quinta-feira, 19 de março de 2020

O sufoco quando tudo o que é sólido se desmancha no ar

"Sociedade é um conjunto de seres que convivem de forma organizada. A palavra vem do Latim societas, que significa "associação amistosa com outros."
A página que traz na edição de 26 de fevereiro de 2020 do jornal O Estado de S. Paulo uma reportagem de Ubiratan Brasil intitulada Realidade sombria na qual ele focaliza o filme Você Não Estava Aqui e apresenta trechos de uma entrevista com o cineasta, traz também uma avaliação do filme feita por Luiz Zanin Oricchio, crítico de cinema e editor do suplemento "Cultura" do referido jornal. Avaliando-o como ótimo, Zanin escreve um excelente texto intitulado O sufoco quando tudo o que é sólido se desmancha no ar no qual enxergo várias coisas que merecem nossa atenção, e nossa reflexão.
O sufoco quando tudo o que é sólido se desmancha no ar
O britânico Ken Loach é conhecido como o cineasta da classe proletária. Com Você Não Estava Aqui, continua a ser. Mas de um proletariado que, na prática, não existe mais. O tema de fundo é o das radicais mudanças no mundo do trabalho contemporâneo e seus efeitos sobre as pessoas. A precarização, para dizer em uma palavra, desafio central das sociedades capitalistas, caso estas se preocupassem com os seres humanos que perdem empregos e precisam sobreviver em meio à nova revolução industrial em que vivemos.
O personagem principal é Ricky Turner (Kris Hitchen) que não encontra alternativa senão se estabelecer por conta própria após a crise econômica de 2008. Ele se torna o que hoje chamamos de "empreendedor". Dirigindo sua própria van, presta serviços a uma empresa de entregas. Para cumprir a meta diária, trabalha horas intermináveis. Não tem qualquer tipo de garantia ou direito. Apenas a ilusão de ser seu próprio patrão. Se tiver de faltar um dia para resolver o problema de um filho, ou ir ao médico, nada recebe e ainda paga uma multa. O "empreendedor" torna-se, assim, refém dessa forma contemporânea de escravidão, na qual julga ser o seu próprio senhor.
Em seu filme anterior, Eu, Daniel Blake, Loach coloca seu personagem diante dos impasses da previdência social inglesa, antes um modelo para o mundo, mas que, no quadro do neoliberalismo, não funciona mais. Agora, com Você Não Estava Aqui, estuda essa nova configuração em que empresas se desoneram das responsabilidades trabalhistas. Na verdade, a uberização corresponde à realização da utopia negativa prevista por Margareth Thatcher, para quem a sociedade não existe; existem apenas indivíduos competindo entre si.
A estratégia de Ken Loach é mostrar como esse sistema de trabalho arruína não apenas os indivíduos, mas as suas relações sociais. A começar pela família. Ricky é casado com uma autônoma cuidadora de idosos, Abbie (Debbie Honeywood), e tem dois filhos adolescentes. Pela pressão do trabalho, a vida familiar torna-se um conjunto de seres isolados, em que ninguém tem tempo (ou interesse) para se dedicar um ao outro. Em seguida, tudo vira um inferno. O tom dramático é temperado por algum humor britânico. Por exemplo, quando Ricky leva a filha para ajudá-lo nas entregas e esta tenta ser cordial com os clientes. Mas nem isso funciona. O sistema é um moedor de carne humana.
Loach usa na filmagem o realismo social que o caracteriza. Identifica-se com esse personagem sob pressão e faz dele a imagem da destruição do homem sob um sistema econômico opressivo. Mas não transforma a história em um frio teorema demonstrativo sobre os males do capitalismo. Há nuances e contradições tanto no personagem quanto nas pessoas que com ele convivem, da família ao seu ditatorial supervisor na empresa de entregas. E há a paixão de quem tenta, desesperadamente, encontrar uma saída que não encontra.
