quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Estratégia maligna do sistema para escravizar nossas crianças (I)

Citado na postagem anterior, o vídeo que empresta o título a esta postagem (publicado em agosto deste ano em um canal no You Tube denominado “O Labirinto”) terá um terço dele transcrito nesta postagem. Por que a transcrição? Porque, em termos de provocação de reflexões, considero que entre a leitura e a audição de um texto, a leitura seja mais eficaz. Por quê? Porque enquanto a leitura ocorre na velocidade estabelecida pelo leitor, a audição ocorre na velocidade estabelecida pelo narrador. Sendo assim, quem lê pode deter-se em trechos do texto, relê-los, sublinhá-los, acrescentar-lhes observações etc, o que não é possível a quem ouve. Por que apenas um terço? Para tentar não afugentar leitores de curto fôlego para leituras, nestes tempos em que qualquer texto, que exceda uma indeterminada quantidade de linhas a cada dia menor, é considerado um textão. Feito este preâmbulo, passemos ao texto.
Estratégia maligna do sistema para escravizar nossas crianças
A mente de uma criança é como uma chama recém acesa: frágil, luminosa e cheia de potencial para iluminar caminhos desconhecidos. No entanto, em vez de protegida do vento da manipulação, essa chama é muitas vezes direcionada, controlada e moldada segundo os interesses de uma sociedade que teme a liberdade plena de pensamento.
A infância, que deveria ser o laboratório mais puro da curiosidade e da imaginação, transforma-se no primeiro campo de batalha das ideologias. Antes mesmo que uma criança descubra quem é, o mundo apressa-se em dizer quem ela deve ser. O que poderia florescer como autenticidade, diversidade e originalidade é forçado a caber em moldes estreitos que não foram feitos para libertar, mas para aprisionar. Assim, em vez de se tornarem exploradores do real, muitos pequenos se convertem em produtos de um sistema que não deseja indivíduos livres, mas peças úteis para sustentar estruturas já existentes.
O processo de doutrinação infantil é tão silencioso quanto eficiente. Ele não precisa de correntes visíveis, pois atua no invisível, na linguagem que se escolhe usar, nos modelos de comportamento apresentados como normais, nas histórias que se contam, nas imagens que se repetem. A televisão, as redes sociais, as escolas e até as famílias tornam-se instrumentos dessa engenharia mental. Uma criança que cresce ouvindo que o sucesso é medido por riqueza, dificilmente acreditará no valor da simplicidade. Um menino ou menina exposto diariamente a narrativas de medo, ódio ou hostilidade tende a carregar essas sementes até a vida adulta.
A doutrinação funciona porque não dá tempo para o questionamento nascer. Implanta certezas antes que a dúvida seja capaz de germinar. O perigo é profundo porque atinge o alicerce da identidade humana. Quando uma criança é ensinada a repetir sem questionar, a obedecer sem compreender, a aceitar sem refletir, sua capacidade crítica é amputada. Em nome de educar, muitas vezes se treina. Em nome de formar, frequentemente se deforma.
A criança que deveria ser um ser em construção, acaba reduzida a um espelho dos desejos, frustrações e interesses dos adultos que a rodeiam. Isso explica porque tantos adultos carregam angústias, traumas e crenças limitantes. Não nasceram de suas escolhas, mas das imposições que receberam ainda na inocência da infância. Mas talvez o aspecto mais cruel dessa realidade seja que a doutrinação não é apresentada como opressão, e sim como cuidado.
A sociedade esconde o controle sob o disfarce da educação, da tradição, da cultura e até do amor. Pais e mestres dizem estar preparando para a vida, quando muitas vezes estão apenas ajustando os filhos a um padrão que os torna úteis ao sistema e dóceis à autoridade. O verdadeiro perigo não está naquilo que as crianças sabem, mas naquilo que nunca terão a chance de descobrir por si mesmas. O preço da doutrinação é a perda da autonomia. E a perda da autonomia é a morte da liberdade antes mesmo que ela seja vivida. E, no entanto, mesmo diante dessa engrenagem poderosa há uma saída: resistir à tentação de controlar mentes infantis e devolver às crianças aquilo que lhes pertence por direito. O direito de pensar, de questionar, de sonhar, de imaginar, de se contrapor.
A sociedade não precisa de clones, precisa de indivíduos. Não precisa de repetidores, mas de criadores. Não precisa de seguidores cegos, mas de espíritos livres. Preservar a infância como espaço de autenticidade não é apenas uma questão de justiça com os pequenos, é uma questão de sobrevivência para toda a humanidade. Afinal, se todas as gerações forem moldadas para repetir, quem ousará inventar o novo?
A infância livre é a última fronteira da esperança. Se quisermos uma sociedade mais justa, mais sábia e mais humana, precisamos começar pelo óbvio: permitir que nossas crianças sejam crianças, que descubram o mundo com seus próprios olhos, que façam perguntas sem medo, que duvidem sem culpa e que ousem imaginar sem limites. O futuro não será construído por aqueles que aprenderam a obedecer cegamente, mas por aqueles que ousaram pensar livremente desde cedo.
A escola que poderia ser o grande templo da liberdade intelectual, muitas vezes se converte em um espaço de domesticação. Em vez de abrir portas para a criatividade, e para a reflexão crítica, transforma-se em um ambiente rígido onde o conhecimento deixa de ser descoberta e passa a ser imposição.
A promessa de formar indivíduos autônomos e conscientes cede lugar a um modelo que padroniza mentes e sufoca talentos únicos. Ao invés de cultivar a chama da curiosidade natural que toda criança traz consigo, a escola tende a abafá-la sob camadas de regras, repetições e verdades absolutas que não podem ser questionadas. Essa repetição constante não gera sabedoria, mas condicionamento; não gera liberdade, mas docilidade. É a educação transformada em treinamento, a aprendizagem reduzida à memorização, a criatividade sacrificada em nome da obediência. Essa estrutura não é neutra, ela serve a propósitos que ultrapassam os muros da escola.
Continua na próxima terça-feira

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Reflexões provocadas por "Dia das Crianças: o Nobel de Economia" (final)

