Estranho título, não?
Principalmente em uma postagem publicada neste período de pródiga distribuição
de votos de um próspero ano novo. E de escassas avaliações da probabilidade de
que tais votos sejam concretizados. Coincidentemente, foi no dia seguinte à publicação
de Avaliações que encontrei entre os
destaques do Yahoo a postagem intitulada
Aqui jaz o futuro, do blog de Matheus
Pichonelli (jornalista e cientista social).
Atraído por um título que, no meu entender, sugere
que o texto que o segue seja oriundo de alguma avaliação, cliquei no destaque para
lê-lo e por ter gostado do que li resolvi espalhar as ideias nele
contidas. E espalhá-las neste momento. Por que neste momento? Por concordar com
uma advertência feita no fim do primeiro parágrafo. Segundo Pichonelli, antes
de sair por aí distribuindo votos para um próspero ano novo, seria prudente
incorporar em nosso vocabulário uma expressão recorrente citada em sua postagem.
Aqui jaz o futuro
Existe, nos debates sobre aquecimento global,
uma expressão recorrente para medir o barril de pólvora sobre o qual estamos
todos (friso: todos) sentados: responsabilidade inter-geracional. É um palavrão
daqueles que levam qualquer leigo a abandonar a conversa e deixar o abacaxi
para os especialistas. Seria prudente, porém, incorporar tal palavrão em nosso
vocabulário antes de sair por aí distribuindo votos para um próspero ano novo.
Mal rabiscando, responsabilidade inter-geracional
é a capacidade de calcular um ato ou uma decisão levando em conta o bem-estar
de quem ainda não nasceu. Nossos filhos, por exemplo. Ou os filhos dos nossos
filhos. Ou os filhos dos filhos dos nossos filhos.
Parece simples, mas num contexto em que se
ensina, desde a escola, a trucidar todas as barreiras diárias, do vestibular ao
sucesso profissional, para sobreviver, tudo o que não pensamos ao fim do dia é
sobre como estará o mundo em 2050. Ao fim do dia somos todos boiadeiros:
estamos mais ocupados em nos manter no lombo do touro do que em saber para onde
ele vai.
No passado, a lógica da urgência material, e
da consequente irresponsabilidade inter-geracional, criou aberrações urbanas
como as observadas em São Paulo, um cemitério de rios canalizados e sepultados
sobre o asfalto e o concreto. Nas grandes cidades do país, a força da grana
ergueu e destruiu coisas belas que esquentam no inverno, esfriam no verão e
inundam (ou costumavam inundar) nas estações chuvosas. No presente, a opção
pelo transporte individual e pela ausência de espaços públicos criou, a curto o
prazo, um terreno propício ao transtorno de seus habitantes, mas isso quase
nunca entra na conta da vida em cativeiro. Para isso existem os remédios.
Nos relatos sobre a crise hídrica atual, o que
mais assusta não são os apertos temporários só agora anunciados, mas a
perenidade da tragédia. Há anos se fala em uso, reuso, reciclagem, gestão,
desperdício, esforços individuais, possíveis racionamentos. Mas nenhuma dessas
palavras dá voto, e por isso seguimos sugando tudo até a última gota.
Entre especialistas, há quem assegure que as
represas do sistema Cantareira, hoje no limite do (des) abastecimento, jamais
voltarão a ser o que eram. Ou seja: a água da São Paulo no século XXI corre o
risco de entrar na lista dos recursos naturais extintos pela exploração
desenfreada. As cidades-cemitérios dos ciclos do ouro, da borracha, do ferro ou
da madeira não me deixam mentir: quem lucrou parte em debandada rumo a outras
fontes, e o legado a quem fica é só um rastro de destruição.
A urgência da exploração irresponsável pautou
praticamente todos os ciclos de desenvolvimento testados no país. Em todos
havia sempre questões mais urgentes do que o bem-estar de quem sequer havia
nascido. Pois ninguém enriquece pensando no futuro. Daí a ação predatória sobre
os recursos materiais e humanos: é preciso aproveitar enquanto eles existem.
