sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Reflexões provocadas por "Visionário ou delirante?"

"Qualidade de algo ou alguém que é idealista, que tem ideias extravagantes e incomuns, acreditando estar enxergando tendências ou conceitos que estão à frente de seu tempo", eis um significado para o termo visionário, obtido em https://www.significados.com.br/visionario/.
"Perturbação mental caracterizada pela presença de alucinações, desorientação, confusão etc. Modo de pensar desorganizado, ilógico.", eis um significado para o termo delírio. Alguém que esteja em estado de delírio, eis um significado para o termo delirante.
"Visionário ou delirante?", eis a indagação que intitula a reportagem da jornalista Elaine Guerini que provocou estas reflexões. Indagação que tentarei responder após a interpretação de alguns trechos da reportagem.
"A ideia central de 'Megalópolis' começou a ser desenvolvida no início da década de 80 como uma fábula de ficção científica inspirada na queda de Roma e ambientada em um cenário futurístico nos EUA, dominado pelas elites. Trata-se de uma visão crítica da sociedade, contrapondo na cidade chamada Nova Roma o idealismo do arquiteto Cesar Catilina ao conservadorismo do prefeito Franklyn Cicero, cego pela ganância."
"É uma alegria ver 'Megalópolis' pronto após todos esses anos.; um projeto que acalentava há mais de 40 anos. 'Desde que tive a ideia, eu a desenvolvi em momentos diferentes da minha vida. E quando abandonava o projeto, dizia para mim mesmo que não deveria fazer isso'", conta Coppola.
"E quando abandonava o projeto, dizia para mim mesmo que não deveria fazer isso'", conta Coppola, referindo-se a "um projeto que acalentava há mais de 40 anos". Ou seja, se há dúvida quanto a ser ele um visionário ou delirante, no meu entender, não há nenhuma dúvida quanto a ser ele um persistente. Persistência! Eis algo imprescindível para se conseguir realizar qualquer coisa difícil nesse percurso que a gente chama de vida.
"No leito de morte, muitas pessoas dizem: 'Eu queria ter feito isso ou aquilo'. Quando eu morrer, vou dizer que fiz o que queria, que vi minha filha ganhar um Oscar [...], que produzi o meu vinho e que ainda rodei todos os filmes que queria."
E ao dizer que, no leito de morte, "dirá que fez o que queria, que rodou todos os filmes que queria", Coppola deixa-me um pouco intrigado, eu explico. Por que ele deixou 'Megalópolis' para ser produzido, digamos, no trecho final de sua vida? Como "harmonizar" a declaração de que "rodou todos os filmes que queria" com o que é dito no trecho da reportagem reproduzido a seguir.
"Senti que 'Megalópolis' deveria ser assim. E como eu paguei por ele, achei que tinha o direito de fazer do meu jeito", diz Coppola.
Ou seja, será que nos demais filmes por ele rodados, ele não teve o direito de fazer do seu jeito? Como seria o filme 'Megalópolis', um projeto que ele acalentou por mais de 40 anos, se não tivesse sido feito do seu jeito? De quem deve ter sido o jeito usado nos demais filmes que ele rodou? Será que nesta sociedade (sic) fundamentada no dinheiro, as coisas são feitas do jeito de quem as paga?

A indagação que encerra o parágrafo anterior seria deixada sem resposta se ao lê-la, na revisão final do texto, eu não tivesse lembrado de algo lido em uma reportagem de Elaine Guerini publicada em 18 de agosto de 2023. Uma reportagem produzida a partir de uma entrevista com Ken Loach, um renomado cineasta britânico de 88 anos, da qual extraí o parágrafo reproduzido a seguir.

"'Tudo gira em torno de quem tem o dinheiro, o poder e o controle', afirma Loach, sempre disposto a atacar o neoliberalismo. Sua declaração tanto vale para a promoção de seu último trabalho, 'The Old Oak', vencedor do Prêmio do Público na recém-encerrada 76ª edição do Festival de Locarno, quanto para a atual greve dos roteiristas e dos atores em Hollywood, que o cineasta acompanha atentamente pelo noticiário."