Continuação de quinta-feira da semana anterior
"As histórias que nossos filhos 'inventam' são absolutamente fascinantes e dignas de serem registradas para que possam ser recontadas a eles mesmos, uma vez mais crescidos ou adultos. Isso, sem falar na criatividade para inventar brinquedos, a partir de sucata doméstica ou fazer pinturas, modelagens e colagens. O medo, tão natural em crianças, é outra manifestação explícita e observável da fase de 'irracionalidade' que precede a introdução da lógica no pensamento infantil. De forma resumida, a imensa criatividade das crianças é uma homenagem à irracionalidade."
"Criatividade para inventar brinquedos, a partir de sucata doméstica ou fazer pinturas, modelagens e colagens.", diz o pediatra Roberto Cooper, no parágrafo acima. Os grifos são meus. Criatividade para inventar brinquedos (no meu entender) cada vez mais tolhida pela fartura de brinquedos prontos oferecidos às crianças. Tolhida talvez por ser incompatível com algo sobre o qual é estruturada esta sociedade (sic) em que sobrevivemos: a obediência. Você já ouviu a afirmação que diz: "Manda quem pode, obedece quem tem juízo". Pois é! Juízo para submeter-se a toda e qualquer ordem, sem qualquer reflexão sobre se deve ou não deve ser obedecida, apenas por medo da reação de quem manda.
"De forma resumida, a imensa criatividade das crianças é uma homenagem à irracionalidade.", diz o pediatra. Considerando o que é dito na última frase do parágrafo anterior, com outras palavras, digo eu, a imensa criatividade das crianças é uma homenagem a falta de juízo.
"Criatividade sacrificada em nome da obediência", eis uma afirmação feita em um vídeo intitulado "Estratégia maligna do sistema para escravizar nossas crianças”, encontrável em https://www.youtube.com/watch?v=oxV5djALQUY.
"Criatividade sacrificada em nome da obediência", talvez desde aquelas festas infantis nas quais as crianças obedecem a recreadores (as) infantis em brincadeiras por eles (as) estabelecidas. O que faz um (a) recreador (a) infantil?
"Planeja, organiza e executa atividades lúdicas, como brincadeiras, jogos e oficinas, para entreter e educar crianças em eventos, escolas e outros espaços. Suas responsabilidades incluem garantir a segurança dos pequenos, adaptar as atividades para diferentes idades e necessidades, e interagir com os pais ou responsáveis."
E ao ler "Planeja, organiza e executa atividades", ele, sempre ele, o método das recordações sucessivas, faz-me trazer para estas reflexões palavras dele, sempre dele, Antoine de Saint-Exupéry:
"Se quiseres construir um navio, não reúna pessoas para elaborar planos, distribuir tarefas, buscar ferramentas, cortar madeira, mas desperta nelas o desejo de buscar a amplidão dos mares. Então, elas construirão o navio por si."
Será que para brincarem crianças precisam de alguém para nelas despertar o desejo de brincar? Será que não começa aí a atuação dos adultos para nelas implantar a aceitação pacífica do seu desejo de torná-las criaturas obedientes? A postagem publicada em 02 de dezembro de 2011 (faz tempo, hein!), é intitulada: "Desobediência: a virtude original do homem". Que tal desobedecer a ordem de não visualizá-la?  
"Para aqueles que ficam incomodados com o termo irracionalidade, contaminados que estão com o valor da racionalidade, podemos usar a palavra simbolismo ou simbólico. A imensa criatividade das crianças é uma homenagem ao ser simbólico que elas exibem e que nós temos vergonha de mostrar."
Ter vergonha de mostrar coisas interessantes que nós exibíamos quando éramos crianças, eis mais uma afirmação que faz-me lembrar de algo dito por Antoine de Saint-Exupéry: "Todas as pessoas grandes foram um dia criança, mas poucas se lembram disso." Lembrança que me provoca uma dúvida: Ao deixarem de fazer coisas que faziam quando eram crianças, os adultos o fazem por vergonha ou por terem esquecido que foram um dia criança?   
"Amor, carinho e afeto não são lógicos ou racionais. Estar perto, estar junto, sem uma justificativa ou sem estar fazendo algo, simplesmente estando, não é lógico ou racional: não raro, ficamos aflitos por não estarmos fazendo nada! Fabular, inventar, criar, encenar não é lógico nem racional. Vejam que tudo que nossos filhos querem de nós é que também sejamos irracionais."
Ou seja, segundo as palavras do pediatra Roberto Cooper reproduzidas no parágrafo acima, as coisas mais necessárias à vida, não são lógicas ou racionais. Palavras que, ativando o antigo o método das recordações sucessivas, fazem-me trazer para estas reflexões a seguinte afirmação de John Keating, o nada convencional professor de inglês do filme Sociedade dos Poetas Mortos.
"Medicina, Direito, Administração, Engenharia, são atividades nobres, necessárias à vida. Mas poesia, beleza, romance, amor são as coisas pelas quais vivemos."
"Poesia, beleza, romance, amor são as coisas pelas quais vivemos." E ao grifar a palavra amor, em mais uma recordação sucessiva, eu trago para estas reflexões um diálogo entre Armandinho e seu pai que certa vez me foi enviado por uma ex-colega de trabalho e eterna amiga.
"Essencial à vida de todos os seres vivos", começa com a letra "A"...  
Como você conseguiu errar essa?!
É óbvio que é "Água"!   
O que você colocou na prova?!!
Amor!  
Amor é muito importante, filho...
.... Mas o essencial à vida dos seres vivos é mesmo a água!
Precisa dos dois!  
Com amor a gente vive! Com água, só sobrevive!
Sim, é com amor que a gente vive. E é por falta ou por insuficiência dele que a gente apenas sobrevive. E tome recordações sucessivas! Eis o que nos diz Vladimir Maiakovski.
"Cada um, ao nascer, traz sua dose de amor. Mas os empregos, o dinheiro, tudo isso, nos resseca o solo do coração."
Nossa! Eu nunca elaborei uma postagem com tantas recordações sucessivas! "Mas os empregos, o dinheiro, tudo isso, nos resseca o solo do coração." Ressecamento do solo que, obviamente, implicará em impedir o crescimento da dose de amor trazida por cada um, e, consequentemente, a impossibilidade de idealizar um mundo melhor. A afirmação reproduzida no próximo parágrafo é de Nuccio Ordine, professor de literatura italiana da Universidade da Calábria, em um artigo intitulado Democracia líquida, publicado na edição de 16.02.2014, do jornal O Estado de S. Paulo. O grifo é meu.
"Reduzir o valor da vida ao dinheiro mata toda possibilidade de idealizar um mundo melhor."
E tentando concluir este verdadeiro festival de recordações sucessivas, segue a reprodução da frase final do magnífico texto do pediatra Roberto Cooper provocador  de três postagens do tipo "Reflexões provocadas por ...".
"Para concluir, um segredinho: se formos irracionais, nós vamos nos divertir também, e muito. Bom Dia das Crianças todos os dias!"

