segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Animais falantes

Não, esta postagem não apresenta uma fábula, e sim um texto do jornalista e escritor Fernando Pedreira, publicado no final de 1986 (não anotei a data exata) no extinto Jornal do Brasil. O estupendo desenvolvimento tecnológico ocorrido desde a sua publicação desatualiza algumas invenções nele citadas, mas em contrapartida contribui, absurdamente, para a atualidade de seu teor. Leiam e confiram tal afirmação.
Animais falantes
Súdito leal destes tempos de segunda ordem
Orgulhosamente admito que minhas melhores idéias
São de segunda ordem; e possa o futuro tomá-las
Como troféu da minha luta contra a sufocação.
Estes são versos do poeta russo (lituano) Joseph Brodsky, que há vários anos vive no Ocidente. Mas quantos, entre nós, podem orgulhar-se de ter idéias, ainda que de segunda ordem? Os nossos tempos não parecem propícios à originalidade de pensamento, nem às profundezas filosóficas. Nossos revolucionários mastigam (mal) idéias que ocorreram a Karl Marx e seus amigos há um século e meio. Os não-revolucionários são, em geral, homens práticos e pragmáticos, tecnocráticos. O que se pode dizer em favor deles é que os progressos materiais do ecúmeno (A área habitável ou habitada da Terra.), nos últimos 40 anos, foram realmente de primeira grandeza.
Este último fato não parece impressionar o poeta. “O que fica de um homem” – diz ele “ - não é mais que uma parte: a sua parte falada”. Eis aí uma linha que poderia ter sido escrita pelo próprio João Cabral de Melo Neto. “A sua parte falada”. E, entretanto, talvez a raiz dos males do nosso tempo resida exatamente no fato de que os homens, hoje, falam demais.
Os homens abandonaram o relativo isolamento dos campos e vieram juntar-se nas cidades, nos pátios de fábricas, nas favelas, nos quartéis, nas praças, nos shopping-centers, nas praias de fim de semana. É provavelmente impossível calcular a que ponto essa mudança elevou a taxa dos contatos diretos entre seres humanos. Como se não bastasse, porém, inventamos o microfone e o satélite, e multiplicamos por mil milhões a eficácia dos chamados meios de comunicação, individuais e coletivos.
Essa imensa rede cresce sem parar, e é preciso diariamente enchê-la com palavras. Não há dúvida que esse é um dos grandes dramas modernos. A televisão, o rádio, o telefone, o telex não podem calar-se, sob pena de se tornarem antieconômicos e improdutivos. Pode-se bem imaginar o encantamento de um Leonardo da Vinci, se lhe fosse dado ver uma dessas grandes e maravilhosas caixas de televisão colorida. Leonardo logo descobriria, entretanto, que o problema não é fazer as caixas, mas realimentá-la todos os dias, pois infelizmente elas não são como aquelas antigas caixinhas de música que tocavam sozinhas.
Um político, um administrador público, uma alta autoridade militar ou civil, assim como os locutores de televisão e de rádio, são em geral pessoas (perdoem-me os locutores) mais cheias de palavras que de idéias. Isso, em si mesmo, nada teria de extraordinário, se não fosse a característica essencial dos atuais meios de comunicação (espicaçados pela concorrência), que obrigam as pessoas a falarem, mesmo quando obviamente não têm nenhuma vontade e, a rigor, nem sequer sabem o que dizer.
Basta apertar o botão de um aparelho de TV no Rio, em Paris ou Nova Iorque, para perceber que um microfone, quando espetado diante do nariz de uma pessoa, é um maravilhoso instrumento capaz de esvaziar até mesmo cérebros ocos. Calar-se seria a derrota. O importante é produzir palavras, é satisfazer o apetite do pequeno aparelho e encher o tempo e o espaço, antes que algum outro aventureiro o faça. Políticos, administradores, generais, médicos, até mesmo simples populares, ou falam ou perdem a vez.
Sendo o autor deste artigo um jornalista, profissionalmente obrigado a rabiscar umas tantas laudas por dia ou por semana, ninguém o tomará por um inimigo das palavras. Ao contrário, o que parece preciso é evitar que o uso exagerado (e forçado) as degenere e as transforme de uma vez nessa espécie de terrível tóxico que hoje tonteia e desorienta a grande maioria das pessoas, um pouco por toda a parte.
É óbvio que a censura não seria a melhor solução para essa espécie de sangria desatada. Mas, quem sabe, o racionamento? As sociedades civilizadas limitam o tempo de trabalho das pessoas, tornam obrigatórias as férias anuais e os dias de descanso semanal. Por que não impor um regime semelhante (convenientemente adaptado, mas rigoroso) ao menos aos meios de comunicação coletivos, isto é, compulsórios? Podia-se determinar também a criação de espaços diários, exclusivamente destinados à música e às imagens, sem palavras. Sem a sua parte falada.
Dizia o inglês John Ruskin que, para cada cem ou duzentas pessoas que falam, apenas uma pensa. E que, para cada mil pessoas que pensam, apenas uma sabe realmente ver o que tem diante dos olhos. Ruskin, grande admirador de Turner e de Santo Agostinho, foi um apaixonado observador das coisas da natureza e um crítico severo do capitalismo do seu tempo.
Ele morreu em 1900, aos setenta anos de idade, mas não é difícil imaginar o que teria a dizer desse nosso fim de século, tão diferente do seu universo vitoriano. Com efeito, o nosso mundo moderno parece ter sido inventado para contrariar Ruskin. De tal maneira estão organizadas as coisas, que as pessoas que falam são enormemente estimuladas e favorecidas, desde que não pensem. Enquanto que, na maioria dos países, aqueles que realmente enxergam mais longe não se arriscam a dizer o que pensam, por medo de verem surgir, diante dos seus narizes, não um microfone, mas um agente de polícia política.
Tempos de segunda ordem, diria Joseph Brodsky. É certo que há momentos de festa, mas esses momentos, em regra, duram pouco. Um tempo de excesso de palavras nem por isso é, necessariamente, tempo de diálogo. Veja-se o caso do terrorismo e da violência, que talvez nunca, em época nenhuma anterior, se tenham estendido tanto pela terra inteira.
Bombas, tocaias, seqüestros. De onde vem tudo isso? Contava o embaixador Bastian Pinto que, no Egito, onde serviu por vários anos, é hábito milenar, entre a gente do campo, andarem os homens na frente, montados em burricos, enquanto as mulheres vão atrás, carregando as crianças. Pois na região de El Alamein, onde ocorreram as célebres batalhas entre Rommel e Montgomery, e onde até hoje há obuses e minas enterrados na areia do deserto, o hábito milenar inverteu-se: lá, as mulheres e as crianças vão na frente, como caça-minas, e os homens, nos seus burricos, vêm atrás.
Estranho mundo o nosso, pilotado por animais falantes que nem sempre sabem o que dizem. (...)
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Dá para discordar que, excetuando as invenções tecnológicas nele citadas, apesar de transcorridas quase três décadas de sua publicação o texto seja, absurdamente, atual? O que vocês acham?

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