segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Visionário ou delirante?

O texto reproduzido nesta postagem foi publicado na edição de 25 de outubro de 2024 do jornal Valor, em seu suplemento intitulado EU&, em uma seção dedicada ao Cinema.
"Cinema também é cultura", eis uma frase que se via na porta dos cinemas quando eu era adolescente. "Cinema é a melhor diversão", eis o slogan criado por uma grande empresa de exibidoras cinematográficas deste país. "Cinema também pode ser reflexão", eis uma frase usada nesta postagem com a intenção de estimular a leitura da reportagem nela reproduzida e posteriores reflexões.
"Não queremos que a história se repita", afirma o diretor, acrescentando que é trabalho do artista "iluminar a vida contemporânea". "Nós precisamos ser os faróis. Fazer arte que não acende uma luz é como fazer um hambúrger sem qualquer nutriente.", eis um trecho da reportagem de Elaine Guerini reproduzida a seguir.
Visionário ou delirante?
"Senti que 'Megalópolis' devia ser assim", diz Francis Ford Coppola
Por Elaine Guerini, para o Valor, de Cannes
Lenda viva de Hollywood, Francis Ford Coppola diz não existir um filme como "Megalópolis" na história do cinema. "Quando você se propõe a dirigir algo assim, você não sabe como fazer. Convenhamos que não havia um filme sequer que eu pudesse usar de referência", conta o cineasta de 85 anos, como quem aceita a recepção polarizada do seu último longa-metragem, um projeto que acalentava há mais de 40 anos.
Até os sentimentos que desperta são tão exagerados quanto a própria superprodução, uma releitura da queda de Roma ambientada em Nova York futurista que é considerada um "desastre" por uns e uma "obra-prima" por outros.
Talvez seja melhor interpretar "Megalópolis" como uma indulgência de Coppola. O diretor e roteirista apresenta um caldeirão de ideias grandiosas, mesmo que algumas delas acabem desconexas ao longo dos 138 minutos. Os obstáculos encontrados por um arquiteto visionário que quer salvar o mundo são só um ponto de partida para o cineasta discutir política, sociologia, ciência, física, utopia e futuro. E até os estilos cinematográficos se confundem (alternando entre o clássico, o teatral e a paródia, entre outros), dando a impressão de que são vários filmes em um.
"Senti que 'Megalópolis' deveria ser assim. E como eu paguei por ele, achei que tinha o direito de fazer do meu jeito", diz Coppola, o escolhido desta 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo para receber o Prêmio Leon Cakoff.
O vencedor de duas Palmas de Ouro, por "A Conversação" (1974) e "Apocalypse Now" (1979), e de cinco Oscars, quatro deles com a trilogia de "O Poderoso Chefão", desembarca no Brasil para o encerramento da maratona cinematográfica, no dia 30. Na noite de entrega dos prêmios, "Megalópolis", realizado com US$ 120 milhões, fará a sua première no país - antes de estrear no dia seguinte, no circuito comercial.
Como não conseguiu financiamento para o filme em Hollywood, Coppola empregou recursos próprios, vindos do negócio de vinho da família. "Nunca me importei com dinheiro. Eu pude fazer 'Megalópolis' porque na época da crise financeira de 2008 peguei emprestado US$ 20 milhões. Foi assim que construí uma vinícola com piscinas e jogos, onde as crianças podem passar o tempo enquanto seus pais tomam vinho. E esse risco absurdo criou um lugar onde se pode passar o dia inteiro, o que toda vinícola tenta duplicar", conta o diretor no encontro com a imprensa após a première de "Megalópolis" no Festival de Cannes, que teve cobertura do Valor.
O cineasta reforça que não teria feito a sua fortuna caso não tivesse se arriscado com a Francis Ford Coppola Winery, na Califórnia. No caso de "Megalópolis", no entanto, praticamente não há chance de retorno financeiro - o filme nem deve conseguir se pagar. Até o momento, sua bilheteria soma pouco mais de US$ 11 milhões, desde a estreia nos EUA e em alguns territórios do mercado internacional. "Como os meus filhos, sem exceção, construíram suas carreiras sem precisarem de uma fortuna, não importa o que aconteça. Nós ainda temos o negócio do vinho da família, o que nos deixará bem", garante ele.
