segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Aqui jaz o futuro

Estranho título, não? Principalmente em uma postagem publicada neste período de pródiga distribuição de votos de um próspero ano novo. E de escassas avaliações da probabilidade de que tais votos sejam concretizados. Coincidentemente, foi no dia seguinte à publicação de Avaliações que encontrei entre os destaques do Yahoo a postagem intitulada Aqui jaz o futuro, do blog de Matheus Pichonelli (jornalista e cientista social).
Atraído por um título que, no meu entender, sugere que o texto que o segue seja oriundo de alguma avaliação, cliquei no destaque para lê-lo e por ter gostado do que li resolvi espalhar as ideias nele contidas. E espalhá-las neste momento. Por que neste momento? Por concordar com uma advertência feita no fim do primeiro parágrafo. Segundo Pichonelli, antes de sair por aí distribuindo votos para um próspero ano novo, seria prudente incorporar em nosso vocabulário uma expressão recorrente citada em sua postagem.
Aqui jaz o futuro
Existe, nos debates sobre aquecimento global, uma expressão recorrente para medir o barril de pólvora sobre o qual estamos todos (friso: todos) sentados: responsabilidade inter-geracional. É um palavrão daqueles que levam qualquer leigo a abandonar a conversa e deixar o abacaxi para os especialistas. Seria prudente, porém, incorporar tal palavrão em nosso vocabulário antes de sair por aí distribuindo votos para um próspero ano novo.
Mal rabiscando, responsabilidade inter-geracional é a capacidade de calcular um ato ou uma decisão levando em conta o bem-estar de quem ainda não nasceu. Nossos filhos, por exemplo. Ou os filhos dos nossos filhos. Ou os filhos dos filhos dos nossos filhos.
Parece simples, mas num contexto em que se ensina, desde a escola, a trucidar todas as barreiras diárias, do vestibular ao sucesso profissional, para sobreviver, tudo o que não pensamos ao fim do dia é sobre como estará o mundo em 2050. Ao fim do dia somos todos boiadeiros: estamos mais ocupados em nos manter no lombo do touro do que em saber para onde ele vai.
No passado, a lógica da urgência material, e da consequente irresponsabilidade inter-geracional, criou aberrações urbanas como as observadas em São Paulo, um cemitério de rios canalizados e sepultados sobre o asfalto e o concreto. Nas grandes cidades do país, a força da grana ergueu e destruiu coisas belas que esquentam no inverno, esfriam no verão e inundam (ou costumavam inundar) nas estações chuvosas. No presente, a opção pelo transporte individual e pela ausência de espaços públicos criou, a curto o prazo, um terreno propício ao transtorno de seus habitantes, mas isso quase nunca entra na conta da vida em cativeiro. Para isso existem os remédios.
Nos relatos sobre a crise hídrica atual, o que mais assusta não são os apertos temporários só agora anunciados, mas a perenidade da tragédia. Há anos se fala em uso, reuso, reciclagem, gestão, desperdício, esforços individuais, possíveis racionamentos. Mas nenhuma dessas palavras dá voto, e por isso seguimos sugando tudo até a última gota.
Entre especialistas, há quem assegure que as represas do sistema Cantareira, hoje no limite do (des) abastecimento, jamais voltarão a ser o que eram. Ou seja: a água da São Paulo no século XXI corre o risco de entrar na lista dos recursos naturais extintos pela exploração desenfreada. As cidades-cemitérios dos ciclos do ouro, da borracha, do ferro ou da madeira não me deixam mentir: quem lucrou parte em debandada rumo a outras fontes, e o legado a quem fica é só um rastro de destruição.
A urgência da exploração irresponsável pautou praticamente todos os ciclos de desenvolvimento testados no país. Em todos havia sempre questões mais urgentes do que o bem-estar de quem sequer havia nascido. Pois ninguém enriquece pensando no futuro. Daí a ação predatória sobre os recursos materiais e humanos: é preciso aproveitar enquanto eles existem.
