quinta-feira, 13 de junho de 2019

A esperança está na "sociedade civil planetária" (final)

Continuação de sexta-feira
7. O que isso significa para uma democracia?
É um sistema que priva o cidadão, mesmo numa democracia, de todo tipo de resposta efetiva à precariedade, à desigualdade, que destrói o estado social. É nesse contexto que se cria um desespero silencioso e secreto entre os cidadãos. E, como sempre ocorreu na história e como ocorreu nos anos 30 na Alemanha, é nesse momento que vêm os grupos de extrema-direita com sua estratégia de criar um bode expiatório.
8. De que forma?
O discurso é simples. Eles chegam e declaram ao cidadão: "Sim, sua situação é insuportável. Você tem razão". Não falam como outros, que tentam dar esperanças ou dizer que as coisas vão melhorar. Mas, num segundo momento, o que fazem? Apresentam um bode expiatório para essa crise. Na Europa, são os imigrantes e os refugiados. A estratégia do bode expiatório tem funcionado. Basta ver os resultados do partido Alternativa para a Alemanha. Hoje, ele tem o mesmo número de representantes no parlamento que o tradicional SPD, o partido social-democrata alemão, de políticos como Willy Brandt. O mesmo ocorreu na Itália, com Matteo Salvini; na Hungria, com Viktor Orbán; na Holanda; na Áustria. Além disso, a consciência coletiva está sendo cimentada por uma ideologia neoliberal de que o homem não é mais o sujeito da história e que apenas pode se adaptar à situação e às forças do mercado, que obedecem às leis naturais.
9. Tal cenário ameaça minar a própria democracia?
Jean-Jacques Rousseau publicou O contrato social, em 1762, que foi a Bíblia para a Revolução Francesa. Ele descreveu a soberania popular e o fato de darmos voz a alguém para nos representar. A delegação é um pilar do contrato social. Mas esse contrato social, que é a fundação da República, está esgotado. A democracia representativa está esgotada. O povo não acredita mais nela. O povo vê que, ao votar em um deputado, não é ele que toma decisões, mas a ditadura mundial das oligarquias do capital financeiro globalizado. Ao mesmo tempo, esse povo não está disposto a abrir mão de seu poder nem de sua capacidade de intervenção. No caso dos coletes amarelos, na França, um dos pontos principais é o apelo por referendos populares como mecanismo. O que eles estão dizendo é: o parlamento faz o que quer. Queremos ter o direito de propor leis, de votar nelas.
10. E quais são as respostas possíveis?
Retirar das consciências essa placa de cimento que foi imposta. Liberar a consciência dos homens, que é, por natureza, uma consciência de identidade. Se um homem, de qualquer classe social ou de qualquer religião, vir diante dele uma criança martirizada, algo de si se afunda. Ele se reconhece imediatamente nela. Somos a única criatura na Terra com essa consciência da identidade. E é por isso que milhões de jovens na Europa e na América do Norte se mobilizam em imensos cortejos, todas as semanas, pela sobrevivência do planeta e contra o capitalismo. O que eles estão dizendo a seus governos? Assim não podemos continuar. Façam algo contra essa ordem canibal do mundo.
11. A questão climática pode ser decisiva nesse contexto para modificar a forma de pensamento?
Pelo Acordo de Paris, cada um dos 190 Estados que o assinaram assumiu obrigações precisas para limitar as emissões de CO2 na atmosfera. Do total de CO2 emitido, 85% vem de energias fósseis. O acordo pede que as cinco maiores empresas de petróleo reduzam 50% de sua emissão até 2030 e deem parte dos lucros ao desenvolvimento de energias alternativas, como solar, eólica e outras. Mas o que é que ocorreu desde 2015? As cinco grandes empresas de petróleo do mundo aumentaram sua produção, em média, em 18%. E financiaram energias alternativas somente em 5%. Os jovens dizem: isso não funcionará.
12. Onde está a esperança?
Na sociedade civil planetária. Na miríade de movimentos sociais – Greenpeace, Anistia Internacional, movimento antirracista, de luta pela terra – que lutam contra a ordem canibal do mundo. São entidades que não obedecem a um comitê central ou a uma linha de partido e que funcionam por um só princípio: o imperativo categórico. Kant dizia: "A desumanidade infligida a um outro humano destrói a humanidade em mim". Eu sou o outro e o outro sou eu. Essa consciência, em termos políticos, cria uma prática de solidariedade entre os indivíduos e de reciprocidade entre os povos. Mas essa sociedade é invisível. Não tem uma sede. Ela é visível cinco dias por ano, no Fórum Social Mundial, organizado pelos brasileiros em Porto Alegre. O escritor francês George Bernanos escreveu: "Deus não tem mãos que não sejam as nossas". Ou somos nós que mudaremos essa ordem canibal do mundo, ou ninguém o fará.
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"O mundo se tornou incompreensível para o cidadão, que não mais consegue lê-lo.", diz Jean Ziegler no início da resposta à primeira pergunta da entrevista publicada na edição de 03 de junho de 2019 da revista Época. "O escritor francês George Bernanos escreveu: 'Deus não tem mãos que não sejam as nossas'. Ou somos nós que mudaremos essa ordem canibal do mundo, ou ninguém o fará.", diz Ziegler no final da resposta à última pergunta.
Por que resolvi destacar as palavras iniciais e as finais de Ziegler? Para tentar desfazer possíveis interpretações equivocadas, algo bastante comum nestes tempos de leituras apressadas feitas sem a atenção necessária ao correto entendimento daquilo que se lê. Leituras que levem a entender como contraditórias as palavras iniciais e finais de Ziegler.
Palavras que, mal entendidas, parecem, indevidamente, colocar nas mãos daqueles para quem "o mundo se tornou incompreensível" a árdua tarefa de "mudar essa ordem canibal do mundo". Mas que, bem entendidas, trazem para todos os cidadãos a obrigação de tentar compreender o mundo. Compreensão que, inevitavelmente, lhes trará uma nova obrigação: a de colaborar na árdua e imprescindível tarefa de "mudar essa ordem canibal do mundo".
Afinal, repetindo mais uma vez o que é dito na última frase da entrevista, "Ou somos nós que mudaremos essa ordem canibal do mundo, ou ninguém o fará." Portanto, que tal refletirmos sobre tudo o que nos diz o imprescindível Jean Ziegler? A reflexão leva-nos à compreensão; e a compreensão leva-nos a correta ação! Compreendido?

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