Criada pelos antigos romanos com o objetivo de diminuir a
insatisfação popular contra os governantes, a política do pão e circo mantém-se
em cartaz até hoje. E além de manter-se em cartaz ela é hoje também usada
(principalmente em termos de circo) com objetivos diferentes do inicial. Objetivos
dentre os quais um se destaca. Qual? A maximização dos lucros de uma
determinada indústria. Qual? A indústria da comunicação. Espantaram-se com a
afirmação? Então, façamos uma comparação.
Em última análise, o
que faziam os governantes romanos? Distraíam o povo para fazê-lo esquecer sua
indesejável vida. E o que fazem os detentores da indústria da comunicação? Aproveitando,
de forma oportunista, a indesejável vida do povo, distraem-no fazendo-o
interessar-se por vidas mais interessantes. E que vidas são essas? A de algum
ídolo fabricado por ela (a indústria da comunicação), pois é fabricando
ídolos e mantendo idolatrias, mesmo após o desaparecimento do ídolo, que ela cuida
de outra manutenção: a de seus lucros exorbitantes. Circo para o povo e sossego
para os governantes. Idolatrias para o povo e lucros astronômicos para a indústria
da comunicação e seus patrocinadores.
E foi em conformidade
com o que é dito nos dois parágrafos acima que no período que circundou o dia
em que completava-se a segunda década da morte de Ayrton Senna, sob o pretexto
de homenageá-lo (independentemente de saber se em sua condição atual ele
aprecia tais homenagens), a indústria da comunicação recuperou em seus arquivos
um vasto repertório de imagens e de depoimentos e com ele criou todo aquele
clima de comoção que propiciou a elaboração de uma infinidade de produtos
midiáticos dentre eles um que considero simplesmente paradoxal: reviver a morte de Ayrton Senna.
E foi provocado por
tal recuperação que resolvi fazer também a minha, pois, embora imensamente menores do
que os arquivos da indústria da comunicação, eu também tenho os meus. E foi
neles que recuperei o artigo do brilhante jornalista Jânio de Freitas, publicado
em sua coluna da Folha de S.Paulo, na
edição de 3.01.1994 (dois dias após o acidente fatal). Por que fiz isso?
Porque de tudo que vi,
li e ouvi sobre o acidente, tanto naquela época como agora, nada encontrei mais lúcido do que aquele artigo. Artigo que espalho agora, após o
abrandamento do clima de comoção fabricado pela indústria da comunicação, pois
quanto menor for a influência daquele clima maior será o proveito tirado da
leitura do excelente artigo de Jânio de Freitas.
O Defeito que Matou Senna
De quem é a culpa na morte de um campeão como
Ayrton Senna? Ou de um principiante como Ratzenberger? De quem é a culpa por
acidentes em que só o inexplicável salva, por exemplo, um Barrichello? A
resposta vem fácil: é um defeito no carro, ou um defeito na pista, ou defeito
do regulamento, de outro competidor. É sempre um defeito material, concreto,
visível. E, no entanto, isto é uma cômoda inverdade.
Na sexta-feira, ocupado com uma pilha de
documentos, não pude ouvir o primeiro treino de Imola. Ao chegar mais cedo à
redação, fui direto ao meu colega Mário Magalhães, craque dos esportes: os
tempos de Imola? Mário ligou para a Redação de São Paulo. Nem treinos nem
corridas me dão ansiedade. Apenas gosto de ver, quando ocorre, habilidade e
inteligência integrando-se na criação, em frações de segundos, de desenhos
espaciais que disputam entre si. Do ponto de vista apenas visual, é um fascínio
muito próximo do exercido pelos fogos de artifício em todo o mundo.
Dessa vez foi diferente, como já acontecera
eventualmente. Não me interessava a classificação, estava ansioso pelos tempos.
Os tempos iam dar sinal da vida ou a dimensão do risco. Se a distância entre
Senna e Schumacher fosse razoável, estes dois praticantes da afoiteza ilimitada
iriam, acima de tudo, controlar as respectivas situações. Se muito pequena, um,
a todo custo, tentaria manter a supremacia inesperada no campeonato: o outro, a
todo custo, buscaria a supremacia inesperadamente usurpada. Para uma competição
de máquinas e pilotos, isto não seria inquietante. Mas se tratava de uma guerra
de temperamentos semelhantes demais: agressivos, voluntariosos, implacáveis. A
diferença dos tempos, soube mais tarde, foi exatamente igual a um piscar de
olhos normal: haveria dois gladiadores na arena de Imola.