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Reflexões provocadas por "Dia das Crianças: o Nobel de Economia" (II)

Repetindo algo dito em duas postagens ("Por que mulheres nos assustam" e "Dia das Crianças: o Nobel de Economia"), o nascimento de um neto, em 20 de dezembro de 2024, levou-me a retornar à leitura sobre como lidar com crianças. Sendo assim, após descobrir (sem lembrar como) um livro intitulado: "A Bula de Cada Criança - O olhar humanista de um pediatra sobre como cuidar dos filhos sem receita pronta", lançado em 2024, dele já extraí três textos, dentre eles o que originou a postagem que provocou estas reflexões.
Em dia 27 de setembro deste ano, ou seja, quinze dias antes da comemoração do Dia das Crianças, em uma loja onde fui procurar pratinhos e colheres a serem usados pelo neto, quando estiver na casa do avô, lá encontrei aqueles imãs contendo frases engraçadas que costumam ser colocados em geladeiras. Sendo fascinado por tais imãs, após pesquisar todos os que lá estavam, comprei alguns dentre eles um que diz o seguinte: "Ser adulto foi o pior desejo que fiz quando era criança".
"Ridendo dicere severum" - rindo, dizer as coisas sérias. Assim Nietzsche descreveu o seu estilo. Apreciador de tal estilo, provocado por esse imã, elaborei uma mensagem que enviei pelo WhatsApp para pessoas para quem costumo enviar coisas que considere interessantes. Considerando os dois coincidentes encontros (o do texto do livro, citado no primeiro parágrafo e o do imã citado no segundo), e a chegada do Dia das Crianças), ficou inevitável, inicialmente, o espalhamento do texto do livro, e, posteriormente, o de reflexões provocadas pelo texto alusivo ao Dia das Crianças. Sendo assim, vamos a elas.
"O elo que farei (me acompanhem neste salto!) é o de que crianças não precisam de um Prêmio Nobel para lembrá-las de que a irracionalidade é um atributo fundamental e inerente ao ser humano. Não é um atributo do "homo economicus" idealizado por alguns, mas do homo (quase) sapiens que somos." (o texto é de Roberto Cooper; os grifos são meus)
Além de não precisarem de um Prêmio Nobel para lembrá-las de "certas coisas", são justamente as crianças que são capazes de lembrar os adultos de "coisas certas", como pode-se concluir a partir de uma cena de um filme descrita em alguns artigos do saudoso Luís Fernando Veríssimo, publicados em sua coluna no jornal O Globo. Cena que, ao longo do tempo, encontrei em quatro de seus artigos, publicados em diferentes épocas (04 de março de 1999, 12 de março de 2006, 08 de maio de 2014, uma data que não registrei) sob diferentes títulos. Dos sete próximos parágrafos, os cinco primeiros foram extraídos do artigo de 12 de março de 2006, cujo título é "Na cara", e os dois últimos do artigo Falta a criança de três anos publicado na edição de 04 de março de 1999. A postagem publicada em 10 de agosto de 2017 é intitulada Falta a criança de três anos.
Na cara
Gosto muito (tanto que a cito muito) daquela cena de um filme dos irmãos Marx em que Groucho, um general postando-se à frente de um mapa para explicá-lo aos seus comandados, diz:
- Uma criança de três anos entenderia isto.
E depois de algum tempo examinando o mapa:
- Tragam uma criança de três anos!
(...) A criança de três anos não representa apenas o óbvio, ou o senso comum. Representa um olhar inocente, no sentido de ser livre de ideias feitas, ilusões e vícios de pensamento. Não é fácil pensar como a proverbial criança de três anos – há o risco de se confundir simplismo com sabedoria. Mas é sempre saudável pensar em assuntos complexos tentando separar o que é preconceito e vontade do que está na cara.
A criança de três anos não é pró ou anti nada. A criança de três anos só vê o que está na cara, e acha estranho que ninguém mais veja.  
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"A criança de três anos não é pró ou anti nada. A criança de três anos só vê o que está na cara, e acha estranho que ninguém mais veja.", diz Luis Fernando Veríssimo em um artigo intitulado Falta a criança de três anos.
Ou seja, há coisas que só uma criança de três anos consegue ver ou que ela precisa ver antes para que só então os adultos consigam ver, pois, corrigindo um antigo ditado que diz que - é preciso ver para crer -, há quem diga que - é preciso crer para ver. Coisas como a nudez de um vaidoso rei enxergada primeiramente por uma criança como nos fala Hans Christian Andersen (1805 - 1875) em seu conhecido conto intitulado A Roupa Nova do Rei. Vocês conhecem esse conto? Vocês sabem qual era a idade daquela criança? Pelo que consigo lembrar, no conto não é revelada a idade, mas, pelo que consigo supor, considerando o que foi dito até aqui, ela deveria ter três anos.
Por que faço tal suposição? Porque, com essa idade, como diz Luis Fernando Veríssimo, a criança só vê o que está na cara, pois aquilo que, com o passar dos anos ela será levada a ver, não com seus próprios olhos, e sim pela nefasta atuação de uma legião composta de indivíduos classificados como formadores de opinião, ela ainda não vê com essa idade. Vocês concordam que os dois vigaristas, que se fizeram passar por alfaiates para encherem-se de dinheiro confeccionando (sic) uma roupa invisível para um vaidoso rei, nada mais eram do que formadores de opinião que fazem pessoas incautas "ver" coisas que não existem? Pois é, crianças de três anos ainda não se deixam enganar por formadores de opinião; ainda conseguem ver o que está na cara.
Sim, falta a criança de três anos! Falta a criança de três anos nesta civilização (sic) onde as crianças perderam o direito de serem crianças, pois cada vez mais elas são criadas como se já tivessem nascido adultas. A postagem publicada neste blog em 13 de maio de 2011 é intitulada Era uma vez uma infância.
É muito triste sobreviver em um mundo onde não existe mais infância; onde não se permite crianças terem três anos! É desolador sobreviver em uma civilização (sic) na qual, temido pela maioria de seus integrantes, o deus mercado (talvez o verdadeiro padroeiro dos economistas, e não São Mateus) reina de forma absoluta. Uma civilização onde permitir crianças "perderem" tempo com essa bobagem denominada infância, em vez de "ganharem" tempo preparando-se para tornarem-se "vencedores" na insana competição que precisarão travar no tal do mercado de trabalho, é considerada uma demonstração de estar fora da realidade. Uma triste realidade que a maioria aceita cada vez mais como algo inevitável. Uma aceitação que me faz lembrar (mais uma vez) a seguinte afirmação de Einstein: "Existem apenas duas coisas infinitas - o Universo e a estupidez humana. E não tenho tanta certeza quanto ao Universo."
E ao constatar a imprescindibilidade de chamar uma criança de três anos para explicar aos adultos o que eles não conseguem enxergar, a velha e teimosa prática das recordações sucessivas faz-me trazer para estas reflexões algumas afirmações do inesquecível Antoine de Saint-Exupéry.
"As pessoas crescidas têm sempre necessidade de explicações... Nunca compreendem nada sozinhas e é fatigante para as crianças estarem sempre a dar explicações. As crianças têm de ter muita tolerância com os adultos. Todas as pessoas grandes foram um dia criança, mas poucas se lembram disso."
Continua ou termina em algum dia da próxima semana

