"Há homens que lutam um dia e são bons,
há outros que lutam um ano e são
melhores;
há os que lutam muitos anos e são
muito bons,
mas há os que lutam toda a vida e
estes são imprescindíveis."
(Bertolt Brecht [1898 – 1956], dramaturgo, poeta e
encenador alemão)
Por que
inicio esta postagem com essas palavras de Brecht? Porque acredito que ele
classificaria como imprescindível o entrevistado na reportagem-entrevista nela
reproduzida. Afinal, prosseguir atuando em prol de um mundo melhor aos 80 anos
é algo que só os imprescindíveis fazem.
Intitulada
Vivemos um totalitarismo financeiro, em
que tudo é justificado pelo mercado, a reportagem assinada por Fernanda
Mena foi publicada na edição de 15 de março de 2020 do jornal Folha de S.Paulo. Quem é o entrevistado?
O jurista e magistrado argentino
Eugenio Raúl Zaffaroni, juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Vivemos
um totalitarismo financeiro, em que tudo é justificado pelo mercado
Para
juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, regime pretende criar
sociedade com 30% de incluídos e 70% de excluídos
O mundo está revivendo tempos
de pulsão totalitária. Mas, ao contrário do período entreguerras, quando o
fascismo e o stalinismo eram os inimigos dos direitos humanos, hoje esse lugar
é ocupado por um totalitarismo financeiro, baseado na ideologia neoliberal, que
pretende explicar o mundo a partir das regras do mercado.
É assim que o jurista e
magistrado argentino Eugenio Raúl Zaffaroni, juiz da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, interpreta o espírito do tempo da política global. "O
neoliberalismo e o discurso da mídia fazem com que tenhamos a impressão de que
o mercado explica tudo."
Aos 80 anos, ele vê com
preocupação as consequências para a América Latina desse tipo de regime, que
pretende "criar uma sociedade com 30% de incluídos e 70% de excluídos –
que acreditam que não estão excluídos."
Zaffaroni é considerado uma das
maiores autoridades mundiais em Direito Penal e é tido como um expoente entre juízes
garantistas – aqueles que zelam pelas garantias constitucionais e pelo direito
de defesa dos cidadãos de modo a evitar a arbitrariedade do Estado, permitindo
que o processo seja justo.
Autor de mais de 20 livros
jurídicos, o argentino é crítico da mídia e da indústria do entretenimento, que
vê como propagadores de discursos de vingança responsáveis por passar a ideia
de que a pena de prisão é a única maneira de solução para conflitos.
Ele esteve no Brasil na semana
passada para um seminário sobre sistema penal promovido pelo Conselho Nacional
de Justiça em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.
***
O discurso refratário aos
direitos humanos no Brasil ganhou as urnas, defendendo a ideia de que eles
existem para defender criminosos. Por que essa rejeição ganhou tanta força?
Por conta das mídias regionais,
monopólicas e hegemônicas, que estão a transmitir a ideia de que direitos
humanos são usados para defender criminosos e que as demais pessoas não são
defendidas por eles. E o resultado é a pulsão totalitária que estamos vivendo
hoje.
Dá para falar em totalitarismo?
Não se trata do mesmo
totalitarismo do entreguerras: o fascismo ou o stalinismo. É um totalitarismo
financeiro, que bebe também na mídia hegemônica e no neoliberalismo. No fundo,
ele está ocultando uma pulsão totalitária do poder financeiro: grandes
monopólios, grandes corporações transnacionais. No hemisfério Norte, os CEOs
das grandes empresas transnacionais estão ocupando o posto da política. Ou os
políticos são reféns deles. Então hoje estamos sofrendo um novo colonialismo,
ou uma nova variável do colonialismo, que não é o neocolonialismo nem o
colonialismo originário, mas uma subordinação através do endividamento dos
nossos países.
O neoliberalismo e o discurso
da mídia dominante fazem com que tenhamos a impressão de que o mercado explica
tudo. É como se as razões de mercado explicassem todas as nossas relações. É
uma ideologia totalitária e contrária aos direitos humanos, que não surgiram
porque, um dia, homens e mulheres refletiram e ouviram a razão. Eles surgiram
porque aconteceu a Segunda Guerra Mundial, em que o genocídio não foi mais na
África e nas Américas, mas na Europa, e os mortos tinham tão pouca melanina
quanto seus pares europeus. E isso gerou medo.
Qual é a função da punição nesse
novo totalitarismo?
O projeto desse totalitarismo é
criar uma sociedade com 30% de incluídos e 70% de excluídos. Mas os excluídos
têm de acreditar que não estão excluídos, que este é o normal e é o melhor que
pode acontecer.