Isto não seria errado, nem certo.
Simplesmente, é assim nas corridas. Sempre foi assim. É preciso vencer, porque
é preciso encontrar a fama tão desejada, o reconhecimento, a admiração e, como
consequência lógica, a fortuna material. Mas, nesta busca, vencer não basta:
igual ou maior do que o desejo de vencer é a necessidade de derrotar. Creia: os
sentimentos de vencer e de derrotar são muito diferentes. A procura do primeiro
pode ser racional. A do segundo nunca o é. Vem das profundezas mais obscuras,
uma força que não se oferece sozinha à compreensão, sequer à percepção. Por
isso, que admirável, embora inútil, a percepção de Ayrton em uma distante
entrevista: "Eu não me conformo em ser segundo, há alguma coisa dentro de mim
que não se conforma com isso, nunca."
Esta pressão interior não é igual, na
intensidade nem na forma de manifestação, em todos os corredores - já que
falamos só desta, e não de outras competições de risco. Mas é a força
predominante em todos. Barrichello, com seu ar de menino suave e bem comportado,
é excelente ilustração disso. O seu acidente de Imola não começou na entrada do
pequeno esse construído para deter a velocidade. Começou no seu pódio japonês
em Aida. Quando ele entrou no pequeno esse, de Imola, em velocidade excessiva e
incontrolável, vinha impulsionado pelo êxito de seu terceiro lugar em Aida, que
liberara dose maior da pressão interior, sob a forma de maior autoconfiança.
Vencer a qualquer custo, derrotar a qualquer
custo. Neste jogo, o defeito no carro, ou na pista, ou no regulamento, não é
mais do que intermediário. É como o revólver e o punhal, inofensivos se não
houver quem os faça letais. O defeito que causa os acidentes de corridas,
fatais ou não, é outro: é o defeito da mente humana. Próprio dos pilotos?
Próprio do ser humano. Exatamente igual em quem entra num bólido de corrida
como em quem exige, e são todos a exigi-lo, a conquista da vitória, da fama, do
cargo superior, da riqueza material, para conceder o seu reconhecimento, a sua
admiração. Até a idolatria.
Ayrton Senna entrou em um carro, e com ele
entrou a mais de 200 em uma curva, do qual acabara de dizer que não sabia as
reações, depois das modificações introduzidas na aerodinâmica. Errou? Estava
certo? Não sei. Mas sei, sabemos, que fez rigorosamente o que dele era esperado
por dezenas de milhares de espectadores, por centenas de milhares de
telespectadores, por seus patrocinadores, por todos os que transmitem,
anunciam, divulgam ou, por qualquer outra forma, extraem lucros da Fórmula 1.
Como do talento de artistas, da criação de autores, de todos os gêneros de
fabricação de ídolos a todo custo. Assim é a dita civilização.
Na primeira página do domingo em que Senna
morreu, a Folha trazia um trecho de
texto assinado por um tal John Casablancas. Dizia: "Vou falar de pessoas que,
como eu, como você, querem ser as primeiras. Pessoas que não desistem de suas
ambições e querem tirar muito sabor da vida. E que se interessam por gente
bonita, bem-sucedida e divertida." Não sei quem é este John como pessoa. Nem me
interessa. Porque sei como é como ser humano: um imbecil. Um retrato individual
e admiravelmente fiel da imbecilidade que só reconhece outro ser humano pela
fama, pela riqueza, pela ostentação física, pela vitória ultramaterial – mesmo
que isso destrua o ser humano. Mesmo que isso tenha feito do planeta Terra uma
grande pista de Imola.
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Iniciei
esta postagem tentando redigir algumas linhas que conseguissem despertar o
interesse pela leitura do excelente artigo de Jânio de Freitas. Considerando
que para quem chegou até aqui – sem pular o artigo – minha tentativa surtiu
efeito, termino-a sugerindo que reflitam sobre o que leram. Afinal, encontrar
um texto escrito com tamanha lucidez sobre um fato tão propício a manipulações
pela indústria da comunicação é algo que não acontece todo dia, não é mesmo?
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