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Reflexões provocadas por "Dia das Crianças: o Nobel de Economia" (I)

Feita por um pediatra, a associação do Dia das Crianças ao pensamento de dois economistas ganhadores do Prêmio Nobel ofereceu a um analista de sistemas a oportunidade de tecer alguns comentários sobre essa classe profissional composta, em sua maioria, por indivíduos que se consideram alguma espécie de divindade cuja tarefa seja conduzir a autodenominada espécie inteligente para a Terra Prometida.
Em 13 de novembro de 2023, recebi de um ex-colega de trabalho e eterno amigo, um vídeo enviado pelo WhatsApp intitulado "Um pouco de informação". Vídeo em que um vereador de Caxias do Sul começa indagando - "Lula não gosta de economistas?!" -, e prossegue dizendo que "Teve um sonho no qual Lula seria seu aluno". E daí, com aquela arrogância que caracteriza a maioria dos economistas, ele segue falando uma porção de coisas que se propõe a ensinar ao presidente. Mensagem que respondi no dia seguinte, pois, no meu entender, existem coisas que não se deve ouvir ou ler, e deixar de responder. Os oito próximos parágrafos reproduzem a resposta.
"Sim, tem gente que não gosta de economistas. Até porque a maioria deles não gosta de gente, e sim de números. Sim, tem gente que não gosta de ler, mas há quem goste, e que lendo consegue descobrir coisas interessantes sobre os economistas. Em um livro intitulado "A hora dos economistas: Falsos profetas, livre mercado e a divisão da sociedade", de autoria de Binyamin Appelbaum, publicado em 2023, é dito que:
- Até os anos 1960, os economistas eram vistos com desconfiança e recebiam pouca atenção. Mas quando o crescimento pós-guerra desacelerou, eles ganharam influência e poder, primeiro nos Estados Unidos e depois ao redor do globo.
- Suas crenças fundamentais? Que o governo deveria parar de tentar controlar a economia. Seus princípios condutores? Que os mercados produziriam crescimento permanente, permitindo a todos aproveitar seus benefícios.
- A promessa do crescimento estável e prosperidade compartilhada, porém, não se tornou realidade. Em vez disso, a economia de mercado contribuiu para a desigualdade, o enfraquecimento da democracia liberal e a falta de perspectivas das futuras gerações.
Em uma sinopse do livro intitulado "A ordem do capital: Como economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo", de autoria de Clara E. Mattei, que será lançado no final deste mês, é dito que:
- "A ordem do capital" é um estudo profundo e interdisciplinar sobre a relação entre austeridade e ascensão do fascismo. E o principal objetivo da austeridade é a proteção do capital e a eliminação e todas as alternativas ao sistema capitalista, e foi nesse contexto que a política econômica funcionou como aliada do fortalecimento do fascismo.
Sim, ler pode ser algo bastante interessante, principalmente, para obter condições para questionar o que se ouve.
"Nenhuma sociedade que esquece a arte de questionar pode esperar encontrar respostas para os problemas que a afligem." (Zygmunt Bauman [1925 - 2017], filósofo polonês).
Considerando o que diz Bauman, sair por aí espalhando "Um pouco de informação", sem questionar a informação, parece-me algo que jamais deveríamos fazer.
Vida que segue, quinze meses depois, em sua edição de fevereiro de 2025, a conceituada Revista Piauí traz um quadrinho que, no meu entender, tem tudo a ver com o que eu dissera na resposta ao meu eterno amigo, e que o vereador de Caxias do Sul não gostaria de ver. Quadrinho que fotografei e enviei pelo WhatsApp, em 18 de fevereiro de 2025, para pessoas para quem costumo enviar algumas coisas que considere interessantes. Segue a reprodução da foto.
Não pelo meu entender, mas sim pelo meu observar, há muito tempo constatei que em todo e qualquer grupo de indivíduos jamais todos terão as mesmas qualidades. Constatação que me possibilita enxergar que, embora a maioria dos economistas não seja gente, existem alguns que são. Espécimes raros, sim, mas existem.  
Outra forma de aceitar a ideia de que existem economistas que são gente (apesar da dificuldade para encontrar algum que seja) é recorrer a seguinte afirmação de William James (1842 – 1910), genial psicólogo e filósofo norte-americano, feita depois de muito pesquisar o fenômeno psíquico em geral e, em particular, a mediunidade da Sra. Leonora Piper:   
"Se você deseja invalidar a lei de que todos os corvos são negros, não deve procurar demonstrar que não existem corvos negros: basta exibir um corvo branco. Meu corvo branco é a Sra Piper".
Mutatis mutandis "Se você deseja invalidar a afirmação de que todos os economistas não são gente, não deve procurar demonstrar que não existem economistas que não são gente: basta exibir um economista que seja gente. Meu economista que é gente pode ser Richard Thaler, professor de Ciências Comportamentais e Economia na Universidade de Chicago e vencedor do Prêmio Nobel, citado pelo pediatra Roberto Cooper em seu excelente texto.
No momento em que já iria publicar esta postagem, a velha prática das recordações sucessivas levou-me a acrescentar a ela algumas palavras do saudoso escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940 – 2025) que, no meu entender, têm tudo a ver com as duas frases iniciais da resposta ao meu eterno amigo. Os grifos são meus.
"O que são as pessoas de carne e osso? Para os mais notórios economistas, números. Para os mais poderosos banqueiros, devedores. Para os mais influentes tecnocratas, incômodos. E para os mais exitosos políticos, votos."
"Nossa! Não são apenas os economistas que não gostam de pessoas! Há inúmeras classes que também não gostam. Ou seja, as citadas por Eduardo Galeano são apenas algumas delas. Se parar para pensar nesse assunto, no meu entender, facilmente você conseguirá acrescentar várias classes à relação elaborada por Galeano.
Em seu excelente texto, Roberto Cooper associa o Dia das Crianças ao pensamento de dois economistas. Esta postagem traz algumas reflexões sobre como enxergo os economistas. A próxima trará algumas reflexões sobre como enxergo as crianças.