Para isso, cria-se um inimigo
comum, que é aquele sujeito negro, pobre, sujo e sexualmente desordeiro – uma
imagem reforçada pela mídia. E esse inimigo tem a mesma função que a casta dos
excluídos na Índia: os outros acreditam não fazer parte dessa casta inferior,
que pode ter componentes racistas ou apenas de classe, e acabam aceitando sua
condição sem perceber que são tão pobres e tão excluídos quanto aquela casta.
Outra característica da
exclusão desse totalitarismo é a meritocracia, a crença de que tudo o que se
tem é fruto da sua luta individual e, portanto, de merecimento. Como se esses
indivíduos não fizessem parte de uma sociedade e não houvesse um Estado a
prover direitos básicos. Tudo se torna mérito pessoal, o que cria pessoas
mesquinhas.
O Brasil tem a terceira maior
população prisional do mundo e cadeias superlotadas. Prender demais e manter
presos em condições degradantes é ruim apenas para eles ou gera problemas fora
das cadeias?
O problema da degradação das
prisões no Brasil não é só dos presos. É um problema político geral do Brasil
como Estado. Porque isso gera violência. Porque estão introduzindo em uma
cadeia degradada um garoto que fez um pequeno furto ou estava vendendo maconha
na esquina, e que vai ter de se incorporar a um bando de criminosos organizados.
E vai sair da cadeia muito pior. Estão produzindo homicidas.
Como discursos depreciativos
aplicados a grupos não brancos, exaltados na atual política brasileira pelo
próprio presidente, corroboram esse cenário?
Cuidado: a situação que estamos
vendo no Brasil, com o sistema penal criando um problema de segurança nacional,
não foi inventada por Bolsonaro. Trata-se de um problema que tem 30 anos,
período durante o qual passaram pela Presidência todas as cores políticas. E,
infelizmente, seja por omissão ou por medo de perder votos, ninguém fez nada:
Fernando Henrique, Lula, Dilma... Bolsonaro não é o autor disso.
De que maneira a questão
prisional enfraquece o Estado?
Se há, no Brasil, quase 800 mil
presos e outras 600 mil pessoas com ordens de detenção que não são cumpridas,
temos 1,4 milhão de pessoas sob processo penal com cadeia ou ordem de prisão.
Experiências judiciais apontam que em varas criminais há mais pessoas
processadas em liberdade do que pessoas processadas cumprindo tempo de prisão.
Então o Brasil deve ter pelo menos 3 ou 4 milhões de pessoas sob processo
penal. Cada uma delas está em contato cotidiano com outras cinco ou sete
pessoas (pais, filhos, tios, primos, amigos). Para essa parcela da população
acaba banalizando a coisa penal porque sua rotina inclui ir à vara, ir ao
presídio... É alarmante quando uma parte da população lida com a questão penal
com a mesma naturalidade com que vai ao pronto-socorro. A coisa penal tem de
ser excepcional, e não banal.
Por que tem-se a impressão de
que o sistema internacional de direitos humanos não é eficiente em conter
violações?
O sistema não é eficiente na
solução dos casos particulares. Temos um sistema em que a vítima não pode
recorrer diretamente à Corte Interamericana. Então, a eficácia do sistema não é
na solução co conflito particular. Mas tem uma eficácia diferente, que é a de
baixar linhas jurisprudenciais. A nossa jurisprudência é usada para exigir
essas soluções aos tribunais nacionais e aos tribunais supremos.
***
Eugenio
Raúl Zaffaroni, 80
Nascido
na capital argentina, é o atual diretor do departamento de direito penal e
criminologia da Universidade de Buenos Aires, foi juiz da Suprema Corte da
Argentina entre 2003 e 2014 e, desde 2015, é juiz da Corte Interamericana de
Direitos Humanos; tem mais de 20 livros publicados
*************
"Uma sociedade com 30% de
incluídos e 70% de excluídos"! Será que faz algum sentido chamar algo
assim de sociedade? Será que faz sentido chamar de sociedade algo "em que
tudo é justificado pelo mercado"? Afinal, buscando em https://www.significados.com.br/ o significado de "sociedade" lá encontrei o
seguinte resultado: "Sociedade é um conjunto
de seres que convivem de forma organizada. A
palavra vem do Latim societas, que
significa "associação amistosa com outros" (os negritos
vieram na busca). Será que faz sentido uma "associação
amistosa com outros" implicar em 70% de excluídos?
Um comentário:
Este texto deveria ser ampliado no tamanho de suas letras e fixado nos murais das universidades da vida como fonte de instigação das intelecções que as salas de aula acadêmicas não espacionam talvez por ausência de perspicácia pedagógica ou por simples didatismo primitivista.
Wilson Moreira, hoje morando em Curitiba, Brasil.
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