Não, esta postagem não focaliza a situação
atual deste país, e sim a daquele que se considera modelo para os demais.
Consideração, infelizmente, aceita por uma imensa legião de indivíduos nascidos
neste. Segue o artigo da jornalista Dorrit Harazim publicado em sua coluna
semanal no jornal O Globo, na edição
de 21 de junho de 2015. Com exceção do título e da frase destacada entre dois
parágrafos situados no final do artigo, os grifos são meus.
Uma nação partida
A indagação foi postada
nas redes sociais feito garrafa lançada ao mar, sem destinatário certo: "Onde
podemos nos sentir seguros? Onde podemos ser livres? Onde podemos ser negros".
Era o resumo da desesperança da América negra após a chacina racial na Igreja
Metodista Emanuel de Charleston, estado da Carolina do Sul. Uma interrogação
que não se imaginava mais necessária nem urgente.
Em 1863, quando
Abraham Lincoln pronunciou o crucial discurso de Gettysburg sobre o qual foi construída a ideia de nação, ele alertou para a "obra inacabada" que o país ainda tinha pela
frente.
Por certo não imaginou que entre 1877 e 1968, ano do assassinato de Martin
Luther King, ainda ocorreriam quase quatro mil linchamentos de negros por
supremacistas brancos. E que mais de 25 cidades do país teriam suas comunidades
negras atacadas em um único verão, o sinistro "Verão Vermelho" de
1919.
À luz da profusão de
dados divulgados desde a matança em Charleston, fica-se sabendo que entre 1995
e 1998 houve mais de 700 atentados ou tentativas de ataques à bomba contra
locais de culto da população negra. Basta repetir esse dado – mais de 700
episódios em três anos – para entender que a pergunta "Onde podemos ser
negros?" nada tem de retórica.
Nela está embutido o
tenebroso retrocesso histórico e a frustração coletiva do negro americano em
2015. Para os filhos e netos da geração que em 1963 entoou "We Shall
Overcome" com Martin Luther King coberta de cicatrizes, porém vitoriosa,
nada há a comemorar. Ser negro em 2015 é se sentir invisível. Ser negro e jovem
nos Estados Unidos de hoje é ter no horizonte um embate com a polícia, a
Justiça, o abuso. A terra conquistada no passado voltou a lhe ser estrangeira.
O retrato desse revés
esteve no semblante do presidente Barack Obama durante a fala em que
compartilhou com a nação seu pesar por mais essa chacina. Era a décima quarta
vez desde sua eleição a ter de prestar homenagem a vítimas americanas de
fuzilarias selvagens praticadas por matadores que, além de brancos, são
ultra-americanos.
Quem aguarda com
ansiedade um discurso histórico de Obama sobre a urgência de uma América
pós-racial provavelmente terá de se contentar com a leitura de suas futuras
memórias, na condição de ex-presidente. Ele já deu provas suficientes de que,
enquanto estiver na Casa Branca, evitara obrigar a nação a se confrontar com uma questão que Abraham Lincoln sabia estar não resolvida
200 anos atrás.
Mas há outro aspecto
embutido na chacina de Charleston que, ao contrário dos atentados de
extrema-direita anteriores, talvez não consiga ser escamoteado desta vez.
Imagine-se que o perpetrador não tivesse sido o americano de franjinha loira
Dylann Roof, de 21 anos, e sim um muçulmano de feições escuras bradando "Allahu
Akbar". Tanto a narrativa na mídia americana teria sido diferente como
seria diferente o aparato de segurança nacional acionado para lidar com o caso.
Segundo dados
levantados pela Fundação New America, 26 pessoas foram mortas por ataques
jihadistas nos Estados Unidos desde o 11 de Setembro. No mesmo período,
atentados praticados por extremistas racistas e militantes antigoverno
americanos mataram 48 pessoas. Ainda assim, a resistência em classificar as
chacinas domésticas de atos terroristas é enorme. Prefere-se atribuir essas
matanças a atos isolados praticados por jovens problemáticos – os chamados "lobos
solitários" com problemas mentais.
Se a definição mais
genérica de terrorismo é um ato de violência contra civis por indivíduos ou
organizações com propósitos políticos, é hora de definir os atentados racistas
como terroristas e tratar do assunto como questão de segurança nacional
verdadeira – a do futuro de sua gente.
É hora de definir
atentados racistas como terroristas e tratar do assunto como questão de
segurança nacional verdadeira
O apresentador Jon
Stewart, hoje a voz mais respeitada da televisão americana, deixou de lado o
habitual tom satírico e fez o desabafo que nenhum homem público teve coragem de
fazer:
"Nós invadimos
dois países, gastamos trilhões de dólares, inutilizamos milhares de vidas de
soldados americanos e disparamos máquinas da morte não tripuladas sobre cinco
ou seis países para garantir a segurança dos Estados Unidos. Nós até torturamos
em nome da segurança nacional. E aqui, fazemos o quê? Damos de ombros. Falamos
em 'uma tragédia visitou essa igreja sagrada'. Não, isso não foi uma tragédia.
Tornados são tragédias. Isso é racismo, preto no branco, é terrorismo
doméstico, nada a ver com lobo solitário, é matilha. Al-Qaeda? EI? Eles não são
nada comparados com o que fazemos contra nós mesmos, regularmente".
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Uma nação partida em decorrência
de uma interminável violência racial em um país que se considera modelo para os
demais. Um país onde, em 1863 (há 153 anos), ao pronunciar o crucial discurso
de Gettysburg sobre o qual foi
construída a ideia de nação, Abraham Lincoln (um de seus maiores presidentes) alertou
para a "obra inacabada" que o país
ainda tinha pela frente. Nossa! Mais uma coisa inacabada ou "algo ainda não consumado"
(usando uma expressão presente em várias das mais recentes postagens) nesta
civilização (sic) em que sobrevivemos! Será que o artigo de Dorrit Harazim é
capaz de lhes provocar reflexões? Em mim, ele provoca.
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