Continuação de
sexta-feira
7. O que isso significa
para uma democracia?
É um sistema que priva o cidadão, mesmo numa
democracia, de todo tipo de resposta efetiva à precariedade, à desigualdade,
que destrói o estado social. É nesse contexto que se cria um desespero
silencioso e secreto entre os cidadãos. E, como sempre ocorreu na história e
como ocorreu nos anos 30 na Alemanha, é nesse momento que vêm os grupos de
extrema-direita com sua estratégia de criar um bode expiatório.
8. De que forma?
O discurso é simples. Eles chegam e declaram
ao cidadão: "Sim, sua situação é insuportável. Você tem razão". Não
falam como outros, que tentam dar esperanças ou dizer que as coisas vão
melhorar. Mas, num segundo momento, o que fazem? Apresentam um bode expiatório
para essa crise. Na Europa, são os imigrantes e os refugiados. A estratégia do
bode expiatório tem funcionado. Basta ver os resultados do partido Alternativa
para a Alemanha. Hoje, ele tem o mesmo número de representantes no parlamento
que o tradicional SPD, o partido social-democrata alemão, de políticos como
Willy Brandt. O mesmo ocorreu na Itália, com Matteo Salvini; na Hungria, com
Viktor Orbán; na Holanda; na Áustria. Além disso, a consciência coletiva está
sendo cimentada por uma ideologia neoliberal de que o homem não é mais o
sujeito da história e que apenas pode se adaptar à situação e às forças do
mercado, que obedecem às leis naturais.
9. Tal cenário ameaça
minar a própria democracia?
Jean-Jacques Rousseau publicou O contrato social, em 1762, que foi a Bíblia para a Revolução Francesa. Ele
descreveu a soberania popular e o fato de darmos voz a alguém para nos
representar. A delegação é um pilar do contrato social. Mas esse contrato
social, que é a fundação da República, está esgotado. A democracia representativa
está esgotada. O povo não acredita mais nela. O povo vê que, ao votar em um
deputado, não é ele que toma decisões, mas a ditadura mundial das oligarquias
do capital financeiro globalizado. Ao mesmo tempo, esse povo não está disposto
a abrir mão de seu poder nem de sua capacidade de intervenção. No caso dos
coletes amarelos, na França, um dos pontos principais é o apelo por referendos
populares como mecanismo. O que eles estão dizendo é: o parlamento faz o que
quer. Queremos ter o direito de propor leis, de votar nelas.
10. E quais são as
respostas possíveis?
Retirar das consciências essa placa de cimento
que foi imposta. Liberar a consciência dos homens, que é, por natureza, uma
consciência de identidade. Se um homem, de qualquer classe social ou de
qualquer religião, vir diante dele uma criança martirizada, algo de si se
afunda. Ele se reconhece imediatamente nela. Somos a única criatura na Terra
com essa consciência da identidade. E é por isso que milhões de jovens na
Europa e na América do Norte se mobilizam em imensos cortejos, todas as
semanas, pela sobrevivência do planeta e contra o capitalismo. O que eles estão
dizendo a seus governos? Assim não podemos continuar. Façam algo contra essa
ordem canibal do mundo.
11. A questão climática pode ser decisiva
nesse contexto para modificar a forma de pensamento?
Pelo Acordo de Paris, cada um dos 190 Estados
que o assinaram assumiu obrigações precisas para limitar as emissões de CO2
na atmosfera. Do total de CO2 emitido, 85% vem de energias fósseis.
O acordo pede que as cinco maiores empresas de petróleo reduzam 50% de sua
emissão até 2030 e deem parte dos lucros ao desenvolvimento de energias
alternativas, como solar, eólica e outras. Mas o que é que ocorreu desde 2015?
As cinco grandes empresas de petróleo do mundo aumentaram sua produção, em
média, em 18%. E financiaram energias alternativas somente em 5%. Os jovens
dizem: isso não funcionará.
12. Onde está a
esperança?
Na sociedade civil planetária. Na miríade de
movimentos sociais – Greenpeace, Anistia Internacional, movimento antirracista,
de luta pela terra – que lutam contra a ordem canibal do mundo. São entidades
que não obedecem a um comitê central ou a uma linha de partido e que funcionam
por um só princípio: o imperativo categórico. Kant dizia: "A desumanidade
infligida a um outro humano destrói a humanidade em mim". Eu sou o outro e
o outro sou eu. Essa consciência, em termos políticos, cria uma prática de
solidariedade entre os indivíduos e de reciprocidade entre os povos. Mas essa
sociedade é invisível. Não tem uma sede. Ela é visível cinco dias por ano, no
Fórum Social Mundial, organizado pelos brasileiros em Porto Alegre. O escritor
francês George Bernanos escreveu: "Deus não tem mãos que não sejam as
nossas". Ou somos nós que mudaremos essa ordem canibal do mundo, ou
ninguém o fará.
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"O mundo se tornou incompreensível para o
cidadão, que não mais consegue lê-lo.", diz Jean Ziegler no início da resposta
à primeira pergunta da entrevista publicada na edição de 03 de junho de 2019 da
revista Época. "O escritor francês George Bernanos escreveu:
'Deus não tem mãos que não sejam as nossas'. Ou somos nós que mudaremos essa
ordem canibal do mundo, ou ninguém o fará.", diz Ziegler no final da resposta
à última pergunta.
Por que resolvi destacar
as palavras iniciais e as finais de Ziegler? Para tentar desfazer possíveis
interpretações equivocadas, algo bastante comum nestes tempos de leituras
apressadas feitas sem a atenção necessária ao correto entendimento daquilo que
se lê. Leituras que levem a entender como contraditórias as palavras iniciais e
finais de Ziegler.
Palavras que, mal
entendidas, parecem, indevidamente, colocar nas mãos daqueles para quem "o
mundo se tornou incompreensível" a árdua tarefa de "mudar essa ordem
canibal do mundo". Mas que, bem entendidas, trazem para todos os cidadãos a
obrigação de tentar compreender o mundo. Compreensão que, inevitavelmente, lhes
trará uma nova obrigação: a de colaborar na árdua e imprescindível tarefa de "mudar
essa ordem canibal do mundo".
Afinal, repetindo mais
uma vez o que é dito na última frase da entrevista, "Ou somos nós que
mudaremos essa ordem canibal do mundo, ou ninguém o fará." Portanto, que
tal refletirmos sobre tudo o que nos diz o imprescindível
Jean Ziegler? A reflexão leva-nos à compreensão; e a compreensão leva-nos a
correta ação! Compreendido?
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