terça-feira, 2 de abril de 2024

Reflexões provocadas por "Profissão Sorriso" (I)

- Eu criei o curso quando percebi os problemas mentais dos jovens. Uma pesquisa mostrou que, entre os estudantes universitários, mais de 40% falavam em depressão, mais de 60% em ansiedade, e um em cada dez diziam ter considerado cometer suicídio - disse a cientista cognitiva Laurie Santos. - E esse problema não é só da juventude. Questões como a pandemia, as mudanças climáticas e os avanços da tecnologia aumentaram a ansiedade e o burnout no local de trabalho.
Conseguir perceber corretamente o ambiente em que se está situado e o que nele ocorre, eis a que talvez seja uma das maiores incapacidades da imensa maioria dos integrantes da autodenominada espécie inteligente do universo. E ao falar em incapacidade de percepção me vem à mente uma historinha didática com a qual o escritor David Foster Wallace inicia seu discurso de paraninfo endereçado aos formandos do Kenyon College, nos Estados Unidos, em 21 de maio de 2005.
"Dois peixinhos estão nadando e cruzam com um peixe mais velho que vem nadando no sentido contrário, que os cumprimenta dizendo: 'Bom dia, meninos. Como está a água?'. Os dois peixinhos continuam nadando por mais algum tempo, até que um deles olha para o outro e pergunta: 'Água? Que diabo é isso?'"
Explicando o motivo de ter iniciado seu discurso dessa forma, Wallace disse o seguinte:
"O emprego de historinhas didáticas com ar de parábola é um requisito padrão dos discursos de paraninfo nos Estados Unidos. Na verdade, de todas as convenções do gênero, a historinha é uma das que possui o menor teor de conversa fiada... mas se acham que pretendo me colocar na posição do peixe mais velho e mais sábio que explicará o que é a água para vocês, os peixinhos, por favor, não temam. Não sou o peixe mais velho e sábio. Minha intenção com a historinha dos peixes é simplesmente mostrar que as realidades mais óbvias, onipresentes e fundamentais são com frequência as mais difíceis de ver e conversar a respeito."
Como os dois peixes mais jovens, a imensa maioria da autodenominada espécie inteligente do universo não se dá conta do que seja realmente a "água" na qual vive cada minuto de sua existência. Diferentemente de tal maioria, a cientista cognitiva Laurie Santos parece-me ter conseguido perceber alguns problemas existentes na água em que estamos imersos. Mais do que isso, ela tenta contribuir para solucioná-los, criando o curso ("Psicologia e uma boa vida") citado no primeiro parágrafo desta postagem. Curso sobre o qual o jornalista André Miranda diz o seguinte em sua reportagem:
"A repercussão do curso permitiu que Laurie criasse uma versão online, e deu origem ao podcast semanal "The Happiness Lab" ("O Laboratório da Felicidade"), que já lançou mais de 170 episódios. Tudo isso por um motivo que parece banal, mas que afeta muito mais gente do que se imagina: as pessoas têm dificuldade em se sentirem felizes."
"As pessoas têm dificuldade em se sentirem felizes", eis mais uma relevante questão percebida por Laurie. Percepção que a levou a realizar, seis anos após a criação do curso "Psicologia e uma boa vida", uma apresentação intitulada "Cinco maneiras de melhorar o bem-estar no local de trabalho: tendências emergentes da ciência da felicidade". Apresentação, realizada no principal festival de inovação do mundo, desta vez voltada a adultos, e da qual Miranda destaca três coisas reproduzidas a seguir.
"Um dos pontos por ela (Laurie) defendidos é que garantir a felicidade de um trabalhador é melhorar o resultado de uma empresa".
- As companhias com funcionários mais felizes são as que estão fazendo mais dinheiro - disse.
A pesquisadora mostrou os resultados de um estudo de 2023 da agência americana de empregos Indeed, feito em parceria com cientistas da Universidade de Oxford, que traçou a relação direta entre felicidade e lucro.
E após citar as três coisas acima, Miranda faz a seguinte indagação: "E como estabelecer melhor essa relação?" Indagação que ele mesmo responde assim: "Segue abaixo um resumo das cinco sugestões de Laurie para o árduo caminho de se buscar felicidade no trabalho."
Sim, há "um árduo caminho de se buscar felicidade no trabalho", até porque se por um lado a cientista cognitiva consegue perceber corretamente o problema, por outro lado ela parece-me não perceber corretamente a quem cabe envolver-se na solução. Repare que embora ela diga que "garantir a felicidade de um trabalhador é melhorar o resultado de uma empresa; que as companhias com funcionários mais felizes são as que estão fazendo mais dinheiro; que há uma relação direta entre felicidade e lucro", ou seja, embora ela perceba que as companhias são beneficiadas com a felicidade do trabalhador, ela atribui unicamente aos trabalhadores a tarefa de buscar a felicidade no trabalho.
Sim, há "um árduo caminho de se buscar felicidade no trabalho", pois todas as sugestões de Laurie são mudanças de comportamento por parte dos trabalhadores e, consequentemente, nenhuma delas é mudança de comportamento por parte das companhias.
Embora eu entenda que felicidade seja algo que todos devem almejar, será que é aos trabalhadores que Laurie deve endereçar "sugestões para o árduo caminho de se buscar felicidade no trabalho"? Será que, em relação a quem devem ser endereçadas suas sugestões, a cientista cognitiva tem uma percepção equivocada? Ou será uma percepção encomendada? Encomendada por alguma ou por algumas companhias. Afinal, em um mundo em que companhias cada vez maiores consideram que tudo o que nele existe (seja algo material ou imaterial) e que todas as pessoas que nele sobrevivem estejam disponíveis para compra; em um mundo em que, para quase tudo o que se produz em termos de pesquisas, existe alguma companhia atuando como patrocinadora ou investidora, creio que encomendar uma determinada percepção sobre determinada coisa é algo que não deve ser visto como algo impossível! Você tem respostas para as indagações apresentadas no início deste parágrafo?
"Hoje em dia, sabemos o preço de tudo e não sabemos o valor de nada.", eis uma afirmação de Oscar Wilde, (1854 – 1900), escritor, poeta e dramaturgo irlandês. Se naquela época Oscar Wilde já percebia isso, imagino que hoje ele estaria simplesmente horrorizado. O capitalismo relativiza todas as coisas pela ótica monetária, de modo que uma mesma coisa pode ser considerada certa ou errada, dependendo de quanto se ganhe com ela. Você conhece um ditado que indaga, "Pagando bem, que mal tem?". Pois é!
A próxima postagem apresentará algumas reflexões provocadas por cada uma das cinco sugestões feitas pela cientista cognitiva.

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