociedade que visem submetê-la. Ou seja, entre os séculos XVII e o
XXI, em alguns aspectos, a mentalidade dominante permanece a mesma. O que mais interessa ainda é a submissão e não a destruição, pois para que as coisas prossigam da forma que interessa
aos que julgam-se donos do mundo é imprescindível que haja submissão. E para manter
a submissão, creio que a melhor maneira seja o entorpecimento da sociedade.
Entorpecimento que produza o efeito de admitir
que uns sejam libertos e outros continuem escravos. Zumbi dos Palmares não
admitiu tal coisa, mas o mesmo não se pode dizer em relação à maioria dos
integrantes desta sociedade entorpecida pelos vícios citados nesta postagem.
Depois de tudo o que foi dito acima, faz sentido considerar que este
seja O Nosso Dia? Aos que acharem que
sim, sugiro que no aproveitamento do dia de hoje incluam algum tempo para
refletir sobre a nossa submissão, pois (usando as palavras de Anne Wilson
Schaef) é ela que estimula aquelas
coisas que tiram o tiram o nosso vigor, que nos mantêm ocupados com nossos
dilemas e nos conservam ligeiramente entorpecidos e semelhantes a zumbis: aos da crença espiritual do
Caribe, não ao Zumbi dos Palmares.
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