Esta postagem apresenta um texto brilhante do jornalista e escritor Daniel Piza publicado, em sua coluna Sinopse, na edição de 15 de maio de 2011 do jornal O Estado de S. Paulo.
Atropelando o humanismo
“Nunca antes tivemos tanta liberdade, informação e consumo, em termos gerais. Mas o que temos feito disso? A liberdade se confunde facilmente com o egoísmo, com a exaltação publicitária do ‘eu faço o que quiser’ e o medo de assumir compromissos. A informação não produz cidadãos mais conscientes e debates melhores, pois poucos se interessam por ideias gerais e pelo que aconteceu antes de nascerem. O consumo se torna patologia, em que sempre se olha para o que não se tem, ou seja, para o que o outro tem, mesmo que não haja a menor necessidade de ter aquilo. Com tanta valorização do dinheiro e da aparência, fica mais difícil encontrar amizade e amor verdadeiros, que dependem da confiança no outro em momentos difíceis; e se deterioram rapidamente a arte da conversa e o gosto pela leitura, sem os quais é difícil vencer a imaturidade. Em uma frase, o humanismo tem sido atropelado por nossa vida acelerada.
Nunca antes tivemos tanta liberdade, informação e consumo. O que temos feito?
Abro um site noticioso, por exemplo, e lá estão as notícias mais lidas do dia: ‘1) Ivete Sangalo cai no palco durante show em Petrolina; 2) Rafinha Bastos causa polêmica após brincar sobre órfãos no Dia das Mães; 3) Elefante de filme com Robert Pattinson sofreu maus tratos; 4) Whitney Houston começa a fazer novo tratamento de reabilitação; 5) Justin Bieber se defende de críticas de atriz de CSI’. Parem o mundo, quero descer! Você pode dizer que boa parte da culpa é da mídia, mas note que nenhuma dessas ‘reportagens’ estava no alto da página, onde se costumam pôr as manchetes mais importantes. E você pode alegar que a permanência em cada uma dessas páginas não passa de 30 segundos, que então o leitor não lhe dá tanta relevância, mas quem disse que a maioria vai gastar mais de um minuto em um assunto mais relevante? Celebridades são ‘seguidas’ mais e mais porque parecem ter tudo: beleza, bajulação e bilhões.
Fala-se muito que nossos tempos são marcados pela diversidade, por não haver tendências hegemônicas, etc. No entanto, li há algum tempo Danuza Leão descrevendo um jantar de dez casais, digamos, no qual oito das mulheres usavam a mesma marca de sapato, com a mesma sola vermelha. A pior uniformidade, porém, é a mental. É a que dita que não basta ter meia dúzia de bolsas, não basta ter um carrão, não basta levar as crianças para uma praia; é preciso ter dezenas de bolsas, carrões ainda mais vistosos, fotos das crianças em Paris. Como disse o escritor Pedro Bandeira, o brasileiro dá mais valor a um tênis do que a um livro. Afinal, está disposto a pagar R$ 300 pelo primeiro, mas diz que R$ 40 pelo segundo é caro – assim como diz que não tem tempo para ler, mas passa horas e horas diante da TV ou nas redes virtuais. A capacidade de concentração está em declínio; muitas coisas são feitas ao mesmo tempo, nenhuma com a devida consistência. Exibir vale mais que saber.
Outra consequência desse mundo cada vez mais frívolo se mostra em ambientes de trabalho de todos os tipos. De olho nas promoções e nos bônus, passar o colega para trás começou a ser atitude elogiável, assim como trabalhar mais horas, mesmo que em prejuízo da vida familiar e do ócio. Funcionários dão aos clientes a desculpa de que ‘o sistema não permite’, incapazes de contestar essas ordens para não ser acusados de não ter “inteligência emocional”. Nas ruas das grandes cidades, a gentileza vai sarjeta abaixo; SUVs fazem uma luta darwinista pela sobrevivência do mais caro. Mulheres optam pelo papel de bonequinhas de ricaços, e há mais e mais estilistas para vesti-las e cirurgiões para repuxá-las. Jovens vivem com os pais até quase os 40 anos, enfileirando cursos e bicos para adiar a responsabilidade de uma carreira decente e continuando a se vestir do mesmo jeito. Crianças dizem que seu sonho é serem famosas, não importa em quê ou como.
Muitas coisas ao mesmo tempo, sem consistência. Exibir vale mais que saber.
A esta altura, alguns leitores podem estar pensando que esse consumismo e essa alienação são produtos do capitalismo ou da modernidade. Mas o fatalismo ideológico, marxista ou culturalista, não leva a lugar nenhum. Sem o capitalismo moderno, em que a busca do lucro é moderada por regras comuns e em parte transformada em benefícios coletivos, não teríamos tanta liberdade, informação e consumo. Nem preciso dizer como liberdade e informação são fundamentais, para evitar tiranias e respeitar diferenças, e mesmo o consumo tem papel importante em nosso conforto e, sim, em nossa identidade. A culpa não é do sistema, mas do que fazemos dele. Para contrapor essa onda de individualismo exacerbado é preciso uma mudança de mentalidade, não o aumento ou a diminuição do Estado, e relembrar os valores das qualidades interiores e da cultura geral, daquilo que não se pode rotular a partir da forma e do status. ‘Ninguém sabe o que sou quando rumino’, escreveu Machado de Assis, cansado de ser julgado por seu aspecto exterior. Ser não é aparecer.”
Um comentário:
Meu amigo Guedes,
Considero que para entendermos melhor o que estamos vivendo hoje, com relação ao comportamento humano, é importante ler o livro A Sociedade do Espetáculo, de cineasta e filósofo francês Guy Debord, que já em 1967 destacava que a sociedade estava entrando num terceiro estágio: depois do "ser" e do "ter", estaríamos entrando na era do "parecer".
Um abraço,
José Antonio Saraiva
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