A ideia central de "Megalópolis" começou a ser desenvolvida no início da década de 80 como uma fábula de ficção científica inspirada na queda de Roma e ambientada em um cenário futurístico nos EUA, dominado pelas elites. Trata-se de uma visão crítica da sociedade, contrapondo na cidade chamada Nova Roma o idealismo do arquiteto Cesar Catilina capaz de parar o tempo (vivido por Adam Driver) ao conservadorismo do prefeito Franklyn Cicero (Giancarlo Esposito), cego pela ganância.
Durante a pesquisa para "Megalópolis", Coppola visitou várias cidades ao redor do mundo em busca de inspiração para o projeto urbanista utópico assinado pelo arquiteto do filme. Uma delas foi Curitiba, uma referência mundial em transporte público, que recebeu o cineasta em 2003, quando Coppola conheceu o arquiteto e urbanista Jaime Lerner (1937 - 2021).
Na época, a ideia de filmar uma parte de "Megalópolis" na capital paranaense foi até cogitada, mas a produção acabou rodada nos EUA, no estado da Geórgia, em cidades como Fayetteville e Atlanta. "Nada se compara aos generosos subsídios oferecidos atualmente pela Geórgia", destaca Coppola, referindo-se aos benefícios fiscais para equipes de filmagem.
"É uma alegria ver "Megalópolis" pronto após todos esses anos. Desde que tive a ideia, eu a desenvolvi em momentos diferentes da minha vida. E quando abandonava o projeto, dizia para mim mesmo que não deveria fazer isso", conta Coppola, inspirado aqui na Conspiração Catilinária, ocorrida em 63 a.C., que deu origem ao Império Romano.
"Eu queria tanto fazer esse filme porque os Estados Unidos foram fundados nos moldes da república romana. Nós não queríamos um rei, assim como Roma. Foi por isso que eles inventaram uma nova forma de governo chamada república, com o senado, com as leis romanas e outras coisas que nós também abraçamos. Nós até construímos nossas cidades para que elas se parecessem com Roma."
Coppola só não tinha ideia de que a política americana na época do lançamento de "Megalópolis" tornaria o filme tão relevante. "O que está acontecendo nos EUA, na nossa república e na nossa democracia, é exatamente como Roma perdeu a sua república há milhares de anos. Não por acaso nós vemos em artigos de jornais e no programa 'Saturday Night Live' paralelos entre os EUA de hoje e a Roma antiga", comenta Coppola, preocupado com as próximas eleições presidenciais em seu país, em novembro.
"Homens como Donald Trump não estão no comando no momento, mas há uma tendência para a neodireita e até mesmo para o fascismo, o que dá medo. Qualquer um que estava vivo durante a Segunda Guerra Mundial lembra daqueles horrores. E não queremos que a história se repita", afirma o diretor, acrescentando que é trabalho do artista "iluminar a vida contemporânea". "Nós precisamos ser os faróis. Fazer arte que não acende uma luz é como fazer um hambúrger sem qualquer nutriente."
Independentemente de como "Megalópolis" seja lembrado, como uma obra visionária ou como um delírio caótico, Coppola fala como quem não tem arrependimentos.
"No leito de morte, muitas pessoas dizem: 'Eu queria ter feito isso ou aquilo'. Quando eu morrer, vou dizer que fiz o que queria, que vi minha filha ganhar um Oscar [Sofia Coppola, vencedora de melhor roteiro original por "Encontros e Desencontros", em 2004], que produzi o meu vinho e que ainda rodei todos os filmes que queria. Vou estar tão ocupado pensando em todas as coisas que ainda tenho que fazer que, quando a morte chegar, nem vou perceber."
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Será que a leitura da reportagem reproduzida acima conseguirá provocar algumas reflexões sobre o que é dito por esse consagrado cineasta? Espero que sim. Afinal, essa é a intenção declarada no início da postagem. Será que ao final das reflexões será possível responder à pergunta que intitula a reportagem da jornalista?

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