terça-feira, 27 de julho de 2021

Quem dá é que deve ficar grato

  "Reduzir o valor da vida ao dinheiro mata toda possibilidade de idealizar um mundo melhor."
  (Nuccio Ordine, professor de literatura italiana da Universidade da Calábria)
A ideia espalhada por esta postagem vem de uma passagem do livro Nem Água, Nem Lua composto de dez discursos de Bhagwan Shree Rajneesh nos quais ele reconta dez estórias Zen e as interpreta. O texto apresentado a seguir contém uma das dez estórias seguida por alguns poucos trechos da longa interpretação de Rajneesh. O título da postagem é tomado por empréstimo da passagem do livro.
Quem dá é que deve ficar grato
O mestre Seistsu precisava de acomodações maiores, uma vez que o prédio no qual ensinava estava superlotado.
Umezu, um comerciante, decidiu doar quinhentas peças de ouro para a construção do novo edifício.
Umezu levou o dinheiro ao Instrutor e Seistzu lhe disse: "Está bem, eu o aceito."
Umezu deu-lhe o saco de ouro, mas ficou aborrecido com a atitude do Instrutor, pois dera uma quantia alta - uma pessoa poderia viver o ano inteiro com três peças de ouro - e o Instrutor nem sequer lhe agradecera.
"Neste saco há quinhentas peças de ouro", insinuou Umezu. "Você já disse isto antes", disse Seistsu.
"Até mesmo para mim que sou um rico comerciante quinhentas peças de ouro é muito dinheiro", disse Umezu.
"Você quer que eu lhe agradeça por isso?", disse Seistsu.
"Deveria", respondeu Umezu.
"Por que deveria?", perguntou Seistsu. "Quem dá é que deve ficar grato."
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Existem apenas duas maneiras de se viver, apenas duas vias: uma é a certa, e a outra é a errada. A certa é dar, repartir, amar. A errada é tirar, explorar, acumular. O amor e o dinheiro são os dois símbolos desses dois caminhos.
O amor é a via certa; o dinheiro é a via errada. Todos estão vivendo na via errada. Por quê? Qual é a dinâmica disso? Por que todos erram? Onde estão as regras? Teremos de penetrar profundamente nesta bela estória, só assim poderemos compreendê-la. Se você não puder compreendê-la, não compreenderá Buda, Jesus, Mahavir. Será impossível, porque eles andam no caminho do amor e você no do dinheiro, e esses dois caminhos nunca se encontram. Não podem!
Um homem no caminho do dinheiro não pode compreender um homem no caminho do amor - é impossível, eles nunca se encontram. Você pode venerá-lo mas o fará por razões erradas pois não pode compreendê-lo. Todo o seu culto está baseado em algo errado.
Agora, tentaremos entrar nesta estória. Você será capaz de compreendê-la - mas compreenda-a através do coração.
"Umezu deu-lhe o saco de ouro, mas ficou aborrecido com a atitude do professor, pois dera uma quantia alta - uma pessoa poderia viver um ano inteiro com três peças de ouro - e o Instrutor nem sequer lhe agradecera."
Olhe para a mente, para a mente neurótica por dinheiro. O que ela está dizendo? Está dizendo: "Olhe para o saco de ouro que estou lhe dando - um homem pode viver um ano inteiro com apenas três dessas peças.". Ele pensa que a vida vem do dinheiro. Ele pode ser necessário, mas ninguém pode viver através dele. Ele é necessário, mas não é o suficiente. Se houver apenas dinheiro e nada mais, quanto mais cedo você morrer, melhor. Pois estará vivo desnecessariamente, estará apenas passando os dias - isto não é vida.
"Você vive nas razões, nas palavras, nos raciocínios, e esconde o fato básico, esconde que está matando seus sentimentos. Se você estiver no caminho do dinheiro - e quase todos estão mais ou menos nele - então olhe para o fenômeno completo, olhe o que está lhe acontecendo: você está se matando. Você não pode impedir a vida de se movimentar, a vida chegará na morte. Você não pode evitar isto, não está no seu controle. Terá de ir como veio, irá. Antes que ela o deixe, a única coisa que você conseguirá fazer é criar ansiedade.