Esse tom franco e aberto nos puxa para dentro da história. Identificamo-nos com Ricky e com sua família. Partilhamos de sua angústia, em aparência sem solução. Pela acumulação de tensão narrativa, Você Não Estava Aqui torna-se uma obra sufocante. Não mais – e nem menos – asfixiante que a situação das pessoas sujeitadas a um regime de trabalho insano.
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"A precarização, para dizer em uma palavra, desafio central das sociedades capitalistas, caso estas se preocupassem com os seres humanos que perdem empregos e precisam sobreviver em meio à nova revolução industrial em que vivemos. (...) Na verdade, a uberização corresponde à realização da utopia negativa prevista por Margareth Thatcher, para quem a sociedade não existe; existem apenas indivíduos competindo entre si."
Eis dois trechos sinistros do texto de Zanin! Trechos que interligo pelas palavras precarização, uberização e sociedade. Precarização e uberização, por considerá-las sinônimos. Sociedade por considerar um absurdo a expressão sociedade capitalista, se a olharmos à luz dos seguintes trechos do texto de Zanin: "(...) desafio central das sociedades capitalistas, caso estas se preocupassem com os seres humanos (...)", diz o primeiro; "(...) realização da utopia negativa prevista por Margareth Thatcher, para quem a sociedade não existe; existem apenas indivíduos competindo entre si.", diz o segundo. Vocês concordam que falar em sociedade capitalista é algo que não faz sentido?
Dirigindo sua própria van, presta serviços a uma empresa de entregas. Ele se torna o que hoje chamamos de 'empreendedor'. Para cumprir a meta diária, trabalha horas intermináveis. Não tem qualquer tipo de garantia ou direito. Apenas a ilusão de ser seu próprio patrão. Se tiver de faltar um dia para resolver o problema de um filho, ou ir ao médico, nada recebe e ainda paga uma multa. O 'empreendedor' torna-se, assim, refém dessa forma contemporânea de escravidão, na qual julga ser o seu próprio senhor."
E os trechos sinistros continuam, hein! "Apenas a ilusão de ser seu próprio patrão". Ilusão que leva o iludido a "tornar-se refém dessa forma contemporânea de escravidão, na qual o escravo julga ser o seu próprio senhor". Será que existe escravidão pior do que aquela em que o escravo julga ser o seu próprio senhor?
"A estratégia de Ken Loach é mostrar como esse sistema de trabalho arruína não apenas os indivíduos, mas as suas relações sociais. A começar pela família. (...) Pela pressão do trabalho, a vida familiar torna-se um conjunto de seres isolados, em que ninguém tem tempo (ou interesse) para se dedicar um ao outro. (...) O sistema é um moedor de carne humana."
"O sistema é um moedor de carne humana." "(...) esse sistema de trabalho arruína não apenas os indivíduos, mas as suas relações sociais." Será que faz sentido denominar sociedade algo que arruína as relações sociais? Buscando em https://www.significados.com.br/ o significado de "sociedade" lá encontrei o seguinte significado: "Sociedade é um conjunto de seres que convivem de forma organizada. A palavra vem do Latim societas, que significa "associação amistosa com outros" (os negritos vieram na busca). Significado que leva-me a encerrar esta postagem reiterando uma indagação feita no final do quarto parágrafo acima: Vocês concordam que falar em sociedade capitalista é algo que não faz sentido?

2 comentários:

wilson moreira de curitiba. disse...

Como tudo que Espalhando Idéias publica este, também, é um texto que conteudiza insights preciosos para refletirmos os valores e as crenças que governam o imenso rebanho humano e subumano. Desde que descobri o blog Espalhando Idéias minhas percepcionalidades do mundo humano ampliaram suas abrangências. Obrigado. Wilson Moreira, hoje de Curitiba, PR.

Guedes disse...

Caro Wilson Moreira,

Para quem mantém um blog cuja intenção é "espalhar ideias que ajudem a interpretar a vida e provoquem ações para torná-la cada vez melhor", deparar-se com esse comentário feito por você é algo muito alentador.

Obrigado. Manuel Pinheiro Guedes, hoje do Rio de Janeiro, RJ.