Há, no entanto, um detalhe: o que a economia arruína, a história condena. Assim, a prosperidade do empreendedor do passado é hoje a ruína moral do escravista. Este enriqueceu em um modelo socialmente aceito, porque lucrativo até certo momento. Entrou para a história como canalha. Como não aprendemos nada com a história, o mundo de 2050 também não perdoará os costumes forjados neste início do século. Estes lavam a calçada com esguicho e esquecem a sede do neto.
Há décadas os cientistas da área ambiental alertam para as relações diretas entre a destruição dos recursos naturais, o desmatamento e a emissão de gases poluentes com as intempéries climáticas. Mas a floresta é distante, a área de risco é distante, a safra é distante, o futuro é distante, a seca é distante.
Pagamos pra ver e o rio secou, justamente no momento em que o planeta discute como impedir a catástrofe. No relatório da 20ª Conferência do Clima, que acaba de ser encerrada em Lima, no Peru, autoridades de todos os países concordaram sobre um ponto: é urgente um esforço global para reduzir as emissões de CO2. Tudo para não corrermos o risco de chegar a 2050 com a temperatura média global 2ºC superior à atual - o suficiente para provocar febre em qualquer corpo. Uma febre de derreter as calotas polares. Para isso será inevitável pensar em soluções para a substituição de combustíveis fosseis e naturais. Grande ironia: por aqui, a salvação da lavoura é justamente a descoberta de jazidas de…combustíveis fosseis.
O ciclo, dessa maneira, se perpetua pela contracorrente. Quanto mais combustível, mais oportunidade de negócios (agora são as empreiteiras apanhadas na Lava Jato que não me deixam mentir), mais incentivo ao transporte individual, mais necessidade de concreto e asfalto, mais rios canalizados, mais área verde sepultada, menos escoamento, menos água para o reservatório.
Os escândalos, da água e do petróleo, podem ser distintos, mas a natureza, com o perdão do trocadilho, é a mesma. Em um, como em outro, o ciclo predatório é alimentado por um misto de omissão, ganância e cinismo que nos coloca em um mesmo barco: enquanto não discutirmos o modelo, e o mundo que queremos deixar para o futuro distante, seremos sempre corresponsáveis pela tragédia iminente. Garantir, na TV, que tudo está sob controle, do racionamento ao delito investigado, pode funcionar na urgência das urnas. Mas a História não tolera o atavismo. Ela governa para as gerações futuras - e elas não nos perdoarão.
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Matheus Pichonelli começa dizendo que há "um barril de pólvora sobre o qual estamos todos (friso: todos) sentados.". E termina dizendo que há "um misto de omissão, ganância e cinismo que nos coloca em um mesmo barco (...)"
E ao juntar tragédia (estar sentado em um barril de pólvora) e barco, eu lembro um famoso barco-tragédia. Vocês já ouviram falar em Titanic? Sabem que ele afundou em sua viagem inaugural? Sabem que das causas da tragédia a principal foi uma crença equivocada? A crença de que aquele era um barco inafundável. As demais foram decorrências dessa. Ou seja, considerado inafundável, nem o barco fora equipado nem a tripulação fora preparada para lidar com um naufrágio.
Crenças equivocadas! Eis uma das causas de não estarmos preparados para enfrentar os problemas cuja solução requer a nossa participação. E é entre tais crenças que (usando palavras de Pichonelli) eu incluo a de acreditarmos que a simples distribuição de votos para um próspero ano novo sem o compromisso com a responsabilidade inter-geracional seja suficiente para tornar próspero qualquer ano novo com o qual venhamos a nos deparar.
E também a de acreditarmos que este seja um período em que uma previsão não otimista deve ser considerada estranha. Será que acreditar que o que é dito em Aqui jaz o futuro jamais ocorrerá pode ser comparado a acreditar que o Titanic jamais afundaria? Ou seja, é mais uma crença equivocada? Será que vale a pena refletir sobre a afirmação de Matheus Pichonelli de que "Seria prudente incorporar a expressão responsabilidade inter-geracional em nosso vocabulário antes de sair por aí distribuindo votos para um próspero ano novo."? O que vocês acham?

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