Dando continuidade a série de postagens focalizando a educação, creio que tenha chegado o momento de espalhar um texto publicado originalmente na revista Época de 11
de julho de 2011 e posteriormente na revista Seleções
Reader’s Digest de novembro 2011. Por e-mail, eu o recebi dos amigos Júlia e Pasqual. Mas apesar de tratar-se de algo tão divulgado, creio que seja conveniente espalhá-lo
também por meio deste blog, pois não sou adepto da crença de que todo o mundo
já leu determinado texto. Ele é intitulado Meu filho, você não merece nada e é de autoria de Eliane Brum. Eliane é jornalista, escritora e
documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de
reportagem. É autora de Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e
Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti
2007) e O Olho da Rua (Globo).
Dentro daquela velha ideia de não desanimar pessoas de pouco fôlego para leituras mais longas, o texto foi dividido em duas postagens. Acredito que o título pode chocar alguns, mas o ideal é que as pessoas fiquem chocadas com o que é dito no texto, e que o choque provoque reflexões, principalmente, em quem tiver, ou pretenda ter, filhos sob a sua responsabilidade.
Meu filho,
você não merece nada
Ao conviver com os bem mais jovens,
com aqueles que se tornaram adultos há pouco e com aqueles que estão tateando
para virar gente grande, percebo que estamos diante da geração mais preparada –
e, ao mesmo tempo, da mais despreparada. Preparada do ponto de vista das
habilidades, despreparada porque não sabe lidar com frustrações. Preparada
porque é capaz de usar as ferramentas da tecnologia, despreparada porque
despreza o esforço. Preparada porque conhece o mundo em viagens protegidas,
despreparada porque desconhece a fragilidade da matéria da vida. E por tudo
isso sofre, sofre muito, porque foi ensinada a acreditar que nasceu com o
patrimônio da felicidade. E não foi ensinada a criar a partir da dor.
Há uma geração de classe média que
estudou em bons colégios, é fluente em outras línguas, viajou para o exterior e
teve acesso à cultura e à tecnologia. Uma geração que teve muito mais do que
seus pais. Ao mesmo tempo, cresceu com a ilusão de que a vida é fácil. Ou que
já nascem prontos – bastaria apenas que o mundo reconhecesse a sua genialidade.
Tenho deparado com jovens que esperam
ter no mercado de trabalho uma continuação de suas casas – onde o chefe seria
um pai ou uma mãe complacente, que tudo concede. Foram ensinados a pensar que
merecem, seja lá o que for que queiram. E quando isso não acontece – porque
obviamente não acontece – sentem-se traídos, revoltam-se com a “injustiça” e
boa parte se emburra e desiste.
Como esses estreantes na vida adulta
foram crianças e adolescentes que ganharam tudo, sem ter de lutar por quase nada
de relevante, desconhecem que a vida é construção – e para conquistar um espaço
no mundo é preciso ralar muito. Com ética e honestidade – e não a cotoveladas
ou aos gritos. Como seus pais não conseguiram dizer, é o mundo que anuncia a
eles uma nova não lá muito animadora: viver é para os insistentes.
Por que boa parte dessa nova geração é
assim? Penso que este é um questionamento importante para quem está educando
uma criança ou um adolescente hoje. Nossa época tem sido marcada pela ilusão de
que a felicidade é uma espécie de direito. E tenho testemunhado a angústia de
muitos pais para garantir que os filhos sejam “felizes”. Pais que fazem
malabarismos para dar tudo aos filhos e protegê-los de todos os perrengues –
sem esperar nenhuma responsabilização nem reciprocidade.
É como se os filhos nascessem e
imediatamente os pais já se tornassem devedores. Para estes, frustrar os filhos
é sinônimo de fracasso pessoal. Mas é possível uma vida sem frustrações? Não é
importante que os filhos compreendam como parte do processo educativo duas
premissas básicas do viver, a frustração e o esforço? Ou a falta e a busca,
duas faces de um mesmo movimento? Existe alguém que viva sem se confrontar dia
após dia com os limites tanto de sua condição humana como de suas capacidades
individuais?
Nossa
classe média parece desprezar
o esforço. Prefere a genialidade. O valor está no dom, naquilo que já nasce
pronto. Dizer que “fulano é esforçado” é quase uma ofensa. Ter de dar duro para
conquistar algo parece já vir assinalado com o carimbo de perdedor. Bacana é o
cara que não estudou, passou a noite na balada e foi aprovado no vestibular de
Medicina. Este atesta a excelência dos genes de seus pais. Esforçar-se é, no
máximo, coisa para os filhos da classe C, que ainda precisam assegurar seu
lugar no país.
Da mesma forma que supostamente seria
possível construir um lugar sem esforço, existe a crença não menos fantasiosa
de que é possível viver sem sofrer. De que as dores inerentes a toda vida são
uma anomalia e, como percebo em muitos jovens, uma espécie de traição ao futuro
que deveria estar garantido. Pais e filhos têm pagado caro pela crença de que a
felicidade é um direito. E a frustração um fracasso. Talvez aí esteja uma pista
para compreender a geração do “eu mereço”.
Basta andar por esse mundo para
testemunhar o rosto de espanto e de mágoa de jovens ao descobrir que a vida não
é como os pais tinham lhes prometido. Expressão que logo muda para o
emburramento. E o pior é que sofrem terrivelmente. Porque possuem muitas
habilidades e ferramentas, mas não têm o menor preparo para lidar com a dor e
as decepções. Nem imaginam que viver é também ter de aceitar limitações – e que
ninguém, por mais brilhante que seja, consegue tudo o que quer.
Continua na próxima quarta-feira
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