domingo, 12 de outubro de 2025

Dia das Crianças: o Nobel de Economia

O nascimento de um neto, em 20 de dezembro de 2024, despertou em mim o interesse em atualizar-me quanto aos modos de interagir adequadamente com crianças. Em conformidade com tal interesse, sem lembrar como, descobri um livro lançado em 2024 com um instigante título: "A Bula de Cada Criança - O olhar humanista de um pediatra sobre como cuidar dos filhos sem receita pronta", de autoria de Roberto Cooper. Um livro no qual, na condição de mantenedor de um blog intitulado "Espalhando ideias", não tive como não enxergar inúmeras ideias para por ele serem espalhadas. Já tendo espalhado dois textos, segue mais um.
Dia das Crianças: o Nobel de Economia
Praticamente como em todas as datas que celebram alguém, também no dia 12 de outubro, o Dia das Crianças, há um forte cunho comercial que o criou e o sustenta. Datas (mães, pais, namorados e crianças) vendem. Nada contra, afinal de contas a economia precisa se movimentar, gerar riqueza, empregos e melhoria do nível de vida. Richard Thaler, professor de Ciências Comportamentais e Economia na Universidade de Chicago e vencedor do Prêmio Nobel, estudou uma linha chamada Economia Comportamental. Trata-se de uma abordagem que incorpora ao conhecimento de economia boa dose de psicologia.
Em 2002, outro pesquisador que segue a mesma linha, Daniel Kahneman, também recebeu o Nobel de Economia. De forma simplória (a ser criticada pelos eventuais economistas que lerem este texto), a economia comportamental incorpora nas suas análises uma faceta irracional do comportamento humano. Uma linha mais clássica ou ortodoxa crê firmemente que o ser humano tomará as melhores decisões baseadas em uma análise lógica, buscando otimizar seus ganhos e/ou minimizar perdas ou riscos. Para esses estudiosos, seríamos um "homo economicus", ator racional, cujo comportamento (tomada de decisões) é previsível e redutível a modelos matemáticos.
Ocorre que a nossa história pessoal (sejamos sinceros, quantas decisões sem fundamento racional tomamos? Ou quantas decisões envelopamos em racionalidade apenas para não revelar um desejo irracional?) e coletiva (guerras, intolerância de toda espécie, machismo, obesidade, uso de tabaco) nos mostram que não podemos ser reduzidos a um modelo mecânico de uma máquina que pensa. Somos seres, indivíduos, com alta complexidade e vetores (muitos desconhecidos de nós) que nos impulsionam no percurso das nossas vidas. Nesse contexto, agraciar um pesquisador que introduz a irracionalidade e relativa imprevisibilidade no comportamento humano deveria nos fazer repensar o modelo vigente de privilegiar a lógica e racionalidade.
Se você chegou até aqui, deve estar se perguntando se eu deixei de ser pediatra e resolvi estudar economia. O elo que farei (me acompanhem neste salto!) é o de que crianças não precisam de um Prêmio Nobel para lembrá-las de que a irracionalidade é um atributo fundamental e inerente ao ser humano. Não é um atributo do "homo economicus" idealizado por alguns, mas do homo (quase) sapiens que somos. 
Para começar, observemos um bebê com poucos dias de vida. É um ser humano sem a menor capacidade de cognição, sem processar pensamentos de forma lógica, ordenada, analítica ou sistemática. É apenas uma esponja de sensações. Tudo que se passa a seu redor é captado e absorvido, sem o filtro da racionalidade. Portanto, sem nenhuma possibilidade de discussão, a existência repleta de estímulos e registros precede a lógica e a racionalidade.
O bebê cresce e, dadas as boas condições, vai amadurecendo. Esse amadurecimento leva um bom tempo em que somos capazes de observar como um pensamento pré-lógico ou mágico infantil domina o universo da criança. Ainda não há espaço para metáforas, tudo é muito concreto. As fábulas lidas ou contadas representam algo que, de fato, aconteceu ou acontece em algum lugar. Vestir-se de princesa ou Homem-Aranha não é uma fantasia. É uma transformação. Naquele momento, a criança se percebe e se sente como se princesa ou Homem-Aranha fosse. As histórias que nossos filhos "inventam" são absolutamente fascinantes e dignas de serem registradas para que possam ser recontadas a eles mesmos, uma vez mais crescidos ou adultos. Isso, sem falar na criatividade para inventar brinquedos, a partir de sucata doméstica ou fazer pinturas, modelagens e colagens. O medo, tão natural em crianças, é outra manifestação explícita e observável da fase de "irracionalidade" que precede a introdução da lógica no pensamento infantil. De forma resumida, a imensa criatividade das crianças é uma homenagem à irracionalidade.
Para aqueles que ficam incomodados com o termo irracionalidade, contaminados que estão com o valor da racionalidade, podemos usar a palavra simbolismo ou simbólico. A imensa criatividade das crianças é uma homenagem ao ser simbólico que elas exibem e que nós temos vergonha de mostrar.
No Dia das Crianças, como em outros, vale pegar carona no Prêmio Nobel de Economia para justificarmos uma boa dose de irracionalidade nos nossos atos. Amor, carinho e afeto não são lógicos ou racionais. Estar perto, estar junto, sem uma justificativa ou sem estar fazendo algo, simplesmente estando, não é lógico ou racional: não raro, ficamos aflitos por não estarmos fazendo nada! Fabular, inventar, criar, encenar não é lógico nem racional. Vejam que tudo que nossos filhos querem de nós é que também sejamos irracionais.
Para concluir, um segredinho: se formos irracionais, nós vamos nos divertir também, e muito. Bom Dia das Crianças todos os dias!
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Para concluir (a postagem), uma provocação: se formos inteligentes (dispondo-nos a colocar em prática o segredinho revelado no parágrafo anterior), após nos divertirmos muito neste Dia das Crianças, refletir sobre o que é dito em mais um instigante texto do pediatra Roberto Cooper, elaborado à luz de seu olhar humanista, talvez seja uma boa ideia para tentarmos obter o que ele nos deseja na última frase de seu texto: "Bom Dia das Crianças todos os dias!"

