"Sociedade é um conjunto
de seres que convivem de forma
organizada. A
palavra vem do Latim societas,
que significa "associação
amistosa com outros."
A página que traz na edição de
26 de fevereiro de 2020 do jornal O Estado de S. Paulo uma reportagem de Ubiratan Brasil
intitulada Realidade
sombria na qual ele focaliza o filme Você Não Estava Aqui e apresenta trechos de uma
entrevista com o cineasta, traz também uma avaliação do filme feita por
Luiz Zanin Oricchio, crítico de cinema e editor do suplemento
"Cultura" do referido jornal. Avaliando-o como ótimo, Zanin escreve
um excelente texto intitulado O sufoco
quando tudo o que é sólido se desmancha no ar no qual enxergo várias coisas
que merecem nossa atenção, e nossa reflexão.
O sufoco quando tudo o que é sólido se desmancha no ar
O britânico Ken Loach é conhecido como o cineasta da
classe proletária. Com Você Não Estava
Aqui, continua a ser. Mas de um proletariado que, na prática, não existe
mais. O tema de fundo é o das radicais mudanças no mundo do trabalho
contemporâneo e seus efeitos sobre as pessoas. A precarização, para dizer em
uma palavra, desafio central das sociedades capitalistas, caso estas se
preocupassem com os seres humanos que perdem empregos e precisam sobreviver em
meio à nova revolução industrial em que vivemos.
O
personagem principal é Ricky Turner (Kris Hitchen) que não encontra alternativa
senão se estabelecer por conta própria após a crise econômica de 2008. Ele se
torna o que hoje chamamos de "empreendedor". Dirigindo sua própria
van, presta serviços a uma empresa de entregas. Para cumprir a meta diária,
trabalha horas intermináveis. Não tem qualquer tipo de garantia ou direito.
Apenas a ilusão de ser seu próprio patrão. Se tiver de faltar um dia para
resolver o problema de um filho, ou ir ao médico, nada recebe e ainda paga uma
multa. O "empreendedor" torna-se, assim, refém dessa forma
contemporânea de escravidão, na qual julga ser o seu próprio senhor.
Em seu
filme anterior, Eu, Daniel Blake,
Loach coloca seu personagem diante dos impasses da previdência social inglesa,
antes um modelo para o mundo, mas que, no quadro do neoliberalismo, não
funciona mais. Agora, com Você Não Estava
Aqui, estuda essa nova configuração em que empresas se desoneram das
responsabilidades trabalhistas. Na verdade, a uberização corresponde à
realização da utopia negativa prevista por Margareth Thatcher, para quem a
sociedade não existe; existem apenas indivíduos competindo entre si.
A
estratégia de Ken Loach é mostrar como esse sistema de trabalho arruína não
apenas os indivíduos, mas as suas relações sociais. A começar pela família.
Ricky é casado com uma autônoma cuidadora de idosos, Abbie (Debbie Honeywood),
e tem dois filhos adolescentes. Pela pressão do trabalho, a vida familiar
torna-se um conjunto de seres isolados, em que ninguém tem tempo (ou interesse)
para se dedicar um ao outro. Em seguida, tudo vira um inferno. O tom dramático
é temperado por algum humor britânico. Por exemplo, quando Ricky leva a filha
para ajudá-lo nas entregas e esta tenta ser cordial com os clientes. Mas nem
isso funciona. O sistema é um moedor de carne humana.
Loach usa
na filmagem o realismo social que o caracteriza. Identifica-se com esse
personagem sob pressão e faz dele a imagem da destruição do homem sob um
sistema econômico opressivo. Mas não transforma a história em um frio teorema
demonstrativo sobre os males do capitalismo. Há nuances e contradições tanto no
personagem quanto nas pessoas que com ele convivem, da família ao seu
ditatorial supervisor na empresa de entregas. E há a paixão de quem tenta,
desesperadamente, encontrar uma saída que não encontra.
