terça-feira, 11 de novembro de 2025

Estratégia maligna do sistema para escravizar nossas crianças (II)

Continuação de quarta-feira da semana anterior
Quando uma criança aprende desde cedo que não deve levantar muitas perguntas, que deve apenas repetir o que foi dito, e seguir o que está escrito, ela está sendo preparada para a vida adulta como parte de uma engrenagem maior, é uma preparação para aceitar hierarquias sem questioná-las, para obedecer a regras sem refletir sobre sua justiça, para seguir tradições sem avaliar sua relevância. Esse processo disfarçado de formação cidadã, muitas vezes é um mecanismo de reprodução social. Governos ganham cidadãos que não questionam; corporações recebem consumidores que não pensam antes de comprar, e as elites mantém intacto um sistema que depende da passividade coletiva.
Por trás dos currículos engessados, e dos métodos padronizados, esconde-se uma lógica de poder que utiliza a escola como ferramenta de manutenção da ordem. É por isso que disciplinas que estimulam a criatividade e o pensamento crítico são frequentemente desvalorizadas enquanto conteúdos que formam trabalhadores dóceis e previsíveis são priorizados. A arte, a filosofia e a imaginação são tratadas como luxos secundários quando na verdade deveriam estar no coração do processo educativo. O que se deseja, em última instância, não é uma geração capaz de pensar por si mesma, mas uma geração que saiba se adaptar sem reclamar, que produza sem refletir, que consuma sem medir as consequências. Assim, a sala de aula se transforma em uma extensão da máquina social, uma réplica em miniatura do mundo adulto que espera por essas crianças. Competitivo, hierarquizado, sufocante.
A mesa enfileirada diante do quadro é o prelúdio das baias de escritório. A prova cronometrada é o treino para a pressão dos prazos. A nota é a preparação para o salário que mede não o valor humano, mas a utilidade produtiva. Ao invés de um espaço para florescer, a escola se torna um campo de treinamento para a obediência. E o mais trágico é que tudo isso é normalizado, vendido como educação de qualidade, quando no fundo se trata de um projeto silencioso de conformidade. Uma escola assim não educa, ela condiciona, não liberta, aprisiona, não prepara para a vida, prepara para sobreviver dentro de um sistema que teme, acima de tudo, a rebeldia de uma mente livre.
Mas a doutrinação não se limita aos muros da escola, ela se infiltra em cada tela, em cada propaganda, em cada desenho animado que a criança assiste. O entretenimento com suas cores vibrantes e canções cativantes, muitas vezes carrega mensagens ocultas, estereótipos sutis e valores cuidadosamente plantados. Personagens que definem o que é ser bonito, o que é ser bem-sucedido, o que é normal e o que é aceitável, moldam a imaginação infantil desde cedo. E não se trata de inocência artística, mas de uma indústria bilionária que sabe exatamente o que está fazendo. Cada produto licenciado, cada brinquedo associado, cada narrativa repetida mil vezes nos ouvidos infantis, está pavimentando caminhos invisíveis na mente em formação. Se a escola doutrina pela disciplina, a mídia doutrina pelo desejo, transforma crianças em consumidores antes mesmo que aprendam a somar. Ensina-as a desejar antes que compreendam o valor de uma escolha. Aprisiona sua imaginação dentro de moldes fabricados em massa.
No lar, espaço que deveria ser refúgio, a doutrinação muitas vezes ganha roupagem de tradição. Pais, muitas vezes sem perceber, transmitem medos que não são seus, preconceitos herdados, visões de mundo engessadas, crenças impostas pela geração anterior. É claro que educar uma criança exige transmitir valores, mas o problema começa quando a transmissão vira imposição, quando a orientação se transforma em sufocamento, quando o diálogo dá lugar ao é assim porque eu digo. Assim a criança cresce não como indivíduo, mas como repetição. Reflexo dos desejos não realizados dos pais, eco das opiniões familiares, continuação de uma história que nunca escolheu escrever. A casa então deixa de ser um espaço de acolhimento e se torna mais uma engrenagem de modelagem, onde a espontaneidade da infância se dissolve sob o peso das expectativas.
A sociedade moderna com sua pressa e seu culto à produtividade, acrescenta mais uma camada a essa doutrinação silenciosa. Rouba da criança o tempo de ser criança. Brincar, sonhar, explorar, errar e se reinventar tornam-se luxo em um mundo que já as coloca em cursos de idiomas, aulas de reforço, esportes competitivos e agendas dignas de executivos.
A infância que deveria ser sinônimo de tempo livre, se converte em preparação ansiosa para um futuro que talvez nunca venha. E ao fazer isso, a sociedade não apenas doutrina, mas acelera o processo de alienação. Crianças aprendem que seu valor está no desempenho, que sua identidade está no sucesso, que sua aceitação depende de se encaixar. Assim, o ciclo se fecha. A escola exige obediência, a mídia exige consumo, a família exige repetição, e a sociedade exige produtividade.
A criança não cresce livre, cresce moldada, manipulada, domesticada. Essa realidade nos conduz a uma revelação sombria: a verdadeira escravidão do futuro não está na falta de liberdade política, mas na ausência de liberdade interior. Uma criança doutrinada se torna um adulto que não sabe questionar, que não consegue imaginar alternativas, que aceita como natural aquilo que lhe foi imposto. Torna-se trabalhador dócil, consumidor previsível, cidadão manipulável.
O perigo da doutrinação infantil não é apenas individual, mas civilizacional. Quando uma geração inteira cresce incapaz de pensar por si mesma, a humanidade inteira regride. O totalitarismo moderno não precisa de correntes visíveis, porque já aprisionou as correntes invisíveis da mente; não precisa de muros de concreto porque já construiu muros internos no imaginário. A maior prisão é aquela que a criança aprende a chamar de lar, escola, normalidade. No entanto, resistir é possível e mais do que possível é urgente.
A infância não pode continuar sendo sequestrada por um sistema que reduz sua potência criativa a meros padrões de comportamento. Libertar a infância não significa abandoná-la à própria sorte ou transformá-la em um experimento sem direção, mas sim oferecer um ambiente fértil onde ela possa experimentar, errar, questionar e imaginar sem medo. É permitir que a criança descubra por si mesma o prazer do aprendizado, a alegria da curiosidade, a coragem da dúvida. Significa trocar a imposição pelo diálogo, a rigidez pela flexibilidade, a repetição pela exploração. Não se trata de ausência de direção, mas de presença de confiança. A confiança de que cada ser humano é capaz de construir sua própria maneira de estar no mundo, desde que não lhe arranquem essa possibilidade, antes mesmo de florescer.
Termina na próxima segunda-feira

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