sábado, 4 de outubro de 2025

Reflexões provocadas por "Amar enquanto é tempo" (final)

FALAR DA MORTE AINDA ASSUSTA.", diz a doutora Ana Claudia na frase inicial de seu magnífico texto. Frase que, no meu entender, leva os assustados a deixarem de sobre ela falar, talvez imaginando que, agindo assim, a morte deles se esquecerá, e nesta dimensão os deixará ficar per omnia saecula saeculorum. E ao falar em esquecimento, em uma frase em que cito uma expressão em latim, foi inevitável lembrar da expressão memento mori que significa literalmente "Lembra-te de que vais morrer". Expressão que intitula a postagem publicada em 02 de novembro de 2022.
"Lembra-te de que vais morrer", pois essa lembrança dá ao homem a possibilidade de conduzir suas ações e seus pensamentos por esse percurso que a gente chama de vida seguindo um roteiro totalmente diferente daquele que ele seguirá se desprezar tal lembrança. E dá a Deus a possibilidade de não ter a surpresa citada em um trecho de um texto de Jim Brown, muitas vezes atribuído ao Dalai Lama, reproduzido a seguir.
Entrevista com Deus
- O que mais O surpreende a respeito dos homens?
Deus respondeu:
- Que vivam como se nunca fossem morrer e morram como se não tivessem vivido...
Intitulado Entrevista com Deus, até o momento da publicação desta postagem o texto era encontrável em https://www.pensador.com/frase/OTA3Njc3/. 
"Quando alguém que amamos morre, é como se perdêssemos não só a pessoa, mas também a parte de nós que só existia em relação a ela. O jeito que ela nos olhava, nos chamava, o lugar que ela ocupava em nossa rotina, em nossos silêncios, em nossos sonhos - tudo isso desaparece."
Sim, considerando que viver é relacionar-se; que relacionar-se é algo que envolve duas pessoas e que jamais existirão duas pessoas iguais, as relações estabelecidas serão sempre algo único. Unicidade que, no meu entender, explica o que é dito pela doutora Ana Claudia no parágrafo anterior. Sim, "quando alguém que amamos morre, nós perdemos a parte de nós que só existia em relação a ela", e também a parte de nós oriunda de nossas relações com ela.
"Também percebo que o que mais machuca não é o fim em si. É o que não foi vivido. É o beijo que não demos, o abraço que não oferecemos, a palavra que engolimos. É o silêncio onde deveria ter havido presença."
E ao ler o que é dito pela doutora Ana Claudia no parágrafo reproduzido acima, as recordações sucessivas fazem-me trazer para esta postagem alguns trechos de uma reportagem publicada na edição de 25 de julho de 2017 do jornal O Folha de S.Paulo, sob o título "Filhos da princesa Diana dizem se arrepender da última conversa" e o subtítulo "William e Harry falam que ligação antes da morte da mãe, em 1997, foi muito rápida".
"Harry e eu estávamos com uma pressa desesperada para dizer tchau, você sabe, 'te vejo mais tarde'. Se eu soubesse o que iria acontecer eu não teria sido tão blasé sobre isso e todo o resto", disse o príncipe William.
Harry afirmou: "Ela estava ligando de Paris, eu não consigo lembrar necessariamente o que disse, mas tudo o que eu lembro é que eu provavelmente vou me arrepender pelo resto da vida sobre quão rápida foi aquela ligação."
"Se eu soubesse o que iria acontecer eu não teria sido tão blasé sobre isso e todo o resto", disse o príncipe William. O príncipe Harry afirmou: "... tudo o que eu lembro é que eu provavelmente vou me arrepender pelo resto da vida sobre quão rápida foi aquela ligação." "Também percebo que o que mais machuca não é o fim em si. É o que não foi vivido. É o beijo que não demos, o abraço que não oferecemos, a palavra que engolimos. É o silêncio onde deveria ter havido presença.", diz a doutora Ana Claudia. É o tempo que os príncipes não dispuseram para falar com a mãe, acrescento eu. Será que as palavras dos dois príncipes e as da doutora têm alguma coisa a ver, indago eu.
A postagem publicada no blog Lendo e Opinando, em 13 de setembro de 2017, reproduz alguns trechos da referida reportagem.
"O luto, quando vivido com presença e coragem, não é apenas dor, ele é também uma jornada de reencontro com o amor que permanece. Porque o amor não morre. O corpo se vai, mas o vínculo não. Ele muda de forma, de linguagem, de tempo."
Sim, o amor não morre. Até porque, como diz uma frase do filme "O Gladiador", "O que você faz nesta vida ecoa na eternidade".
Sim, o corpo se vai, mas o vínculo não, pois diferentemente do que habitualmente consideramos, nós não somos os nossos (?) corpos, nós somos a vida, como nos diz o saudoso Thich Nhat Hanh (1926 - 2022) em um livro intitulado "Viver quando alguém que amamos morre", em um capítulo intitulado "Nós somos a vida", reproduzido a seguir.
Nós somos a vida
Temos o hábito de nos identificar com nossos corpos. A ideia de que somos este corpo está profundamente enraizada em nós. Mas nosso ente querido não é apenas seu corpo; ele é muito mais do que isso. Segundo o filósofo francês do século XX Jean-Paul Sartre, "L'homme est la somme de ses actes" (o homem é a soma de seus atos). Somos a soma de nossas ações. Isso é o que o karma significa: ação. Nossos pensamentos, palavras e ações físicas são o nosso karma. Somos a soma dessas três coisas, e elas nos dão continuidade no futuro, além de ter um efeito sobre os outros e sobre o mundo em todos os momentos, mesmo enquanto estamos vivos. Eles são o nosso verdadeiro legado.
