quinta-feira, 12 de abril de 2018

Reflexões provocadas por "Universidades dos EUA tentam trazer ética dos médicos para programadores"

"A profissão médica tem uma ética: antes de tudo, não ferir. O Vale do Silício tem uma regra: primeiro fazer, depois pedir perdão." Com essas palavras Natasha Singer inicia a reportagem espalhada pela postagem anterior, e eu inicio estas reflexões. Reflexões que prosseguem com a lembrança de uma sugestão de Cathy O'Neill e Virginia Eubanks para evitar os efeitos perversos oriundos da proliferação do uso de algoritmos, citada por Gillian Tett em Algoritmos e desigualdade : "Exigir que os tecnólogos façam algo parecido com o julgamento de Hipócrates, de 'em primeiro lugar, fazer o bem'.". Será que a referida sugestão está em sintonia com o que pretendem as universidades americanas citadas na reportagem de Natasha Singer?
"O Vale do Silício tem uma regra: primeiro fazer, depois pedir perdão.", diz Natasha Singer. Regra fundamentada em "uma atitude comum no Vale do Silício: a de considerar a ética como um entrave à inovação." Atitude que três professores da Universidade de Stanford, o coração acadêmico do Vale do Silício, juntamente com um pesquisador resolveram desafiar desenvolvendo um curso de ética em Ciências da Computação para começar a partir de 2019.
"A idéia é treinar a próxima geração de especialistas em tecnologia – e também legisladores – para considerar o lado obscuro de inovações.", diz Natasha Singer. "Trata-se de descobrir ou identificar pontos com os quais, nos próximos anos, os estudantes aqui formados vão se defrontar", disse Mehram Sahami, professor de Ciências da Computação da Universidade de Stanford. "A tecnologia não é neutra", disse Sahami, que já trabalhou no Google, como cientista pesquisador. "As escolhas feitas na adoção de tecnologia têm ramificações sociais."
E ao dizer que "A tecnologia não é neutra" e que "As escolhas feitas na adoção de tecnologia têm ramificações sociais.", Sahami me faz lembrar algo dito pela jornalista Érica Fraga em uma reportagem intitulada Obra discute riscos de tecnologia aumentar a desigualdade, publicada na edição de 02 de abril de 2018 do jornal Folha de S.Paulo.
"Para entender os rumos que tomamos, dizem Klaus Schwab e Nicholas Davis – respectivamente, o fundador e o responsável por inovação do Fórum Econômico Mundial, autores do livro 'Aplicando a Quarta Revolução Industrial', é importante reconhecer duas visões enganosas.
A primeira é a crença de que a tecnologia determina o futuro. A segunda está ligada à ideia de que ela seja desprovida de valores e, portanto, totalmente influenciada pelo caráter moral dos seus usuários, e não de seus desenvolvedores ou difusores.
'Os dois argumentos esquecem que tecnologia e sociedade se moldam uma à outra', ressaltam os autores."
Ou seja, na contramão do que tanto se apregoa, eis que surge alguém com coragem suficiente para afirmar abertamente que "A tecnologia não é neutra". E também alguém que não tão abertamente afirma a mesma coisa. Vocês concordam que ao "reconhecer como visão enganosa a ideia de que a tecnologia seja desprovida de valores e, portanto, totalmente influenciada pelo caráter moral dos seus usuários, e não de seus desenvolvedores ou difusores", Schwab e Davis também estão afirmando que a "A tecnologia não é neutra"?
E as advertências sobre o lado negativo da tecnologia não param por aí. "Temos de ensinar às pessoas que há um lado negativo na ideia de 'avançar sempre, mesmo quebrando coisas'", diz Laura Norén, pós-doutoranda do Centro de Ciência de Dados da Universidade de Nova York, que leciona em um novo curso de ética em Ciência de Dados.
"Um dos motivos para as universidades estarem investindo em ética é a popularização de tecnologias poderosas, como o aprendizado de máquina. Tratam-se de algoritmos que podem aprender de modo autônomo a executar tarefas a partir da análise de grandes volumes de dados. Como tais ferramentas podem, em última análise, modificar a sociedade, as universidades se apressam a fazer os estudantes entenderem as potenciais consequências.", diz Natasha Singer. E ao dizer que, "em última análise, tais ferramentas podem modificar a sociedade", Natasha leva-me a repetir algumas coisas já ditas acima.
"Os dois argumentos esquecem que tecnologia e sociedade se moldam uma à outra", ressaltam Klaus Schwab e Nicholas Davis. Os dois argumentos, fundamentados em duas visões enganosas, segundo Schwab e Davis, foram citados no quinto parágrafo acima. "As escolhas feitas na adoção de tecnologia têm ramificações sociais.", diz Mehram Sahami, professor de Ciências da Computação da Universidade de Stanford, em afirmação citada no oitavo parágrafo acima.
Em um curso da Universidade Cornell, a professora Karen Levy direciona a discussão ética para o papel das empresas, não dos profissionais. "Muitas decisões éticas têm a ver com as escolhas que uma empresa faz: que produtos vai desenvolver, como lidará com os dados pessoais de seus usuários", disse Karen. "Se o treinamento ético se concentrar inteiramente na responsabilidade individual do cientista de dados, há o risco de o papel da empresa ser subestimado."
Será que ao dizer que "Muitas decisões éticas têm a ver com as escolhas que uma empresa faz" a professora Karen Levy é mais uma pessoa a concordar com a afirmação de que "A tecnologia não é neutra"? E as indagações continuam!
Será que faz sentido a afirmação de Karen Levy de que "Se o treinamento ético se concentrar inteiramente na responsabilidade individual do cientista de dados, há o risco de o papel da empresa ser subestimado."? Será que subestimar o papel da empresa faz algum sentido? E ao falar em papel da empresa, o método das recordações sucessivas me traz-me à mente algo que li em um livro intitulado Magia & Gestão, de Geraldo R. Caravantes e Wesley E. Bjur.
"A boa sociedade não é uma dádiva, mas trata-se de um processo de construção coletivo, em que as boas organizações (lembre-se de que vivemos em uma sociedade organizacional) serão seus esteios. Por outro lado, entendem os autores que estas ficções legais, que chamamos organizações, são decorrência, por sua vez, de indivíduos que nelas atuam e, muito especialmente de suas lideranças. Ou, raciocinando pelo inverso: não vemos como obter uma sociedade saudável sem organizações saudáveis; nem tampouco organizações com alto desempenho, povoadas por indivíduos infelizes, subutilizados, impossibilitados de preencherem seu potencial. Entendemos e compartilhamos a visão de Aldous Huxley de que 'o objetivo da vida humana é concretizar potencialidades individuais ao máximo de seus limites'."
Ou seja, "A boa sociedade precisa de boas organizações, pois não há como obter uma sociedade saudável sem organizações saudáveis; nem tampouco organizações com alto desempenho, povoadas por indivíduos infelizes, subutilizados, impossibilitados de preencherem seu potencial.".
Potencial que jamais será totalmente preenchido enquanto os indivíduos não compreenderem que aquilo que é denominado ética médica - "antes de tudo, não ferir" –, conforme enuncia Natasha Singer, na primeira frase desta postagem ou - "em primeiro lugar, fazer o bem" -, conforme enunciam Cathy O'Neill e Virginia Eubanks em Algoritmos e desigualdade, é algo cuja imprescindibilidade da prática abrange não apenas os programadores (para quem algumas universidades dos EUA tentam levá-la), mas também todo e qualquer indivíduo que "acredite que a qualidade de uma sociedade é resultado das ações de todos os seus componentes".

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