Conforme prometido no antepenúltimo parágrafo
da postagem
anterior, segue a primeira de duas postagens que pretendem ajudá-los a
pensar sobre a existência de uma idade até a qual uma criança ainda não
aprendeu a ser cínica. De autoria de Milly Lacombe, o texto apresentado abaixo foi
publicado na edição 268 da revista Trip em agosto de 2017.
Pela janela do Opala
da minha mãe
Aos olhos de uma
criança as injustiças do mundo provocam as únicas reações possíveis: choque e
vontade de mudar as coisas. Aos olhos de um adulto, o efeito já não é o mesmo
Eu devia
ter uns 7 anos quando enxerguei pela primeira vez uma criança de rua. Estava no
banco de trás do Opala azul de minha mãe e vi pela janela um menino que devia
ter a minha idade vindo pedir dinheiro. Era um garoto pequeno, magro, de
cabelos lisos, pele suja e olhar desesperado. Ainda posso ver seu rosto, a
expressão de seus olhos pelo vidro do Opala. Sei exatamente em que esquina estávamos
– e até por isso a memória daquele dia volta sempre que passo por lá -, sei que
era fim de tarde e sei que fazia frio. Durante as semanas que se seguiram ao
encontro, fantasiei com a possibilidade de voltar àquela esquina,
reencontrá-lo, convidá-lo a entrar, levá-lo para morar em casa. Ele dormiria no
quarto do meu irmão, me parecia bastante óbvio que fosse assim, já que meu
irmão dormia sozinho e eu tinha que dividir o quarto com aquelas duas outras
meninas que moravam em casa: minhas irmãs caçulas. Lembro de ter dito a minha
mãe que queria voltar àquela esquina, ver se o menino ainda estava lá, chamá-lo
para morar com a gente. Não lembro da reação dela diante do pedido, mas o fato
é que aquele menino e eu nunca mais nos encontramos.
Aos olhos
de uma criança as injustiças do mundo provocam as únicas reações possíveis:
choque e vontade de mudar as coisas. Aos olhos de um adulto, já completamente
inserido nesse mundo maluco e cruel em que vivemos, o efeito já não é o mesmo: "É
assim que as coisas são", dizemos a nós mesmos. Mas as coisas não deveriam
ser assim, as coisas não poderiam ser assim, e nós não deveríamos nos acostumar
que as coisas fossem assim. Essa sociedade adoentada em que vivemos não foi
imposta por ordem divina, ela foi criada por cada um de nós, e todas as coisas
que homens e mulheres criaram podem ser destruídas, reformadas, renovadas.
Não demora
muito para que uma criança privilegiada como aquela que eu fui cresça para ter
a convicção de que suas conquistas e sucessos são resultados apenas de mérito e
esforço pessoal, e não de vantagens como educação, herança, classe etc. O arranjo
social que nos molda é feito para encorajar cada um de nós a acreditar que a
desigualdade é aceitável, já que ela recompensa mérito e esforço: as leis do
maravilhoso e santificado mercado asseguram que cada um terá o que merece
porque o mercado se autorregula e se autocorrige. É assim que a vida daquele
menino e a minha passam a ser, sob os olhos de uma instituição que celebra a
competição e menospreza a colaboração, justas, explicáveis, adequadas.
Privilégio é complicado porque leva o privilegiado a acreditar que sua vantagem
na vida foi completamente conquistada e que as desvantagens dos menos
afortunados vêm de demérito, ensina Noam Chomsky.
Mas, antes
de mais nada, temos que entender para onde esse privilégio que nos dá o direito
de consumir e acumular está nos levando, porque nesse corre-corre maluco que
estabelecemos e chamamos de vida não há tempo para parar e refletir.
CORRENTE HUMANA
Na França
atual, 6 milhões de pessoas, ou 10% da população, acordam sem saber se terão
alguma coisa para comer naquele dia. Estamos falando da situação de um dos
países mais ricos e romantizados do mundo, e não do Haiti, onde a realidade é
imperialmente pior. No riquíssimo Japão, 20 em cada 100 mil pessoas cometem
suicídio por ano; no Peru, um país pobre, uma pessoa em cada 100 mil faz a
mesma coisa anualmente.
Os efeitos
de um sistema baseado na acumulação de riqueza, esse valor contra o qual todos
os demais são medidos, como sugeriu a poeta Adrienne Reich há algumas décadas,
ferem a todos nós de forma profunda e muitas vezes discreta: impedem
questionamentos, castram a imaginação, reduzem complexas relações humanas a uma
iconografia barata, produzem surtos de ansiedade, angústia, fobias, solidão.
"Dominamos
completamente o planeta não porque somos mais espertos e ágeis do que um
chipanzé e sim porque somos a única espécie capaz de uma cooperação flexível e
em grande escala", escreve o historiador israelense Yuval Noah Harari em
seu Homo Deus. O que nos distingue
das demais espécies é, portanto, a capacidade de cooperar, de nos ajudar, de
nos organizar, de viver em comunidades.
Clair
Patterson é o nome do cientista que em 1956 descobriu a idade da Terra (4,5
bilhões de anos), e, embora ele tenha ficado com o mérito, é folclórico o
momento em que Patterson, esperando que o resultado de sua pesquisa fosse
confirmado e o elevasse à categoria de imortal, agradeceu nominalmente a todos
aqueles geólogos e cientistas que vieram antes dele e cujas pesquisas
possibilitaram sua descoberta. É o que fazemos nessa viagem maluca pela Terra:
passamos o bastão; colaboramos com os que estão aqui agora, aceitamos a
colaboração dos que vieram antes, deixamos alguma algum conhecimento de herança
para os que nos substituirão e, especialmente, aprendemos que as mais
individuais de nossas conquistas nunca são mérito de nossos esforços e
talentos, mas resultado da colaboração de uma comunidade inteira.
Só que o
ritmo de vida que criamos estabelece que devemos abrir mão de significado em
troca de poder e riqueza. "O credo de [ter]
'mais coisas' impele indivíduos, empresas e governos a descartar tudo o que
possa impedir o crescimento econômico, tal como preservar a igualdade social,
garantir a harmonia ecológica ou respeitar os pais", escreve Harari. Ele
explica que se a ideia é a de fornecer a todos os seres do mundo um padrão de
vida semelhante ao do americano abastado, então precisaríamos de outros
planetas que pudessem ser explorados e torturados porque este aqui está se
esgotando.
O que
talvez indique ser essa a hora ideal, se não a última, para que exerçamos uma
de nossas liberdades mais poderosas: escolher conscientemente o que tem e o que
não tem significado. E quem sabe ao fazermos isso entendamos Belchior: "A
minha alucinação é suportar o dia a dia, e meu delírio é a experiência com
coisas reais – amar e mudar as coisas me interessa mais".
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Que texto fértil para
reflexões!
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