Continuação de
quarta-feira da semana anterior
Quando
uma criança aprende desde cedo que não deve levantar muitas perguntas, que deve
apenas repetir o que foi dito, e seguir o que está escrito, ela está sendo
preparada para a vida adulta como parte de uma engrenagem maior, é uma
preparação para aceitar hierarquias sem questioná-las, para obedecer a regras
sem refletir sobre sua justiça, para seguir tradições sem avaliar sua
relevância. Esse processo disfarçado de formação cidadã, muitas vezes é um
mecanismo de reprodução social. Governos ganham cidadãos que não questionam;
corporações recebem consumidores que não pensam antes de comprar, e as elites
mantém intacto um sistema que depende da passividade coletiva.
Por trás
dos currículos engessados, e dos métodos padronizados, esconde-se uma lógica de
poder que utiliza a escola como ferramenta de manutenção da ordem. É por isso
que disciplinas que estimulam a criatividade e o pensamento crítico são
frequentemente desvalorizadas enquanto conteúdos que formam trabalhadores
dóceis e previsíveis são priorizados. A arte, a filosofia e a imaginação são
tratadas como luxos secundários quando na verdade deveriam estar no coração do
processo educativo. O que se deseja, em última instância, não é uma geração
capaz de pensar por si mesma, mas uma geração que saiba se adaptar sem
reclamar, que produza sem refletir, que consuma sem medir as consequências.
Assim, a sala de aula se transforma em uma extensão da máquina social, uma
réplica em miniatura do mundo adulto que espera por essas crianças.
Competitivo, hierarquizado, sufocante.
A mesa
enfileirada diante do quadro é o prelúdio das baias de escritório. A prova
cronometrada é o treino para a pressão dos prazos. A nota é a preparação para o
salário que mede não o valor humano, mas a utilidade produtiva. Ao invés de um
espaço para florescer, a escola se torna um campo de treinamento para a
obediência. E o mais trágico é que tudo isso é normalizado, vendido como
educação de qualidade, quando no fundo se trata de um projeto silencioso de
conformidade. Uma escola assim não educa, ela condiciona, não liberta,
aprisiona, não prepara para a vida, prepara para sobreviver dentro de um
sistema que teme, acima de tudo, a rebeldia de uma mente livre.
Mas a
doutrinação não se limita aos muros da escola, ela se infiltra em cada tela, em
cada propaganda, em cada desenho animado que a criança assiste. O
entretenimento com suas cores vibrantes e canções cativantes, muitas vezes
carrega mensagens ocultas, estereótipos sutis e valores cuidadosamente
plantados. Personagens que definem o que é ser bonito, o que é ser
bem-sucedido, o que é normal e o que é aceitável, moldam a imaginação infantil
desde cedo. E não se trata de inocência artística, mas de uma indústria
bilionária que sabe exatamente o que está fazendo. Cada produto licenciado,
cada brinquedo associado, cada narrativa repetida mil vezes nos ouvidos
infantis, está pavimentando caminhos invisíveis na mente em formação. Se a
escola doutrina pela disciplina, a mídia doutrina pelo desejo, transforma
crianças em consumidores antes mesmo que aprendam a somar. Ensina-as a desejar
antes que compreendam o valor de uma escolha. Aprisiona sua imaginação dentro
de moldes fabricados em massa.
No lar,
espaço que deveria ser refúgio, a doutrinação muitas vezes ganha roupagem de
tradição. Pais, muitas vezes sem perceber, transmitem medos que não são seus,
preconceitos herdados, visões de mundo engessadas, crenças impostas pela
geração anterior. É claro que educar uma criança exige transmitir valores, mas
o problema começa quando a transmissão vira imposição, quando a orientação se
transforma em sufocamento, quando o diálogo dá lugar ao é assim porque eu digo.
Assim a criança cresce não como indivíduo, mas como repetição. Reflexo dos
desejos não realizados dos pais, eco das opiniões familiares, continuação de
uma história que nunca escolheu escrever. A casa então deixa de ser um espaço
de acolhimento e se torna mais uma engrenagem de modelagem, onde a
espontaneidade da infância se dissolve sob o peso das expectativas.
A
sociedade moderna com sua pressa e seu culto à produtividade, acrescenta mais
uma camada a essa doutrinação silenciosa. Rouba da criança o tempo de ser
criança. Brincar, sonhar, explorar, errar e se reinventar tornam-se luxo em um
mundo que já as coloca em cursos de idiomas, aulas de reforço, esportes
competitivos e agendas dignas de executivos.
A
infância que deveria ser sinônimo de tempo livre, se converte em preparação
ansiosa para um futuro que talvez nunca venha. E ao fazer isso, a sociedade não
apenas doutrina, mas acelera o processo de alienação. Crianças aprendem que seu
valor está no desempenho, que sua identidade está no sucesso, que sua aceitação
depende de se encaixar. Assim, o ciclo se fecha. A escola exige obediência, a
mídia exige consumo, a família exige repetição, e a sociedade exige
produtividade.
A criança
não cresce livre, cresce moldada, manipulada, domesticada. Essa realidade nos
conduz a uma revelação sombria: a verdadeira escravidão do futuro não está na
falta de liberdade política, mas na ausência de liberdade interior. Uma criança
doutrinada se torna um adulto que não sabe questionar, que não consegue
imaginar alternativas, que aceita como natural aquilo que lhe foi imposto.
Torna-se trabalhador dócil, consumidor previsível, cidadão manipulável.
O perigo
da doutrinação infantil não é apenas individual, mas civilizacional. Quando uma
geração inteira cresce incapaz de pensar por si mesma, a humanidade inteira
regride. O totalitarismo moderno não precisa de correntes visíveis, porque já
aprisionou as correntes invisíveis da mente; não precisa de muros de concreto
porque já construiu muros internos no imaginário. A maior prisão é aquela que a
criança aprende a chamar de lar, escola, normalidade. No entanto, resistir é
possível e mais do que possível é urgente.
A
infância não pode continuar sendo sequestrada por um sistema que reduz sua
potência criativa a meros padrões de comportamento. Libertar a infância não
significa abandoná-la à própria sorte ou transformá-la em um experimento sem
direção, mas sim oferecer um ambiente fértil onde ela possa experimentar,
errar, questionar e imaginar sem medo. É permitir que a criança descubra por si
mesma o prazer do aprendizado, a alegria da curiosidade, a coragem da dúvida.
Significa trocar a imposição pelo diálogo, a rigidez pela flexibilidade, a
repetição pela exploração. Não se trata de ausência de direção, mas de presença
de confiança. A confiança de que cada ser humano é capaz de construir sua
própria maneira de estar no mundo, desde que não lhe arranquem essa
possibilidade, antes mesmo de florescer.
Termina
na próxima segunda-feira
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