A ideia de que "este corpo sou eu e eu sou este corpo" é uma crença que devemos deixar ir. Se não fizermos isso, sofreremos muito. Somos a vida, e a vida é muito mais vasta do que este corpo, este conceito, esta mente.
Sim, "O corpo se vai, mas o vínculo não. Ele muda de forma, de linguagem, de tempo." Forma, linguagem e tempo que variarão tremendamente, pois, no meu entender, são coisas desenvolvidas com base no entendimento que cada um tenha do que ocorre com os espíritos que vão desta para outra dimensão.
"Mas, quando uma relação é vivida com inteireza, quando há verdade, afeto, presença, escuta e entrega, o fim não vem carregado de arrependimento. Ele vem com tristeza, sim. Mas é uma tristeza limpa, sem resíduos. Livre de dívidas emocionais."
Com as palavras acima, no meu entender, a doutora Ana Claudia nos dá uma autêntica orientação sobre como viver de modo a não sofrer quando alguém, a quem dizemos amar, for de nós afastado pela ida para outra dimensão. Orientação dificílima de seguir. Dificuldade que enxergo como explicada pela seguinte afirmação de Vladimir Maiakovski: "Cada um, ao nascer, traz sua dose de amor. Mas os empregos, o dinheiro, tudo isso, nos resseca o solo do coração." Você concorda que o ressecamento do solo do coração tem muito a ver com relações vividas "sem inteireza, sem presença, sem escuta e sem entrega"?
"Mas, quando uma relação é vivida com inteireza, quando há presença, escuta e entrega, o fim não vem carregado de arrependimento.", diz a doutora Ana Claudia. "Filhos da princesa Diana dizem se arrepender da última conversa. "William e Harry falam que ligação antes da morte da mãe, em 1997, foi muito rápida". Você consegue perceber a associação que pode ser feita entre as palavras da doutora e as dos príncipes? Você concorda com a afirmação de Maiakovski? E que ela seja capaz de explicar as relações vividas sem inteireza?
"Mas, quando uma relação é vivida com inteireza, quando há "presença, escuta e entrega", o fim não vem carregado de arrependimento.", diz a doutora Ana Claudia. Mas, como haver "presença" em uma sociedade (sic) onde, mesmo quando estão fisicamente presentes, as pessoas estão emocionalmente ausentes, olhando para a telinha do seu smartphone e não nos olhos de quem delas estão próximos? Mas, como haver "escuta" em uma sociedade onde as pessoas passaram a comunicar-se por meio de mensagens ouvidas por meio de um smartphone em velocidade "2x" no WhatsApp. Mas, como haver "entrega" sem haver "presença e escuta"?
"Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.", eis uma magistral frase de Antoine de Saint-Exupéry que não poderia faltar nesta postagem. Será que viver um luto pode ser entendido como aprender a lidar com o que nos foi deixado por quem foi e a continuar a viver sem o que de nós foi levado?
"Amar enquanto é tempo", eis o título do magnífico texto de autoria de uma médica especialista em geriatria e gerontologia, cuidados paliativos e psicologia do luto. Ou seja, uma profissional que está habituada a lidar com pessoas que estão próximas de partir para outra dimensão e com as que permanecerão por aqui e terão que lidar as partidas.
"Amar enquanto é tempo", eis algo que parece-me cada vez mais difícil nesta sociedade (sic) onde as pessoas dedicam cada vez menos tempo às relações interpessoais; às "relações vividas com inteireza". E onde, consequentemente, parece-me que cada vez mais "o fim virá carregado de arrependimento. E não livre de dívidas emocionais." Se será assim ou não, quem sobreviver verá.
Tendo ficado sem aquela com quem, até o dia 28 de abril, houvera compartilhado 55 anos desta passagem por esta dimensão, após encontrar na edição de julho de 2025 da Revista Vida Simples o magnífico texto da doutora Ana Claudia seria inevitável espalhá-lo por meio deste blog.
Pouco tempo após a partida da minha esposa, minha filha contou-me que, em conversa com o marido comentou algo mais ou menos assim: "Meu pai é o sobrevivente da família. Ele já ficou sem os pais, sem a irmã, sem a esposa e até sem um filho". E na condição de sobrevivente, consequentemente já tive que lidar com muito lutos. Isso significa que já sei lidar com lutos? Não, pois cada luto é completamente diferente. Afinal, em cada luto, tanto o que é deixado por quem foi quanto o que é levado de quem fica é algo completamente diferente. Diferença explicada por algo dito na metade da primeira página desta postagem: "Considerando que viver é relacionar-se; que relacionar-se é algo que envolve duas pessoas e que jamais existirão duas pessoas iguais, as relações estabelecidas serão sempre algo único".

sábado, 27 de setembro de 2025

Reflexões provocadas por "Amar enquanto é tempo" (I)

Diferentemente das demais postagens do tipo "Reflexões provocadas por ..." em que compartilho reflexões minhas, esta apresenta algumas reflexões que me foram enviadas, por e-mail, por três ex-colegas de trabalho a quem considero eternas amigas.
"Viver é relacionar-se diz o título de um livro de Vimala Thakar (1921 – 2009), ativista social indiana e professora espiritual, que li há muitos anos, e do qual lembrei-me ao ler o primeiro dos três e-mails.
Considerando que relacionar-se é algo que envolve duas pessoas e que jamais existirão duas pessoas iguais, as relações estabelecidas serão sempre algo único. Unicidade que, no meu entender, explica o que diz a amiga que me enviou o primeiro dos três e-mails, reproduzido a seguir.