Há, no entanto, um detalhe: o que a economia
arruína, a história condena. Assim, a prosperidade do empreendedor do passado é
hoje a ruína moral do escravista. Este enriqueceu em um modelo socialmente
aceito, porque lucrativo até certo momento. Entrou para a história como
canalha. Como não aprendemos nada com a história, o mundo de 2050 também não
perdoará os costumes forjados neste início do século. Estes lavam a calçada com
esguicho e esquecem a sede do neto.
Há décadas os cientistas da área ambiental
alertam para as relações diretas entre a destruição dos recursos naturais, o
desmatamento e a emissão de gases poluentes com as intempéries climáticas. Mas
a floresta é distante, a área de risco é distante, a safra é distante, o futuro
é distante, a seca é distante.
Pagamos pra ver e o rio secou, justamente no
momento em que o planeta discute como impedir a catástrofe. No relatório da 20ª
Conferência do Clima, que acaba de ser encerrada em Lima, no Peru, autoridades
de todos os países concordaram sobre um ponto: é urgente um esforço global para
reduzir as emissões de CO2. Tudo para não corrermos o risco de chegar a 2050
com a temperatura média global 2ºC superior à atual - o suficiente para
provocar febre em qualquer corpo. Uma febre de derreter as calotas polares. Para
isso será inevitável pensar em soluções para a substituição de combustíveis
fosseis e naturais. Grande ironia: por aqui, a salvação da lavoura é justamente
a descoberta de jazidas de…combustíveis fosseis.
O ciclo, dessa maneira, se perpetua pela
contracorrente. Quanto mais combustível, mais oportunidade de negócios (agora
são as empreiteiras apanhadas na Lava Jato que não me deixam mentir), mais
incentivo ao transporte individual, mais necessidade de concreto e asfalto,
mais rios canalizados, mais área verde sepultada, menos escoamento, menos água
para o reservatório.
Os escândalos, da água e do petróleo, podem
ser distintos, mas a natureza, com o perdão do trocadilho, é a mesma. Em um,
como em outro, o ciclo predatório é alimentado por um misto de omissão,
ganância e cinismo que nos coloca em um mesmo barco: enquanto não discutirmos o
modelo, e o mundo que queremos deixar para o futuro distante, seremos sempre
corresponsáveis pela tragédia iminente. Garantir, na TV, que tudo está sob
controle, do racionamento ao delito investigado, pode funcionar na urgência das
urnas. Mas a História não tolera o atavismo. Ela governa para as gerações
futuras - e elas não nos perdoarão.
*************
Matheus Pichonelli começa dizendo que há "um
barril de pólvora sobre o qual estamos todos (friso: todos) sentados.". E
termina dizendo que há "um misto de omissão, ganância e cinismo que nos
coloca em um mesmo barco (...)"
E ao juntar tragédia (estar sentado em um
barril de pólvora) e barco, eu lembro um famoso barco-tragédia. Vocês já
ouviram falar em Titanic? Sabem que ele afundou em sua viagem inaugural? Sabem
que das causas da tragédia a principal foi uma crença equivocada? A crença de
que aquele era um barco inafundável. As demais foram decorrências dessa. Ou seja,
considerado inafundável, nem o barco fora equipado nem a tripulação fora
preparada para lidar com um naufrágio.
Crenças equivocadas! Eis uma das causas de não
estarmos preparados para enfrentar os problemas cuja solução requer a nossa
participação. E é entre tais crenças que (usando palavras de Pichonelli) eu
incluo a de acreditarmos que a simples distribuição
de votos para um próspero ano novo
sem o compromisso com a responsabilidade
inter-geracional seja suficiente para tornar próspero qualquer ano novo com
o qual venhamos a nos deparar.
E também a de acreditarmos que este seja um
período em que uma previsão não otimista deve ser considerada estranha. Será
que acreditar que o que é dito em Aqui
jaz o futuro jamais ocorrerá pode ser comparado a acreditar que o Titanic
jamais afundaria? Ou seja, é mais uma crença equivocada? Será que vale a pena
refletir sobre a afirmação de Matheus Pichonelli de que "Seria prudente
incorporar a expressão responsabilidade inter-geracional em nosso vocabulário
antes de sair por aí distribuindo votos para um próspero ano novo."? O que
vocês acham?
Nenhum comentário:
Postar um comentário