Esse tom
franco e aberto nos puxa para dentro da história. Identificamo-nos com Ricky e
com sua família. Partilhamos de sua angústia, em aparência sem solução. Pela
acumulação de tensão narrativa, Você Não
Estava Aqui torna-se uma obra sufocante. Não mais – e nem menos –
asfixiante que a situação das pessoas sujeitadas a um regime de trabalho
insano.
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"A precarização, para dizer em uma palavra, desafio central das sociedades capitalistas, caso estas se preocupassem com os seres humanos que perdem empregos e precisam sobreviver em meio à nova revolução industrial em que vivemos. (...) Na verdade, a uberização corresponde à realização da utopia negativa prevista por Margareth Thatcher, para quem a sociedade não existe; existem apenas indivíduos competindo entre si."
Eis dois trechos sinistros do
texto de Zanin! Trechos que interligo pelas palavras precarização,
uberização e sociedade. Precarização e uberização, por
considerá-las sinônimos. Sociedade por
considerar um absurdo a expressão sociedade capitalista,
se a olharmos à luz dos seguintes trechos do texto de Zanin: "(...) desafio
central das sociedades capitalistas, caso estas se preocupassem com os seres
humanos (...)", diz o primeiro; "(...) realização da utopia negativa
prevista por Margareth Thatcher, para quem a sociedade não existe; existem
apenas indivíduos competindo entre si.", diz o segundo. Vocês concordam
que falar em sociedade capitalista é algo que não faz sentido?
Dirigindo sua própria van, presta serviços a uma empresa de entregas. Ele se torna o que hoje chamamos de 'empreendedor'. Para cumprir a meta diária, trabalha horas intermináveis. Não tem qualquer tipo de garantia ou direito. Apenas a ilusão de ser seu próprio patrão. Se tiver de faltar um dia para resolver o problema de um filho, ou ir ao médico, nada recebe e ainda paga uma multa. O 'empreendedor' torna-se, assim, refém dessa forma contemporânea de escravidão, na qual julga ser o seu próprio senhor."
E os trechos sinistros
continuam, hein! "Apenas a ilusão de ser seu próprio patrão". Ilusão
que leva o iludido a "tornar-se refém dessa forma contemporânea de
escravidão, na qual o escravo julga ser o seu próprio senhor". Será que
existe escravidão pior do que aquela em que o escravo julga ser o seu próprio
senhor?
"A estratégia de Ken Loach é mostrar como esse sistema de trabalho arruína não apenas os indivíduos, mas as suas relações sociais. A começar pela família. (...) Pela pressão do trabalho, a vida familiar torna-se um conjunto de seres isolados, em que ninguém tem tempo (ou interesse) para se dedicar um ao outro. (...) O sistema é um moedor de carne humana."
"O sistema é um moedor de
carne humana." "(...) esse sistema de trabalho arruína não apenas os
indivíduos, mas as suas relações sociais." Será que faz sentido denominar
sociedade algo que arruína as relações sociais? Buscando em https://www.significados.com.br/ o significado de "sociedade" lá encontrei o
seguinte significado: "Sociedade é um conjunto
de seres que convivem de forma organizada. A
palavra vem do Latim societas, que
significa "associação amistosa com outros" (os negritos
vieram na busca). Significado que leva-me a encerrar esta postagem reiterando
uma indagação feita no final do quarto parágrafo acima: Vocês concordam que
falar em sociedade capitalista é algo que não faz sentido?
2 comentários:
Como tudo que Espalhando Idéias publica este, também, é um texto que conteudiza insights preciosos para refletirmos os valores e as crenças que governam o imenso rebanho humano e subumano. Desde que descobri o blog Espalhando Idéias minhas percepcionalidades do mundo humano ampliaram suas abrangências. Obrigado. Wilson Moreira, hoje de Curitiba, PR.
Caro Wilson Moreira,
Para quem mantém um blog cuja intenção é "espalhar ideias que ajudem a interpretar a vida e provoquem ações para torná-la cada vez melhor", deparar-se com esse comentário feito por você é algo muito alentador.
Obrigado. Manuel Pinheiro Guedes, hoje do Rio de Janeiro, RJ.
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