"Quando alguém que amamos morre, é como se perdêssemos…"

"Eu gostaria de acrescentar… perdemos as conversas que tínhamos somente com aquela pessoa, perdemos as lembranças que junto daquela pessoa gostávamos de recordar, perdemos as lembranças que eram só dela e ela contava, levando a gente a ter aquele passado quase como se fosse nosso."

Ou seja... perdemos várias coisas que tínhamos unicamente com aquela pessoa que morre. Coisas que, "sendo só dela", mas que "sendo por ela nos contado", levava-nos à ilusão de "tê-las quase como se fossem nossas". Ilusão que é desfeita "quando alguém que amamos morre".
Não, no meu entender, mas, no meu observar, "quando alguém que amamos morre", muitas ilusões são desfeitas, dentre elas a de que haverá sempre um amanhã no qual poderemos dedicar às pessoas que dizemos amar, uma quantidade de tempo que seja suficiente para o desenvolvimento de algo que possa fazer jus ao termo convivência. Pegando emprestadas duas frases do texto da doutora Ana Claudia, a ilusão de ser possível adiar, para um nada garantido amanhã, a busca de "tempo para darmos o beijo que não damos hoje, para oferecermos o abraço que não oferecemos hoje, a palavra que não pronunciamos hoje. Para oferecer presença naqueles momentos em que o oferecido foi silêncio".
O terceiro dos e-mails recebido é mais um que fez-me lembrar do referido livro, pois também há nele algo que pode ser explicado pela unicidade de cada relação. Segue a transcrição do terceiro e-mail.
"Principalmente esta frase: 'a morte do outro nos fere como se fosse a nossa ...'"
"Porque morre uma parte de nós com quem vai. E essa dor dilacera ... E leva tempo pra recompor essa parte que se foi, se é que conseguimos..."
Sim, "morre uma parte de nós com quem vai". Que parte? Aquela formada pelas relações que tínhamos "com quem vai".
Quanto à dúvida sobre a possibilidade de conseguir "recompor essa parte que se foi", tenho a seguinte opinião. Considerando que a parte que se foi é formada pelas relações que existiam entre dois espíritos que habitavam uma mesma dimensão, e que recompor pode ser entendido como tornar a compor, entendo que, a partir do momento em que os dois espíritos passam a habitar dimensões diferentes, recompor a parte que se foi é algo, simplesmente, impossível. E diante de tal impossibilidade, entendo que o que resta é tentar preencher "essa parte de nós que morreu com quem vai" com uma forma de relacionamento de outra natureza, embasada no entendimento que cada um tenha do que ocorre com os espíritos que vão desta para outra dimensão. Espíritos que habitam uma mesma dimensão, têm um tipo de relacionamento; espíritos que habitam dimensões diferentes, têm outro tipo, eis algo que a mim parece óbvio, mas como digo no final da primeira frase deste parágrafo, essa é a minha opinião, baseada no que entendo que consegui aprender nesse percurso que a gente chama de vida.
Se, em relação ao primeiro e ao terceiro parágrafos, o que ocorreu foi associar a eles algo que eu tinha lido, em relação ao segundo, a associação que fiz ocorreu no sentido contrário. Foi a leitura de um texto que li após o recebimento do referido e-mail que me levou a associar o que li ao referido e-mail. Ficou confuso? Eu explico.
Cinco dias após o recebimento do e-mail, estando na casa da minha filha, encontrei sobre a mesa da sala de jantar alguns exemplares da Revista Quatro Cinco Um – a revista dos livros. Folheando-as, em uma delas encontrei entre as resenhas nela contidas uma sobre um livro do filósofo e escritor Renato Noguera intitulado "O que é luto: como os mitos e as filosofias entendem a morte e a dor da perda". Foi mais uma daquelas sinistras coincidências com que a vida frequentemente me presenteia quando estou tentando elaborar algum texto.
Detalhe. Entre as várias revistas que ali estavam, aquela em que encontrei algo que tem a ver com o que eu estava escrevendo, não era a edição mais recente, e sim a referente a junho de 2022, que ali havia sido colocada, sabe-se lá como, para que eu a pudesse encontrar e dela pudesse extrair alguns trechos que permitam a quem ler esta postagem constatar o quanto eles têm a ver com o que é dito no terceiro dos e-mails recebidos. O próximo parágrafo transcreve o e-mail recebido.
"Muito profunda essa abordagem do luto, salientar lembrar que o luto não se dá só pela morte de alguém, mas pelo término de uma relação amorosa, pelo esfacelamento de uma amizade, por alguém querido que foi morar distante, eles nos levam a sentir a presença em nossos atos diários e olhar com profundidade aquilo que toca ainda em nós."
O próximo parágrafo transcreve os trechos do livro que associo ao que é dito no parágrafo acima.
"Na cultura ocidental contemporânea há um certo tabu em falar disso, da finitude, do limite. Apesar de a morte ser o carro-chefe do livro, o luto também acontece quando a gente deixa de ser criança, perde o emprego, rompe um relacionamento."
"O amor cria a disponibilidade de cuidar e ser cuidado. No luto, as pessoas envolvidas vão ter de fazer esse balanço. E o amor também traz consigo a experiência da perda, não só pela morte, mas essas perdas cotidianas: as separações momentâneas, rupturas unilaterais, rompimento de contratos de vinte, trinta anos... São lutos para os quais às vezes não damos muita atenção e não temos talvez um ritual para poder virar a página."
Você consegue constatar que o que é dito pela minha amiga e o que é dito pelo filósofo e escritor Renato Noguera têm tudo a ver?
Outro detalhe. Minha pretensão em termos de intervalo entre as postagens é publicar uma nova postagem seis dias após a mais recente. Ou seja, se a minha pretensão tivesse sido atingida, esta postagem teria sido publicada no dia 13 e seria completamente diferente, pois seria impossível nela constarem as contribuições dadas pelas minhas três amigas, considerando que a segunda e a terceira das três contribuições chegaram nos dias 13 e 15, respectivamente. Mais um detalhe. A sinistra contribuição dada pela Revista Quatro Cinco Um, "chegou" no dia 18, talvez como presente de aniversário.
Minha próxima pretensão: elaborar uma postagem contendo as minhas reflexões sobre o magnífico texto da doutora Ana Claudia que levou três das minhas eternas amigas a enviarem-me as suas. Daqui a quantos dias? Não sei.