A reportagem pode ser lida na íntegra na postagem publicada em 21 de agosto de 2023 intitulada "Um cineasta sempre engajado".
"Até os sentimentos que desperta são tão exagerados quanto a própria superprodução, uma releitura da queda de Roma ambientada em Nova York futurista que é considerada um 'desastre' por uns e uma 'obra-prima' por outros. [...] Os obstáculos encontrados por um arquiteto visionário que quer salvar o mundo são só um ponto de partida para o cineasta discutir política, sociologia, ciência, física, utopia e futuro.", diz Elaine Guerini.
Considerar uma mesma coisa um 'desastre' e uma 'obra-prima', eis uma estranha consideração frequente nesta sociedade (sic) fundamentada na indiferença em relação ao que acontece com os outros. Uma obra-prima, eis como Dubai é vista pelos extasiados turistas que a visitam; um desastre, eis como é vista pelos escravizados trabalhadores que a construíram. Indiferença, eis um dos enormes males que assolam este insano planeta. "O oposto do amor não é o ódio, mas a indiferença.", eis uma repetida afirmação cunhada pelo psicólogo austríaco Wilhelm Stekel, em 1921, e posteriormente atribuída a outros autores, dentre eles Elie Wisel, Érico Veríssimo e Martha Medeiros. Indiferença, eis o que fica evidente em uma frase que ouvi de um colega de trabalho durante uma conversa: "Mas naquele tempo, para mim, estava tudo bem." E se, para mim, está tudo, que me importa o que esteja acontecendo com os outros, não é mesmo?
"Os obstáculos encontrados por um arquiteto visionário que quer salvar o mundo são só um ponto de partida para o cineasta discutir política, sociologia, ciência, física, utopia e futuro.", diz Elaine Guerini.
Discutir! Analisar e trocar ideias sobre um assunto com a intenção de chegar a conclusões que levem a soluções, eis um significado para o termo discutir que leva-me a defender a ideia de que, ao contrário de uma frase que tanto se repete - política não se discute -, política e futuro são coisas cuja discussão é algo, simplesmente, imprescindível. Até porque, discutir política faz parte da construção do futuro.
"O que está acontecendo nos EUA, na nossa república e na nossa democracia, é exatamente como Roma perdeu a sua república há milhares de anos. Não por acaso nós vemos em artigos de jornais e no programa 'Saturday Night Live' paralelos entre os EUA de hoje e a Roma antiga. [...] Homens como Donald Trump não estão no comando no momento, mas há uma tendência para a neodireita e até mesmo para o fascismo, o que dá medo.", comenta Coppola, preocupado com as próximas eleições presidenciais em seu país, em novembro.
As eleições presidenciais aconteceram, a tendência para a neodireita foi tornada realidade, e Donald Trump foi eleito para estar no comando a partir de janeiro. Será que Coppola preocupou-se tarde demais? Será que seu filme deveria ter sido produzido alguns anos antes?
"'Qualquer um que estava vivo durante a Segunda Guerra Mundial lembra daqueles horrores. E não queremos que a história se repita', afirma o diretor, acrescentando que é trabalho do artista 'iluminar a vida contemporânea'. 'Nós precisamos ser os faróis. Fazer arte que não acende uma luz é como fazer um hambúrger sem qualquer nutriente.'"
Será que o trabalho do artista ('iluminar a vida contemporânea') começou tarde demais? Será que o retorno de Trump indica uma repetição da história?
"Independentemente de como 'Megalópolis' seja lembrado, como uma obra visionária ou como um delírio caótico, Coppola fala como quem não tem arrependimentos.", diz Elaine Guerini, talvez baseando-se nas palavras de Coppola no último parágrafo de sua excelente reportagem, reproduzido a seguir.
"No leito de morte, muitas pessoas dizem: 'Eu queria ter feito isso ou aquilo'. Quando eu morrer, vou dizer que fiz o que queria, que vi minha filha ganhar um Oscar [Sofia Coppola, vencedora de melhor roteiro original por 'Encontros e Desencontros', em 2004], que produzi o meu vinho e que ainda rodei todos os filmes que queria. Vou estar tão ocupado pensando em todas as coisas que ainda tenho que fazer que, quando a morte chegar, nem vou perceber."
"Fiz o que queria, vi minha filha vencer, produzi o meu vinho e ainda rodei todos os filmes que queria", diz Coppola. Será que avaliar se há ou não motivos para se ter arrependimentos é algo que deve ser feito apenas do ponto de vista do que cada um de nós queria fazer? Ou será que é algo que deve ser feito também do ponto de vista do que cada um de nós deveria fazer? Apenas do ponto de vista dos nossos interesses individuais ou também, e principalmente, do ponto de vista dos interesses coletivos? Afinal, como diz Joan Chittister, no livro Bem-vindo à sabedoria do mundo – O que as grandes religiões nos ensinam para viver melhor, "Viemos a este mundo, desde o momento do nascimento, incapazes de agir sem a ajuda de outros. Crescemos, então, nesse nosso propósito: cuidar daqueles que estão ao nosso redor, de forma que, cuidando uns dos outros, possamos todos viver seguros no conhecimento de que somos protegidos e queridos, necessários e amados."
Cumprindo algo que disse no terceiro parágrafo desta postagem, respondo que, considerando os significados descritos no primeiro e no segundo parágrafos, considero Coppola um visionário. Um visionário que talvez tenha demorado demais a usar sua arte e sua capacidade de enxergar tendências ou conceitos que estão à frente de seu tempo para elaborar um alerta com a intenção de 'iluminar a vida contemporânea' e possibilitar enxergar o risco da ocorrência de deploráveis repetições históricas.

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