A razão sempre agarra as coisas e o coração sempre quer dar. O coração é um doador, nunca é avarento; assim um avaro nunca pode acreditar nele. Pouco a pouco, ele mata seu coração; torna-se apenas cabeça. Não tem sentimentos - sentir é perigoso. Ele não sente, torna-se insensível. Não permite nenhuma sensibilidade em seu ser. Quando um mendigo vem e lhe pergunta se você tem sentimentos, é difícil dizer não. Mas se você tiver apenas cabeça, racionalizará e dirá: "Não acredito em esmolas: é ruim para a economia, não é bom para a cultura - e você me parece perfeitamente saudável. Vá trabalhar!". Você racionalizará, mas também saberá que estas razões são superficiais. No fundo, você não quer dar - eis a base. Mas você não pode aceitar o fato de que não gosta de dar.
"Você quer que eu lhe agradeça por isso?", perguntou o Mestre - porque os Mestres nunca respondem o que você lhes pergunta. Respondem o que você quis dizer com a sua pergunta. Nunca respondem suas perguntas, porque elas são irrelevantes. Eles sempre respondem ao que está oculto por trás delas - ao que você está insinuando.
"Deveria", disse Umezu. Ele não disse: eu esperava ou o que eu gostaria, mas sim: "deveria".
Esse homem não era um doador, ele nunca foi um doador. Mesmo quando estava dando, não estava dando. Mesmo quando fez a doação estava barganhando. Ele disse: "Você deveria. Eu fiz uma coisa tão grande e agora é seu dever me agradecer, não que eu esteja desejando ou pedindo isso. É seu dever."
"Por que eu deveria?", disse Seistsu. "Quem dá é que deve ficar grato."
Isto é algo impossível para uma mente compreender, para uma mente orientada pelo dinheiro: quem dá é que deve ficar grato. Este é o pico no caminho do amor.
Um homem que está focado no dinheiro, não pode compreender um homem de amor. O homem de amor sempre lhe parece um mendigo, um louco, alguém do outro mundo - você não o compreende. Ele age de um modo maluco.
O Mestre disse: "Quem dá é que deve ficar grato." Você deveria estar grato a mim por eu ter aceitado - por ter aceitado algo como o dinheiro. Deveria estar grato pois o dinheiro não significa nada para mim. Ele pode ser necessário no mundo, e um Mestre também tem de viver no mundo. Ele pode ser o meio de troca neste mundo louco, e um Mestre tem de viver neste mundo louco - mas não é nada. É apenas um meio inventado e reconhecido por todos para que as coisas possam ser trocadas.
A sociedade pode viver sem dinheiro; por milhares de anos foi assim. E mais cedo ou mais tarde virá o dia em que ela viverá sem dinheiro novamente, porque o dinheiro é muito extenuante, desnecessário e inútil. (...) Logo a terra não precisará mais disso. Os Mestres sempre souberam que o dinheiro é apenas uma invenção do mercado, mas o Mestre tem que viver com vocês.
Aqueles que amam sabem que dar é maravilhoso, que traz felicidade, sabem que quanto mais você dá mais tem, que quanto mais amor você dá, mais amor tem dentro de si, que quanto mais o reparte, mais ele cresce - é uma fonte eterna. Quando você descobre que quanto mais dá mais tem, já aprendeu a aritmética básica da espiritualidade. Então nunca mais segurará, estará sempre procurando alguém para dar, alguém para compartilhar com você, porque isto o rejuvenesce; o velho se vai e o novo nasce. A consequência é sempre esta.
A maneira certa de viver é dar, repartir, amar. A errada é tirar, explorar, acumular. Portanto, quem dá é que deve ficar grato. Dê e agradeça.
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De um começo dizendo que "Quem dá é que deve ficar grato." a um final dizendo que "A sociedade pode viver sem dinheiro; por milhares de anos foi assim. E mais cedo ou mais tarde virá o dia em que ela viverá sem dinheiro novamente, porque o dinheiro é muito extenuante, desnecessário e inútil."
Que postagem delirante, hein! Será que delírio é algo a que temos direito? Em um livro intitulado De Pernas Pro Ar – A Escola do Mundo ao Avesso, publicado em 1998, o extraordinário Eduardo Galeano (1940 – 2015) diz que sim; diz que temos O direito ao delírio.

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