Continuação de segunda-feira
A questão,
como poderia formular
o filósofo Garrincha, é: “Estes pais e estes filhos combinaram com a vida que
seria fácil”? É no passar dos dias que a conta não fecha e o projeto construído
sobre fumaça desaparece deixando nenhum chão. Ninguém descobre que viver é
complicado quando cresce ou deveria crescer – esse momento é apenas quando a
condição humana, frágil e falha, começa a se explicitar no confronto com os
muros da realidade. Desde sempre sofremos. E mais vamos sofrer se não temos
espaço nem mesmo para falar da tristeza e da confusão.
Parece-me que é isso que tem
acontecido em muitas famílias por aí: se a felicidade é um imperativo, o item
principal do pacote completo que os pais supostamente teriam de garantir aos
filhos para serem considerados bem sucedidos, como falar de dor, de medo e da
sensação de se sentir desencaixado? Não há espaço para nada que seja da vida,
que pertença aos espasmos de crescer duvidando de seu lugar no mundo, porque
isso seria um reconhecimento da falência do projeto familiar construído sobre a
ilusão da felicidade e da completude.
Quando o que não pode ser dito vira
sintoma – já que ninguém está disposto a escutar, porque escutar significaria
rever escolhas e reconhecer equívocos –, o mais fácil é calar. E não por acaso
se cala com medicamentos e cada vez mais cedo o desconforto de crianças que não
se comportam segundo o manual. Assim, a família pode tocar o cotidiano sem que
ninguém precise olhar de verdade para ninguém dentro de casa. Se os filhos têm
o direito de ser felizes simplesmente porque existem – e aos pais caberia
garantir esse direito –, que tipo de relação pais e filhos podem ter? Como
seria possível estabelecer um vínculo genuíno se o sofrimento, o medo e as
dúvidas estão previamente fora dele? Se a relação está construída sobre uma
ilusão, só é possível fingir.
Aos filhos cabe fingir felicidade – e,
como não conseguem, passam a exigir cada vez mais de tudo, especialmente coisas
materiais, já que estas são as mais fáceis de alcançar – e aos pais cabe fingir
ter a possibilidade de garantir a felicidade, o que sabem intimamente que é uma
mentira porque a sentem na própria pele dia após dia. É pelos objetos de
consumo que a novela familiar tem se desenrolado, onde os pais fazem de conta
que dão o que ninguém pode dar, e os filhos simulam receber o que só eles podem
buscar. E por isso logo é preciso criar uma nova demanda para manter o jogo
funcionando.
O resultado
disso é pais e filhos
angustiados, que vão conviver uma vida inteira, mas se desconhecem. E,
portanto, estão perdendo uma grande chance. Todos sofrem muito nesse teatro de
desencontros anunciados. E mais sofrem porque precisam fingir que existe uma
vida em que se pode tudo. E acreditar que se pode tudo é o atalho mais rápido
para alcançar não a frustração que move, mas aquela que paralisa.
Todos sofrem muito nesse
teatro de desencontros anunciados
Quando converso com esses jovens no
parapeito da vida adulta, com suas imensas possibilidades e riscos tão
grandiosos quanto, percebo que precisam muito de realidade. Com tudo o que a
realidade é. Sim, assumir a narrativa da própria vida é para quem tem coragem.
Não é complicado porque você vai ter competidores com habilidades iguais ou
superiores à sua, mas porque se tornar aquilo que se é, buscar a própria voz, é
escolher um percurso pontilhado de desvios e sem nenhuma certeza de chegada. É
viver com dúvidas e ter de responder pelas próprias escolhas. Mas é nesse
movimento que a gente vira gente grande.
Seria muito bacana que os pais de hoje
entendessem que tão importante quanto uma boa escola ou um curso de línguas ou
um Ipad é dizer de vez em quando: “Te vira, meu filho. Você sempre poderá
contar comigo, mas essa briga é tua”. Assim como sentar para jantar e falar da
vida como ela é: “Olha, meu dia foi difícil” ou “Estou com dúvidas, estou com
medo, estou confuso” ou “Não sei o que fazer, mas estou tentando descobrir”.
Porque fingir que está tudo bem e que tudo pode significa dizer ao seu filho
que você não confia nele nem o respeita, já que o trata como um imbecil,
incapaz de compreender a matéria da existência. É tão ruim quanto ligar a TV em
volume alto o suficiente para que nada que ameace o frágil equilíbrio doméstico
possa ser dito.
Agora, se os pais mentiram que a
felicidade é um direito e seu filho merece tudo simplesmente por existir,
paciência. De nada vai adiantar choramingar ou emburrar ao descobrir que vai
ter de conquistar seu espaço no mundo sem nenhuma garantia. O melhor a fazer é
ter a coragem de escolher. Seja a escolha de lutar pelo seu desejo – ou para
descobri-lo –, seja a de abrir mão dele. E não culpar ninguém porque
eventualmente não deu certo, porque com certeza vai dar errado muitas vezes. Ou
transferir para o outro a responsabilidade pela sua desistência.
Crescer é
compreender que o fato de a
vida ser falta não a torna menor. Sim, a vida é insuficiente. Mas é o que
temos. E é melhor não perder tempo se sentindo injustiçado porque um dia ela
acaba.
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