segunda-feira, 13 de agosto de 2012

A arte de desaprender

"Desde criança aprendi que um verdadeiro ianque não teme matar", diz o protagonista do episódio que originou a postagem anterior. Eis um dos graves problemas da sociedade em que vivemos: o que se aprende desde criança, pois se aprende muitas coisas que não se deveria aprender. Mas, felizmente, há uma solução. Qual é? Desaprendê-las. Desde quando? Desde o momento em que o indivíduo se torne consciente de ter aprendido algo inútil e / ou desprovido de sentido. É sobre isso que fala mais um maravilhoso texto de Frei Betto. O título? A arte de desaprender, publicado na edição de 25 de setembro de 2011 do jornal O Globo.
A arte de desaprender
Apresentou-se à porta do convento um médico interessado em tornar-se frade. O prior encarregou o mestre de noviços de atendê-lo.
- Caro doutor - disse o mestre - o prior envia-lhe esta lista de perguntas. Pede que tenha a bondade de respondê-las de acordo com os seus doutos conhecimentos.
O jovem médico, acomodado no parlatório, tratou de preencher o questionário. Em menos de uma hora devolveu-o ao mestre. Este levou o papel ao prior e retornou 15 minutos depois:
- O prior reconhece que o senhor demonstra grande conhecimento e erudição. Suas respostas são brilhantes. Por isso pede que retorne ao convento dentro de um ano.
O médico estampou uma expressão de descontentamento:
- Ora, se respondi corretamente todas as questões - objetou - por que retornar dentro de uma ano? E se eu tivesse dado respostas equivocadas, o que teria sucedido?
- O senhor teria sido aceito imediatamente e, na próxima semana, já estaria entre os noviços.
- Então, por que devo retornar em um ano?
- É o prazo que o prior considera adequado para que o senhor possa desaprender conhecimentos inúteis.
- Desaprender? - surpreendeu-se o médico.
- Sim, desaprender. Entrar na vida espiritual é como empreender uma viagem: quanto mais pesada a bagagem, mais lentamente se cobre o percurso. Na sua há demasiadas coisas substantivamente inúteis.
E o doutor partiu sob promessa de retornar dentro de um ano, o que de fato sucedeu.
Assim como há escolas e cursos para aprender, deveria também existir para ensinar a desaprender. Quantas importantes inutilidades valorizamos na vida! Quantos detalhes sugam nossas preciosas energias e consomem vorazmente o nosso tempo! Quantas horas e dias perdemos com ocupações que em nada acrescentam às nossas vidas; pelo contrário, causam-nos enfado e nos sobrecarregam de preocupações.
Precisamos desaprender a considerar os bens da natureza produtos de uso próprio, ainda que o nosso uso perdulário se traduza em falta para muitos. Desaprender a valorizar um modelo de progresso que necessariamente não traz felicidade coletiva e uma economia cuja especulação supera a produção. Desaprender a olhar o mundo a partir do próprio umbigo, como se o diferente merecesse ser encarado com suspeita e preconceito.
O desaprendizado é uma arte para quem se propõe a mudar de vida. Nessa viagem, quanto menos bagagem e mais leveza, sobretudo de espírito, melhor e mais rápido se alcança o destino. Vida afora, carregamos demasiadas cobranças, mágoas, invejas e até ódios, como se toda essa tralha fizesse mal a outras pessoas que não a nós mesmos.
O que nos encanta nas crianças com menos de 5 anos é a interrogação incessante, o interesse pela novidade, o espírito despojado. Era isso que sinalizou Jesus quando alertou a Nicodemos ser preciso nascer de novo, sem retornar ao ventre materno, e tornar-se criança para ingressar no Reino de Deus.
O médico candidato a noviço comprovou ser bem informado, mas ignorava a distinção entre cultura e sabedoria. Soube elencar as mais célebres telas da pintura universal, sem no entanto ter noção do que significam e por que o artista fez isto e não aquilo. Conhecia todas as doenças de sua especialidade, sem a devida clareza de como se relacionar com o doente.
A humanidade não terá futuro promissor se não desaprender a promover guerras e a considerar a pobreza mero resultado da incapacidade individual. Urge desaprender a valorizar o supérfluo como necessário e a ostentação como sinal de êxito. Desaprender a perder tempo com o que não tem a menor importância e a se dedicar mais nos cuidados do corpo que do espírito.
A vida espiritual é um contínuo desaprender de apegos e ambições, vaidades e presunções. A felicidade só conhece uma morada: o coração humano. Eis aí milhões de viciados em drogas a gritar a plenos pulmões terem plena consciência de que a felicidade resulta de uma experiência interior, de um novo estado de consciência. Como não aprenderam a abraçar a via do absoluto, enveredaram pela do absurdo.
E convém aprender: no amor mais se desaprende do que se aprende.

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